Uma política de avanços e recuos

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

A situação política brasileira, atualmente, mais parece uma equação de muitas incógnitas, o que explica a imensa dificuldade de se obter dela uma visão de conjunto relativamente coerente. E, dada a impossibilidade de maiores informações sobre o presente, as diferentes tentativas para compreender o peculiar processo sucessório nacio­nal têm levado muitos analistas a recorrer ao pas­sado da Revolução, na esperança de que a História lhes dê uma pista do futuro.

Na verdade, quem tentar efetuar qualquer análise de conjunto da atual situação não terá outra alternativa, hoje, senão a de trabalhar com intuições. E as intuições correm o risco de resvala­rem para um mero opinar, sem bases objetivas.

Pergunta-se, por exemplo, qual o sentido, a viabilidade e a importância da candidatura Fi­gueiredo. A indagação relaciona muitas peças de um intrincado xadrez. Inicialmente, se atentarmos ao modo como ela foi estabelecida — seu anúncio prematuro, sua colocação em banho-maria até o início deste mês, as promessas de discussões e o ato repentino destinado a consolidar uma vontade — veremos que, por trás dela, encontra-se a pre­sença do presidente Geisel. Essa nota personalís­sima, entretanto, não deve ser precipitadamente interpretada de modo psicológico, atribuindo-se a escolha à um capricho pessoal.

Não se pode negar que, desde o início de seu governo, o presidente Geisel lançou a bandeira da redemocratização. Talvez com uma alta dose de ingenuidade política, como se fosse possível tornar realidade uma resolução única e exclusivamente pelo fato dela ter sido tomada. Tanto os desenten­dimentos em torno da proclamada distensão quanto a pressão que obrigou o presidente a redefini-la num sentido ambíguo, acabaram por esvaziá-la. Por outro lado, suas declaradas atitudes de evitar os macabros processos de tortura, gerando episódios críticos como o afastamento do coman­dante do II Exército, nos induzem pensar que o empenho para uma reabertura teoricamente colo­cada acabou gerando um governo com tendências menos totalitárias que o anterior, mas até certo ponto muito mais arbitrário, cheio de surpresas, conciliando o inconciliável, juntando liberalida­des com autoritarismos, decisões inapeláveis e du­ramente firmes, independentemente das notórias indecisões e contradições de seus próprios minis­tros.

Este prolongado uso do arbítrio criou um clima de incerteza, sobretudo porque fazia acionar instrumentos de exceção mais vezes do que em todo o período precedente, e de forma um pouco remendona, criando crises que não precisavam ser criadas e produzindo resultados nem sempre satis­fatórios para o próprio governo, como o caso das simonetas ou do pacote de abril.

É possível acreditar-se — e isto não passa de uma intuição — que a candidatura Figueiredo ve­nha inserida neste contexto de resoluções e recuos, intenções redemocratizantes e arbítrios autoritários, decorrentes das circunstâncias e das pressões capazes de interromper a racionalidade de uma estratégia. Mesmo porque, paradoxalmente, a can­didatura Figueiredo foi lançada com a bandeira da reabertura democrática de um modo altamente autoritário. A tal ponto, que o partido do governo até o momento não conseguiu explicar o inexplicá­vel. É verdade que essa bandeira já é diferente da anterior, que falava vagamente numa distensão gradual e segura. Esta é a bandeira de gato escal­dado, que fala em democracia mas imediatamente define os termos, a fim de impedir interpretações liberais; que propõe a extinção dos instrumentos de exceção, mas prega sua substituição por outros de duvidoso conteúdo democrático.

Se existe nisso tudo uma estratégia ingenua­mente menos armada, pode-se pensar que o alvo da candidatura Figueiredo seja a redemocratização. No entanto, um objetivo fixado mais ccmo uma forma de captar a simpatia da sociedade civil, a qual nos últimos tempos não deixou de reclamar a institucionalização da democracia brasileira O governo sabe, evidentemente, que uma candidatu­ra imposta tem de buscar um mínimo de legitimi­dade popular para sustentar-se, especialmente quando ela se estabelece de modo a alienar a participação do chamado sistema no processo de escolha.

Portanto, são dois pontos importantes que merecem ser destacados. De um lado, falar em Figueiredo como o homem que conduzirá o País à redemocratização é o mesmo que tentar captar o apoio da sociedade civil brasileira. De outro, tam­bém é uma maneira de neutralizar a candidatura rival do senador Magalhães Pinto, esvaziando-lhe a mensagem civilista e criando condições para uma unanimidade partidária imprescindível.

De qualquer forma, a antecipação da conven­ção da Arena revela, outra vez, as imponderabilidades da estratégia formulada pelo Palácio do Planalto, marcando claramente um recuo diante de uma proclamada lealdade ao processo partidá­rio, que o próprio senador qualificou de traição. No fundo, é sempre assim: quando as promessas de redemocratização abrem um quadro muito amplo de expectativas, a ponto do sistema sentir-se mar­ginalizado, logo surgem as proclamações em torno da necessidade de se defender o Estado contra a ação subversiva, mediante os elogios costumeiros às leis de exceção.

Por isso mesmo, a viabilidade da candidatura Figueiredo está à mercê do futuro. Ela depende, fundamentalmente, não apenas do modo, como este jogo do direito e do arbítrio possa prosseguir no tempo que resta ao governo Geisel, mas, tam­bém, de como o próprio candidato irá incorporar este estilo de ação política — ele que é de uma outra geração de militares, que não tem as estrelas de alguns de seus futuros subordinados, que não parece (nem pode) pretender uma liderança do­tada de carisma. Mesmo porque sua figura de cava­leiro está muito mais ligada a um hobby. O profis­sional é o burocrata do SNI.

Fonte: Quarta-feira, 18-1-78 — O ESTADO DE S. PAULO.