Propriedade Industrial e Defesa da Concorrência

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

No rol dos direitos e deveres individuais e coletivos, o art. 5º -XXIX determina que "a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como a proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e outros signos distintos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País".

Não se deve menosprezar a importância deste texto já pelo fato de ele constar de um dos incisos do artigo 5º da Constituição Federal. Por outro lado, é bem verdade que por este simples fato não podemos ser conduzidos ao exagero de pensar que a propriedade do inventor industrial - tout court - tenha-se transformado num dos direitos fundamentais da pessoa humana. A propriedade, pelo caput do art. 5º, o é. Mas na forma da disposição, o inciso XXIX tem antes o sentido de um comando constitucional ao legislador ordinário - "a lei assegurará aos autores..." — e não propriamente de um reconhecimento, na autoria intelectual, de um direito fundamental do autor industrial. A forma correta, na tradição constitucional, exige que direitos básicos sejam declarados, isto é, reconhecidos, e não instituídos. Ordenar que a legislação ordinária assegure é protrair a eficácia da norma e não, como exige o § 1° do art. 5º, garantir-lhe aplicação imediata. No entanto, é preciso também dizer que a fórmula usada - "a lei assegurará"- não dá à norma um mero caráter programático. Como em outros incisos do art. 5a - por exemplo, o XXIV: "a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação...", o XLVI: "a lei regulará a individualização da pena...", a Constituição conjuga o reconhecimento de um direito com a proteção da legalidade.

Isto faz sentido quando pensamos que a exigência é de que a lei assegure ao autor um privilégio temporário, quando o caput do art. 5º declara a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Igualdade perante a lei e privilégio são termos que, tomados abstratamente, se opõem. Neste sentido, o inciso XXIX distingue o autor de inventos industriais e manda que o legislador assegure à sua invenção um privilégio temporário. Na propriedade da invenção — direito fundamental de propriedade — a lei deve assegurar - direito fundamental à igualdade perante a lei -uma exceção temporária: o privilégio temporário de invenção.

Esta excepcionalidade - é temporal diante do direito de propriedade que é permanente e é privilégio diante da igualdade perante a lei — chama particularmente a atenção quando se pensa na conexão óbvia com as atividades econômicas. Para elas, a Constituição reserva um título especial, de nº VII, e um capítulo específico, de nº l - "Dos princípios gerais da atividade econômica". E a ordem econômica, ali delineada, é constituída, é fundada sobre a valorização do trabalho humano e sobre a livre iniciativa, respeitando-se, dentre outros, o princípio da livre concorrência. Deste, obviamente, a Constituição não cuida em termos do mercado oitocentista, de estrutura atomística e fluida, isto é, estrita e simples exigência de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de uns sobre outros. No sentido hodierno trata-se, ao revés, de um processo comportamental competitivo que "admite gradações tanto de pluralidade quanto de fluidez. É, pois, este elemento comportamental - a competitividade - que define a livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base da formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Assim, por extensão, a livre concorrência deve ser vista como forma de tutela do consumidor, na medida em que a competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração do poder. E do ângulo social, a competitividade deve gerar estratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada.

Ora, é nos quadros de livre concorrência assim entendida que a Constituição estabelece, no seu art. 173, § 32: "A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros". Resguarda a Constituição a livre concorrência dos excessos possíveis da própria liberdade de iniciativa. Sendo esta uma projeção da liberdade negativa no terreno econômico, pode-se dizer que nele os entes privados, livres no sentido negativo de não-impedimento, tem uma pretensão à omissão do Estado em emanar comandos ilegais. Mas não podem pretender a destruição da própria liberdade pela destruição da liberdade dos outros. Ou seja, não há como negar que afirmação da liberdade não vem sem o reconhecimento do poder que lhe está implícito. Livre, por não estar impedido, significa também livre por poder expandir-se até os limites da liberdade do outro. E é nesta liberdade-poder que está o risco do abuso.

No jogo do mercado, o princípio da livre concorrência não admite, em tese, a exclusividade. Não se trata, porém, de uma incompatibilidade absoluta, mas apenas na medida em que a exclusividade engendra situações monopolísticas na economia de mercado livre. É exatamente esta circunstância que se choca com os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. E, neste ponto, os privilégios concedidos pelo direito industrial, com respaldo na Constituição, cruzam-se com os impedimentos exigidos pelas leis antitruste, igualmente respaldadas no texto constitucional.

Assim, num primeiro momento, é interessante ressaltar a curiosa observação de autores norte-americanos, como Steiner e Vagts (Transnational Legal Problems, 2a ed. p. 996 apud Franceschi, Poder Econômico: exercício e abuso — direito antitruste brasileiro, R. T. São Paulo 1985, p. 614) para os quais devemos ter em mente que as patentes, os direitos autorais, as marcas e até mesmo os inventos não patenteados não deixam de conferir a seus respectivos titulares um monopólio limitado, que, em tese, derroga os princípios da livre concorrência. As concessões de direitos exclusivos, dizem eles, motivadas pelo entendimento de que são instrumentos estimuladores da competição e do progresso pelo encorajamento à atividade criadora e inventiva, de fato acabam por cercar parcelas da economia ao torná-las domínios privados. Por este efeito estimulador e pelo benefício resultante, o monopólio limitado seria aceito. Mas, por não deixar de ser monopólio, nela estaria contido, não obstante, o risco de efeitos destrutivos da própria iniciativa criadora.

Antes de prosseguir, parece-me importante entender o correto sentido deste suposto monopólio limitado, aparentemente fundado como um direito fundamental na forma de uma excepcionalidade à permanência da propriedade, à igualdade perante a lei e às formas de abuso do poder econômico contra a livre concorrência.

Ascarelli, em sua importante Teoria della Concorrenza e dei Beni Immateriali (Milano, 1960, p. 292 s.), faz uma justa distinção entre o ato de criação e a criação objetivamente considerada, o ato de criação e suas manifestações materiais. O ato de criação contrapõe-se, pois, tanto à criação objetivamente considerada quanto à sua manifestação material. Perante ambas, o ato de criação é intransmissível e apropriável. Por natureza, o ato de inventar, o ato de criar tem algo a ver com monopólio entendido este em relação à produção de um produto, à atividade que se exterioriza no produto. Neste sentido, poderíamos dizer, a autoria é um único, como é um único a invenção. Exteriorizado o ato, porém, ele adquire um sentido objetivo que, embora se manifeste em alguma materialidade, com ela não se confunde. Este sentido objetivo - a criação e a matéria em que se manifesta — ao contrário do ato de criar, é perfeitamente apropriável. Para esclarecer num exemplo, o ato de criar, de escrever um romance não se confunde com a criação objetivamente considerada, isto é, o romance, nem com a materialidade dos exemplares. Do mesmo modo, o ato de inventar a máquina não se confunde com a invenção nem esta com a sua materialidade. A proteção de um direito intelectual, por isso, não é a proteção a um direito de monopólio limitado, isto é de uma atividade, mas de uma criação intelectual objetiva, de uma propriedade. O abuso, nestes termos, está justamente em confundir o ato com a criação, em cercear atos criadores pelo uso e gozo abusivo da criação objetivamente considerada.

Já por aí se pode entender que os direitos intelectuais não conferem monopólios limitados, pois não dizem respeito ao exercício de uma atividade — o ato de criar, de inventar — mas sim às propriedade que, por sua vez, são distintas das propriedades da materialidade em que se expressam. Estas propriedades intelectuais, exatamente por não serem localizáveis no tempo e no espaço (ao contrário do ato-monopólio de criação que tem um momento espacial e temporal), não são mensuráveis nem exauríveis num único consumo, sendo suscetíveis de gozo simultâneo por um sem número de sujeitos. Daí o regime jurídico especial de propriedade a que ficam sujeitos. Daí o privilégio temporário. Mas não um monopólio, nem mesmo limitado. Não há, pois, incompatibilidade mas sim adequação sistemática entre os direitos garantidos no inciso XXIX do art. 5º e o princípio da livre-concorrência, bem como a vedação das formas de abuso de poder econômico, disciplinadas no capítulo da ordem econômica da Constituição.

Isto, obviamente, não quer dizer que o exercício do direito de propriedade industrial não possa conduzir às formas abusivas proscritas pelo texto constitucional. Atente-se, porém, para o fato de que, como a Constituição fala em abuso do poder econômico, pressupõe certamente que o poder econômico, em si, seja um fenômeno normal no processo de produção e circulação de riqueza. Assim, o que a lei ordinária prevista deve reprimir é o seu abuso, não o seu uso. Abuso de poder é desvio de finalidade. Significa, genericamente, o uso do poder econômico de modo a prejudicar e até inviabilizar a liberdade e a justiça econômicas. A busca do lucro, enquanto condiciona e possibilita a acumulação de capital, explica o aumento da dimensão da empresa. No regime de concorrência, este processo pode conduzir a ajustes, coalizões, fusões, incorporações, integrações, bem como ao uso intensivo e competitivo da propriedade industrial, todos eles padrões característicos da economia de escala e da sociedade de consumo. Em consequência, o fenômeno do poder econômico não é considerado uma exceção no jogo do mercado, mas um dado virtualmente constante das relações econômicas. Em outras palavras, a Constituição aceita fazer parte da economia de mercado o uso estratégico do poder a fim de obter posições de maior predominância no interior de sua estrutura. O abuso ocorre, então, quando, neste admitido uso estratégico, estamos diante de um desvio de finalidade.

E este desvio tanto a Constituição como a Lei nº 8.158/91 (art. 3º) definem pela dominação dos mercados, pela eliminação da concorrência e pelo aumento arbitrário de lucro, acrescentando a lei, "ainda que os fins visados não sejam alcançados". Dominação é aqui mais do que posição de predominância. É, por meios ardilosos, bloquear a renovação do mercado, impedindo o advento de novas forças e a expansão das existentes.

Do mesmo modo, eliminação da concorrência é mais do que competir, isto é, é mais do que tentar, estrategicamente, suplantar os demais. É na verdade, atentar contra a própria estrutura do mercado, fazendo da competitividade uma aparência de competição, fazendo de concorrência um jogo previamente combinado, em que as partes abrem mão de sua liberdade em troca de uma vantagem que, ao final as tiraniza. E aumento arbitrário de lucros é mais do que busca do lucro e acumulação de capital. É obtenção ardilosa de vantagens desproporcionais aos custos de investimento e produção, conquistados a partir de predominâncias naturais, às vezes ocasionais e temporárias, ou mesmo artificialmente alcançadas.

Dentre os atos, condutas ou práticas que, tendo por objeto ou produzindo os mencionados efeitos abusivos, constituem infrações à ordem econômica, está "impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia".

Impedir é uma expressão que colhe uma gama de significados que vão desde a obstrução, a criação de dificuldades até a proibição, a interrupção pura e simples. Nestes termos, impedir é, por exemplo, desmotivar e descapitalizar gradualmente um concessionário, forçando-o a um endividamento em favor do concedente de tal modo que este se sinta coagido a desistir espontaneamente da concessão, sem os ónus legais.

Na sua generalidade, os impedimentos de que aqui se trata apontam para situações de domínio que garantem a certos agentes formas de supremacia ou na criação e produção de tecnologias, ou no uso intensivo de propaganda capaz de privilegiar marcas, inventos, patenteados ou não etc., de modo a engendrar atos ou práticas abusivas. Mesmo nos países industrializados estas situações são conhecidas. Em si, elas não caracterizam abusos, mas podem conduzir a eles, ao impedirem a exploração de propriedades industriais, intelectuais e de tecnologia. Assim, no campo da produção tecnológica, a tendência é para uma grande concentração, até pelo alto custo dos investimentos. Por outro lado, por meio de técnicas promocionais, estes mercados de alta concentração tendem a orientar e a estimular as necessidades do consumidor, criando-se dependências pelo modelo de consumo. Estas formas de concentração, em si fenômenos normais no mercado concorrente, podem ensejar os impedimentos de exploração que, em termos de direitos de propriedade industrial, direitos intelectuais e de tecnologias, são constituídos por atos e omissões.

Nesse sentido, impedir a exploração pode ocorrer pela não utilização propositada de um privilégio temporal - caso de omissão de uso - em detrimento da concorrência. Assim, por exemplo, uma empresa que detenha no mercado uma posição dominante pode estar impedindo a concorrência, ao adquirir patentes ou obter licença de patentes para, ao final, não utilizá-las, impedindo, desta maneira a presença de concorrentes, posto que ao consumidor só resta o uso de produtos fabricados sob patente pela empresa dominante. Nesta forma omissiva pode classificar-se também a prática de impedimento por parte de detentor da propriedade intelectual que, sem condições de explorá-la, mas ocupando, pela sua detenção uma posição dominante, propõe preços exorbitantes para o seu licenciamento, no limite quase de uma verdadeira chantagem concorrencial.

Ao revés, como atos, os impedimentos podem ocorrer nas restrições abusivas que acompanham eventualmente os licenciamentos ou cessão a terceiros, de modo a produzir efeitos anti-concorrênciais. Estas restrições podem localizar-se no próprio uso que passa a ser direcionado pelo licenciador de modo a fornecer-lhe uma posição dominante, ou na interferência no preço do produto fabricado com a tecnologia, ou na constituição de reserva de território, ou na proibição de aquisição e uso de patentes concorrentes. De qualquer modo, discriminações desta natureza são formas oblíquas de impedir a exploração de direitos, pelas dificuldades que criam. Do mesmo modo, a exploração de marcas pode ser impedida pela sua utilização como instrumento para dividir mercados e até regular preços, ao obstar-se o ingresso de produtos semelhantes, no mercado, sob a mesma marca.

De modo geral, podemos encontrar em muitas das cláusulas vedadas pelo revogado Ato Normativo nº 15/75 um interessante rol de práticas impeditivas que, em si não sendo ainda configuradoras de infrações à livre concorrência, podem, no entanto, visar aos efeitos tipificadores mencionados no caput do art. 3º da Lei nº 8.158/91. É o caso, por exemplo, de cláusula que impeça a livre utilização do bem mesmo após a extinção do privilégio temporário ou da que impeça atividades de pesquisa e o próprio desenvolvimento tecnológico do licenciado, ou da que imponha uso de marca ou propaganda para o fornecimento da tecnologia.

Em suma, impedir a exploração significa, na verdade, impedir a livre exploração, de modo a gerar efeitos abusivos.

Estes efeitos, contudo, como está no caput do art. 3º, enquanto fins visados pelo infrator não precisam necessariamente ocorrer. Esta é uma importante mudança em relação às tipificações da legislação anterior. A figura típica de infração penal-econômica, que o art. 3º, inciso X, prevê, é composta, no campo normativo -elemento normativo do tipo — pelo impedimento à exploração que, a meu ver deve ser entendido como livre exploração dos ali referidos direitos. O impedimento, por sua vez, deve ser de tal monta que realmente obstrua e até proíba a livre exploração. Assim, não basta restringir a exploração, é preciso que se atinja a liberdade de explorar, sob pena de interpretarmos a lei com tal extensão que qualquer cláusula restritiva num contrato já estaria enquadrada. Já no campo subjetivo — elemento subjetivo do tipo — exige-se que tenha como dolo específico o atingimento de uma das finalidades constantes do caput: dominação de mercados, prejuízo à livre concorrência ou aumento arbitrário de lucros.

Como, no entanto, estes fins não precisam ser alcançados, o dolo é, caracteristicamente, dolo eventual. Como se sabe, em caso de dolo eventual, o agente prevê o resultado apenas como provável ou possível, mas, apesar de prevê-lo, age, aceitando o risco de produzi-lo. Ou seja, no dolo eventual a vontade do agente não se dirige propriamente ao resultado, mas apenas ao ato inicial que não precisa ser ilícito. Quanto ao resultado, possível ou provável, o agente assume o risco, preferindo a eventualidade de sua ocorrência a desistir do ato. É preciso que o agente tenha representado para si o resultado como possível, não levando em devida consideração essa possibilidade. A representação do resultado como possível e a aceitação de que ele venha a ocorrer só podem, evidentemente, ser deduzidos das circunstâncias do fato. (cf. Aníbal Bruno, Direito Penal - Parte Geral, tomo 2º, p. 73 ss., Rio de Janeiro 1979).

Parece-me, contudo, que é preciso distinguir aqui duas situações não obstante a letra da lei qualificar a infração mesmo que os fins visados não sejam alcançados. Essa hipótese só cabe, a meu ver, quando o ato praticado pelo agente é, em si mesmo considerado, um ato ilícito, no caso, uma prática impeditiva da liberdade de explorar os direitos mencionados, por exemplo por meio de cláusulas protestativas no contrato de licença. Nesta prática impeditiva ilícita deve-se incluir o elenco das práticas de deslealdade concorrencial. Se o ato, em si, é lícito, só mesmo a ocorrência do resultado pode manifestar a ilicitude. Neste último caso estamos mais próximos da chamada culpa consciente ou culpa previsão.

Até aqui considerei a relação entre a defesa da livre concorrência e os direitos intelectuais em termos de repressão ao abuso do poder econômico (art. 3º da Lei n" 8.158 e 177, § 4º da Constituição). Não é este, porém, o único aspecto que deva ser destacado. Nesse sentido é preciso lembrar que o mercado é um processo estrutural que oscila entre duas das situações-limite: De um lado, o monopólio e o monopsônio, de outro, a multiplicidade equilibrada de agentes, sem qualquer manifestação de dominância. Ambas as situações constituem estados utópicos, caracterizando-se o mercado concorrencial pelo grau de competitividade que varia em relação a esses extremos. Neste sentido, o mercado tem uma certa característica de impessoalidade e objetividade, que implica a maior ou menor eficiência no uso dos recursos escassos da comunidade. A eficiência diz respeito "à canalização de produção para os setores ou aplicações onde eles sejam mais escassos, contribuindo para reduzir essa escassez" (F. Nusdeo, "Abuso do Poder Econômico", Saraiva-Enciclopédia). É preciso, pois, cuidar para que o desenvolvimento econômico ou técnico do sistema não seja comprometido por comportamentos dos agentes que, sem ser abusivos, podem levar a distorções, como o impedimento do afluxo de recursos a certos setores ou o bloqueio da possibilidade de expansão de concorrentes.

Neste sentido, a meu ver, a Constituição, que declara o mercado interno como patrimônio nacional (art. 219), exige do Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica (art. 174), o exercício, na forma da lei, da função fiscalizadora. A lei, no caso que estamos examinando, deve cuidar de prescrições de natureza regulativa (ajustadora) cujo escopo é o eficiente funcionamento do mercado. Entende-se, então, que a Lei nº 8.158/91 não cuide apenas de ilícitos e infrações, mas também mais amplamente de anomalias de comportamento, enquanto ocorrências possíveis na estrutura objetiva do mercado. O dever do Estado, nestes casos, é atuar previamente, a fim de obviar a ocorrência de situações prejudiciais a uma concorrência eficiente, e, até mesmo, evitar condições capazes de levar os agentes ao abuso do poder econômico.

O art. 2º da Lei nº 8.158 determina, assim, que a Secretaria Nacional de Direito Econômico atue de forma a evitar as seguintes distorções, que enumera, e dentre elas vemos "c) o impedimento ao acesso dos concorrentes às fontes de insumos, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuições".

A menção à tecnologia é destaque para o nosso tema. O texto considera uma distorção o impedimento ao acesso dos concorrentes à tecnologia. Não se trata aqui de infração, prática de abuso de poder econômico. O objeto da norma é uma distorção objetiva na estrutura do mercado em termos de sua eficiência. E a ação exigida da SNDE é mais uma vigilância que, diante de distorções objetivas, se manifesta na forma de convocações de empresas, abertura de discussões, celebração de protocolos, capazes de direcionar o mercado para uma objetivamente eficiente livre concorrência. Assim, impedir o acesso à tecnologia não é ato que fira a liberdade econômica, mas que, sendo lícito, pode ainda assim ter impactos negativos quanto à democratização e à difusão do acesso ao progresso econômico e ao bem estar social. Distorções deste gênero podem ocorrer, por exemplo, quando um monopólio natural acaba levando ao controle da introdução de inovações, fornecimento de assistência técnica e da engenharia necessária à colocação do instrumento de produção. A centralização dessas funções pode tornar-se a manifestação de uma distorção na gestão da tecnologia. Legítima, nesse sentido, a atuação preventiva da SNDE que pode recomendar, convocar para diálogos e discussões, firmar compromissos do tipo acordo de cavalheiros e até mesmo alertar para possíveis consequências abusivas do comportamento, se persistirem os impedimentos por longo prazo.

Neste caso, é bom que se frise, o Estado não planeja o setor privado compulsoriamente, mas estimula e indica uma direção. Ou seja, não se substitui a iniciativa privada na determinação de suas próprias políticas; exerce, na verdade, uma espécie de gestão persuasiva em favor do bom funcionamento do mercado.

Vivemos hoje um momento de franca liberação do mercado, tanto no plano interno, quanto do ângulo externo. Isto faz da propriedade intelectual, nas suas diversas manifestações, um instrumento de alavancagem da economia capaz de produzir efeitos extremamente benéficos para o País, mas capaz também de se tornar um fator deletério de altíssimo poder, mormente num mundo em que o domínio tecnológico é decisivo no relacionamento internacional. Basta essa reflexão para se reconhecer que atitudes firmes, com a consciência da necessidade de proteção da livre concorrência, não devem ser apenas uma preocupação do Estado, mas de todos os agentes econômicos que atuam no País. Sem uma eficiente e eficaz lei de defesa da concorrência o preço de uma liberação econômica poderá ser tão alto que nenhum de nós estará aqui amanhã para poder pagá-lo.

Fonte: Revista da ABPI, nº 8, ano II, São Paulo, 1993, pp. 10-12.

(Digitalizado e conferido por Ana Paula Vendramini Segura)