Perversão ideológica dos Direitos Humanos.

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

RESUMO INDICATIVO: 1. Introdução: limites desta investigação. 2. Os direitos humanos como problema. 3. “Direitos do homem” e positivação do direito. 4. “Direito do homem” e perversão ideológica. 5. Conclusão: alcance desta investigação.

1. O tema Direitos Humanos constitui, sem dúvida, preocupação jurídica universal, sendo cabível a sua discussão em qualquer ramo da Ciência do Direito. Talvez por isso mesmo se trate de tema largamente explorado, onde se torna difícil a palavra nova, onde é quase impossível evitar a repetição de velhas fórmulas, o emprego do lugar comum, o que, num mundo em crise como o nosso, chega até mesmo a banalizar a sua importância. Esta banalização se reduz muitas vezes à insistência em tratar do tema com nobres, mas nem sempre convincentes intenções moralizantes, recorrendo o jurista a expressões vazias de sociedades pouco complexas como as do século XVIII e XIX, mas que hoje apenas evocam a figura do bacharel capaz de dizer belas coisas. Outras vezes, esta banalização se liga a críticas positivistas, mas de um positivismo também ingenuamente moralizante, em nome de um cientificismo deslocado e próprio do século anterior, que insiste, por sua vez, em negar os Direitos Humanos ou em reduzi-los a meras expressões mistificadoras. Mas a banalização mais terrível é aquela que se dá ao nível da ação, que distorce o seu sentido para captar instrumentos de atuação política e jurídica, conservando-os como intocáveis, na medida em que os destitui na prática.

Não pretendemos inovar o tema. Mas quer-nos parecer que uma investigação dos Direitos Humanos não exclui ao menos a tentativa de repensá-lo. Repensá-lo não quer dizer fazer um levantamento histórico das suas origens na literatura jurídica, nem propor uma antropologia filosófica, velha ou nova, capaz de por a descoberto os seus fundamentos. Repensá-lo significa tratá-lo como um problema.

Entendemos por problema um conjunto de possibilidades estruturadas em alternativas. Um problema, nestes termos, não mediatiza uma verdade, isto é, a partir dele, não é possível deduzir a sua solução, pois um problema pressupõe justamente a existência de mais de uma solução. Repensar um tema é pensá-lo problematicamente, é partir de um problema para problemas cada vez mais amplos e abstratos. Neste sentido, podemos dizer, não existe uma lógica adequada para o conceito de problema. Uma análise problemática deve, pois, preparar-se para contradições patentes e estar aberta a elas, desenvolvendo a regras de natureza pragmática e técnicas de uso intersubjetivo. Assim, no lugar da dedução lógica, surge uma técnica, a técnica da recepção consciente de decisões já ocorridas que servem, então, de premissa para a análise comparativa de problemas e soluções e problemas. Isto significa que a direção da pesquisa fica invertida: ao invés de partir do problema para buscar uma solução, encaramos a solução como a resolução de um problema e processamos a investigação na direção de problemas mais abstratos. Neste sentido, funcionalizamos os Direitos Humanos, neutralizando-os. Esta neutralização não quer dizer que nos coloquemos impassíveis diante deles, eximindo-nos de qualquer juízo de valor, mas sim que procuramos abortar qualquer valoração a eles inerente, referindo-a a uma estrutura contextual. Não estaremos discutindo, assim, nem fundamentos, nem a existência, nem forma de revelação e explicação de tais Direitos, mas sim a sua positivação no direito contemporâneo enquanto solução de problema que desencadeia, no contexto, problemas em sequência, cuja existência depende, por sua vez, de outras decisões e assim por diante. Ao fazer isso, entretanto, a nossa própria atitude metodológica se insere, tragicamente, num contexto problemático que ela procura revelar, como se perceberá a seguir.

2. Os Direitos Humanos constituem um dado típico da cultura moderna. Não que a questão não possa ser localizada em outras épocas. Simplesmente, eles constituem uma decisão estrutural, que se dá, pois, num contexto definido, limitando e circunscrevendo a universalidade do problema. Não se negam, com isso, as tentativas jusnaturalistas de fundá-los universalmente pois não se ignora que diferentes épocas e culturas possam ter tido problemas análogos. Apenas queremos dizer que com a expressão Direitos Humanos estamos definindo certos problemas, num contexto estrutural peculiar. A determinação desta estrutura é, assim, o nosso passo inicial na análise.

Desejamos, para esse propósito, adotar, embora com um sentido ligeiramente diferente e tendo em vista outro contexto, um pensamento de Henrique Vaz, distinguindo três constelações problemáticas na chamada civilização ocidental. Admitindo como centro delas o conceito de homem, falamos um problema clássico, moderno e contemporâneo. A constelação problemática clássica se debate entre a ordem do mundo (cosmos) e a inserção do homem nesta ordem. A cultura clássica capta este problema como a questão da hierarquia das ordens. O homem se coloca diante do cosmos enquanto totalidade perfeita e acabada, não importando em quantas partes ou subordens ele se divida. Pressuposto metafísico desta problemática é uma substancialidade que deve ser assegurada, a existência de traços constantes, de um cerne do ser, idêntico a si mesmo. Ideias como a de mudança irreversível, desenvolvimento, evolução, inovação não cabem ali dentro. O importante é a fixação de invariantes, fixação que exclui outras possibilidades e despreza eventuais variáveis. O problema aqui é como integrar ou conceber o homem como parte de uma totalidade hierárquica que o envolve. Na visão aristotélica, por exemplo, existe entre as formas cósmicas uma relação que ele chama de “imitação”, segundo a qual, as formas inferiores executam ações que, num nível mais modesto, significam a realização e ao mesmo tempo a negação do modelo proporcionado pelas formas superiores. Neste sentido diz-se que o movimento circular do Primeiro Céu imita a imobilidade do Primeiro Motor, da mesma maneira que o ciclo das estações imita o movimento das esferas celestes, sendo o próprio movimento uma imitação da imobilidade divina e a contingência uma imitação da necessidade. Ora, a identidade de todos os seres através de um mesmo fim, que permite a imitação em cadeia, se revela como uma diversidade de meios, isto é, como a necessidade de mediação por parte do imitador e ausência de mediação por parte do imitado. O problema aqui é, então, saber como a contingência, isto é, o poder-de-não-ser, pode imitar a perfeição subsistente do Primeiro Motor. Em outras palavras, como pode o homem, ser contingente, imitar a imobilidade plenamente suficiente (autárquica) de Deus.

Nesta problemática não há lugar para os “direitos do homem” como problema, mesmo porque em termos de uma correlação de parte e todo, num universo hierarquizado e estático, a sociedade é resultado da integração de partes complementares ou concorrentes. O mundo é apenas um enigma, que deve ser decifrado.

A segunda constelação problemática que queremos referir pode ser classificada como moderna. Aqui, o homem sai dos limites da polis e passa a “cidadão nacional” ou a um “indivíduo da nação”. O cosmos deixa de ser uma ordem predada, uma hierarquia estática e imutável de ordens e movimentos, aparecendo o homem como indivíduo isolado que, diante da natureza, constitui um polo que a ela se opõe. O mundo torna-se, nesta medida, um risco e um desafio. A cultura moderna capta esta relação como um problema de ordenação do mundo pelo homem. Filosoficamente, surge a problemática do ego que se analisa e analisa o mundo, o que, econômica, social e politicamente se expressa em conflitos e lutas que traçam o roteiro das primeiras revoluções modernas. Nestes conflitos, o homem se assume como indivíduo em oposição à própria sociedade. O mundo deixa de ser o seu lugar natural, para ser um ambiente hostil, donde o aparecimento do Estado como um guardião e, ao mesmo tempo, como uma ameaça.

É neste contexto que os chamados “direitos do homem” surgem como problema. A ruptura das antigas hierarquias exige um esforço de coalização dos interesses do indivíduo. Daí a necessidade do estabelecimento de normas abstratas que devem se fundar no próprio homem enquanto razão ordenadora, o que, no plano político-social deverá garantir a luta do indivíduo pelo seu “sucesso”, ou seja, a possibilidade de realização do ideal do burguês bem sucedido.

Os “direitos do homem” constituem, assim, uma ordenação da razão. Como resultado de uma ordenação eles compõem um sistema estático, porém aberto ao mundo circundante. Neste sentido, eles experimentam uma certa “historicidade” em termos de um movimento teleológico. Se o homem é um ser que age sobre o mundo, a sociedade política se concebe como um sistema de ações. Toda ação, individualmente considerada, implica a posição de um fim, que determina os meios. A cultura moderna reinterpreta a relação partes-todo em termos de meios-fim. O todo surge como o fim do sistema, os meios como suas partes. É no movimento em direção a um fim que repousa a perfeição e a racionalidade do sistema.

A “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, bem manifesta esta estrutura. A conservação dos “direitos naturais e imprescritíveis do homem” são considerados o “fim de toda associação política” (nº 2). Ora, o exercício destes direitos se resume na conservação do homem como ser livre. A liberdade, enquanto “poder de fazer tudo quanto não prejudique a outrem” (nº 4), torna-se, deste modo, ao mesmo tempo princípio e alvo básico do sistema. Concebida abstratamente, ela permite o seu desdobramento em termos de “distinções sociais” fundadas na “utilidade comum” (nº 1). Em outras palavras, o estabelecimento do fim determina os meios.

O conjunto dos “direitos do homem” constitui, nestes termos, uma ordem interna estável, aberta para as influências externas do mundo circundante. Esta ordem, entretanto, é, um primeiro momento, estática, na medida em que as influências, se vistas como perturbações, não podem ser compensadas pela própria ordem: elas têm de ser rechaçadas. A “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, fundando-se num modelo organicista, via no fim (todo) estabelecido algo mais que a mera somados meios (partes). Nela, a introdução de uma nova parte ou a retirada de outra já integrante contribui para a destruição da própria ordem. Ora, a complexidade crescente da sociedade e dos seus conflitos veio, nestes termos, a desencadear uma transformação no interior do próprio sistema.

Esta transformação é exigida pelo problema de se compensar, na própria ordem, as perturbações do mundo circundante. Isto é conseguido, em princípio, pela substituição do modelo organicista pela historicista, o que dará aos “direitos do homem” um certo dinamismo. Neste modelo, mantém-se os conceitos de todo e parte. O todo, porém, é visto como a “totalidade concreta da história”, que precede, metodicamente, as partes, vistas como momentos do desenvolvimento histórico (Hegel). Ora, os conceitos de fim e meios, projetados sobre a relação todo-partes, tomam, aqui, outro sentido. O fim não se identifica como o todo, nem os meios como as partes. Ambos, fins e meios, são partes no sentido de momentos do todo, que os abarca. Isto assegura a fim e meios uma grande mobilidade, acompanhada de uma certa relatividade: fins tornam-se meios e meios tornam-se fins no interior do processo histórico.

Nesta concepção, embora os “direitos do homem” sejam mantidos como fim, eles sofrem um processo de relativização que os transformará totalmente. Eles passam a constituir uma ordem dinâmica, que é capaz de absorver eventuais perturbações, em termos de articulação entre conflito e harmonia. Esta dinamicidade, entretanto, não exclui, ao contrário, permite uma completa transformação da estrutura do sistema social no sentido de uma inversão cabal de fins e meios. A visão marxista do direito constitui, nestes termos, um bom exemplo. Ao dizer que o trabalho cria o homem, ela o torna um animal laborans e não um animal rationale. Esta posição faz dos “direitos do homem” enquanto “direitos do capitalista” um simples meio que serve a um fim inconsciente. Sua concepção visa, neste sentido, a captar este fim dentro da História, concebida não como uma categoria teórica (Hegel), mas prática: a história deixa de ser uma compreensão do passado para ser uma projeção do futuro. Ora, isto destrói o sentido tradicional “direitos do homem” que deixam se servir a uma visão totalizadora da vida política, esfacelando-se a sua função de garantir a coalização dos interesses do indivíduo, na medida em que eles são suprimidos como verdades interligadas, dadas pela razão.

Com isto passamos a uma terceira constelação de problemas. A problemática contemporânea se debate entre uma concepção do homem como animal laborans, isto é, como transformador das estruturas do mundo e o mundo como uma estrutura planificada que inclui o próprio homem. Socialmente, temos, então, o problema da organização dos quadros técnicos e profissionais, economicamente, o problema da produção planificada, politicamente o da presença das massas no Estado. Neste contexto, o mundo, que já não era mais uma ordem acabada, deixa de ser também um objeto de ordenação, para ser o lugar da experiência do homem. Aparece, nestes termos, como um problema ou complexo de problemas que atua motivacionalmente sobre o homem, embora não no sentido de um determinismo rigoroso. Os problemas têm a capacidade de mobilizar um complexo de soluções. Em si mesmo instáveis, eles se tornam causa de um processo de solução. Dada esta instabilidade, surge aqui uma série de conceitos como “conflito”, “tensão”, “necessidade”, “interesse” no lugar do conceito de problema, para mostrar que o próprio problema estimula uma solução e para evitar, muitas vezes, a necessidade de uma justificação teórica, transpondo-se, apressadamente, a problemática do problema para o plano fático. O problema é concebido como uma questão aberta, para a qual há uma série de soluções possíveis que servirão de base para uma decisão. Esta concepção repercute basicamente no mundo jurídico, aparecendo o direito, em princípio, como um sistema de decisões, a compor uma ordem necessariamente aberta e instável, dada a sua relação a problemas ou grupos de problemas. Neste contexto, a questão dos “direitos do homem” se manifesta na contradição, entre, de um lado, a relação meramente pragmática do homem com o mundo que, vendo no mundo apenas um problema, transforma sua ação numa simples decisão, ou seja numa opção hipotética que se modifica ou deve modificar-se de acordo com os resultados e cuja validade repousa no seu bom funcionamento, e, de outro, a perda do sendo comum e da dissolução dos valores aí implicados e que explicam um certo vazio espelhado na ausência de padrões de julgamento e, portanto, de base para a própria ação de decidir.

3. O traço mais característico do direito em nossos dias é o fenômeno da “positivação”. Embora a “positivação” seja um processo que já chame a atenção dos juristas do século 19, e ali ganhe os primeiros delineamentos teóricos, é no século 20 que ele e torna agudo e se aperfeiçoa. Direito positivo é aquele que vale em virtude de uma decisão e só por força de uma nova decisão pode ser derrogado. Se o “legalismo” do século passado entendeu isto de um modo restritivo e unilateral, reduzindo o direito à lei enquanto norma posta (positivada) pela vontade do legislador, a teoria jurídica atual tratou de reinterpretar o fenômeno da “positivação”, procurando superar as dificuldades e limitações da jurisprudência anterior.

O fenômeno da “positivação” prende-se, a nosso ver, à problemática contemporânea, que acabamos de esquematizar; o seu entendimento, por sua vez, abre um caminho para a compreensão do problema dos “direitos do homem” em nosso mundo, na medida em que a “positivação” deixa transparecer a questão do vazio dos padrões, ocultando-a, ao mesmo tempo, através de mecanismos funcionais e pragmáticos.

“Positivação” e “decisão” são termos correlatos. “Decisão” é tomada aqui num sentido lato, que ultrapassa os limites da decisão legislativa, abarcando também, entre outras, a decisão judiciária, na medida em que esta pode ter também uma qualidade positivante, quando, por exemplo, decide sobre regras costumeiras. Toda decisão implica, além disso, motivos decisórios, premissas de valor que se referem a condições sociais e nelas se realizam. O que caracteriza o direito positivado é, neste sentido, o fato de que estas premissas da decisão jurídica só podem ser pressupostas como direito válido quando se decide sobre elas. Daí entender-se por “positivação” do direito o fenômeno segundo o qual, “todas as valorações, normas e expectativas de comportamento na sociedade tem de ser filtradas através de processos decisórios antes de poder adquirir a validez jurídica”. Toda norma implica, nestes termos, a sua posição no sentido de uma “interferência decisória do Poder”.

A “interferência decisória do Poder” não esconde o perigo da arbitrariedade da decisão e a teoria jurídica tem sido pródiga em argumentos que procuram contorná-lo. Contorná-lo, porque apesar de tudo, o desenvolvimento da sociedade contemporânea exclui, de fato, uma transformações do direito vigente através de intervenções individuais e singulares ou de regras de execução fundadas em princípios superiores que não tenham passado pelo crivo do Poder. O Poder é entendido aqui, conforme a lição da moderna “teoria dos sistemas”, através da categoria da “seletividade”. Esta teoria concebe o sistema social como uma estrutura complexa. “Complexidade” é concebida como o conjunto dos acontecimentos possíveis, como a existência de alternativas, de possibilidades de variação, de ausência de consenso, de conflitos, donde se segue que a estrutura social “institucionaliza”, em certos limites, contradições, mudanças e a possibilidade da sua ocorrência. A “complexidade”, entretanto, não pode, em princípio, ser mais ampla que a capacidade do próprio sistema de reduzi-la. Esta capacidade de reduzir o âmbito das possibilidades, mas não de acabar com elas, corresponde a um processo de “seletividade”. Ora, no sistema jurídico esta conexão entre “complexidade” e “seletividade” aparece de modo bastante agudo, na medida em que o seu potencial conflitivo, resultante de diversas variáveis, se contrapõe a necessidade de um processo de estabilização de expectativas que não podem ser instáveis, mas têm de ser pressupostas como invariantes.

É neste quadro esquemático que o Poder toma o seu lugar, entendido, então, como uma “seleção que depende de outras seleções”, isto é, como “seletividade fortalecida do sistema” (Luhmann). O Poder aparece, no sentido jurídico, quando a partir de um campo de possibilidades normativas, uma delas é escolhida através de decisão e esta seleção é aceita por outros como premissa de suas próprias decisões. Embora a própria seleção repouse apenas em uma decisão, esta permanece visível na sua “seletividade”. Exatamente este “permanecer visível” das possibilidades é que funciona como motivação: a aceitação por parte de outros ocorre à vista de alternativas permanentemente institucionalizadas e, em decorrência, incômodas para todos. As possibilidades de desdobramento do Poder e de sua repartição no sistema dependem, assim, de como as alternativas, que devem ser evitadas, deixam-se combinar umas com as outras ou umas contra as outras, mantendo-se a sobrevivência do sistema – sua funcionalidade – como condição da decisão. Com isto, a extensão do Poder e também as suas exigências de organização variam como a "complexidade” da totalidade do sistema, isto é, com o número das suas possibilidades.

À luz desta concepção, se o direito é posto prevalecentemente como norma, esta não pode deixar de ser considerada como uma solução ou composição tensional que, no âmbito de certa conjuntura histórico-social, é possível atingir-se entre “exigências axiológicas” e um “dado complexo de fatos”, isto é, “todas as condições, circunstâncias e realidades já existentes no ato em que a norma surge”.

Normas jurídicas, neste sentido, constituem “modelos operacionais” (Reale), isto é, modelos que não são meros esquemas ideais, pois a normatividade que eles expressam abstratamente se articula em “fatos” e “valores”, resultando de um “trabalho de aferição dos dados da experiência” – seletividade –, tendo em vista a determinação de um tipo de comportamento possível e também necessário à sobrevivência do sistema. A operacionalidade do modelo significa, outrossim, que as regras de comportamento e os seus objetivos não são fixados a priori, isto é, o direito não constitui um a priori formal (acabado) da vida social, à maneira neokantiana, mas são, ao contrário, resultados de um processo decisório e seletivo. A palavra “resultados” não nos deve confundir. Ela deve ser entendida no sentido de uma “opção axiológica”, vale dizer: os valores inerentes à norma jurídica não são dados (Gegebenheiten) nem mesmo “tarefas” (Aufgegebenheiten) absolutos, mas postulados. Por sua vez, a palavra “postulados” não significa, desde logo, relativismo axiológico, mas quer dizer que os valores não são entidades independentes, que permitem uma expressão unívoca, mas são fatores que se determinam – instavelmente – num processo global. Neste processo, objetivos primariamente postulados podem sofrer mutações, já pela modificação nas condições de “realizabilidade”, já pelo aparecimento de novos objetivos. Isto implica, como se pode imaginar, a possibilidade de proliferação dos objetivos e o consequente aparecimento de contradições e conflitos em larga escala. Ora, o sentido operacional da norma, na sua relação à “seletividade” do poder, está justamente na inversão desta possibilidade, na medida em que nela o número de objetivos se reduz, tornando-se possível o controle dos conflitos.

Neste quadro, como se pode perceber, transforma-se profundamente o sentido dos “direitos do homem”, os quais, se, de um lado, não são relativizados brutalmente como na concepção marxista, vêem mudado, por outro, o seu caráter de jus eminens. De fato, o direito positivado, embora continue a garantir expectativas e, deste modo, seja posto como invariante, alberga, na sua estrutura, uma instabilidade resultante do conflito permanente dos valores sociais entre si e destes com a própria realidade social em constante mudança. Uma sociedade que positiva o seu direito tem que renunciar a uma ordem invariável, extra-positiva, como, por exemplo, a do Direito Natural; mas, por outro lado, ela tem de compensar, de algum modo, esta renúncia. Isto é conseguido, no interior mesmo do direito positivado, pela instalação de normas de valor superior – constitucionais – que se diferenciam gradualmente de outras normas, e, dentro daquelas, pelo reconhecimento de um cerne fixo, que lhes garanta uma certa estabilidade, como este cerne fixo, entretanto, é encarado, eis a questão que transforma profundamente o sentido dos “direitos do homem”.

A grande maioria dos constitucionalistas afirmam que há um certo número de direitos, os do homem enquanto pessoa, que não são constituídos, isto é, não são outorgados pela constituição, mas por ela reconhecidos e garantidos. Assim o são, por exemplo, o direito à vida, à liberdade nos seus diferentes aspectos, etc. Muitos juristas referem esses direitos como pertencentes a uma ordem natural, ligando-a, alguns, à Revelação divina, deixando, outros, a questão em aberto. Todos, entretanto, os aceitam como pilares básicos do mundo jurídico. Mesmo entre os positivistas mais radicais, como o mostram as críticas dos defensores do Direito Natural, existe ao menos a postulação de princípios fundamentais. Este caminho da discussão, contudo, que nos conduz sempre à questão do fundamento último do direito, oculta, na verdade, um problema mais premente: a complexidade concreta do mundo contemporâneo não pode ser reduzida por uma seletividade abstrata, isto é, não basta dizer que todos são iguais perante a lei que com isso apenas não são controlados os conflitos sociais. Em outras palavras, o direito positivado tem de responder, ele próprio, pela sua estrutura. Daí a idéia de que toda declaração de “direitos do homem” é inseparável da sua garantia. Esta ideia, entretanto, é uma faca de dois gumes: se de um lado ela torna a seletividade abstrata numa seletividade concreta, ela perverte, de outro modo, o sentido eventualmente absoluto dos direitos fundamentais. Isto porque as garantias são “limitações, vedações impostas pelo constituinte ao poder público”. Ora, se é verdade que as garantias limitam o poder público, elas só têm condições de funcionar através do próprio poder público. Temos aí espelhado o dilema da problemática contemporânea: o homem é o transformador das estruturas do mundo e o mundo é uma estrutura planificada que inclui o próprio homem. Como escapar deste dilema?

3. Baseados na Declaração Universal dos “Direitos do Homem”, adotada pela Organização das Nações Unidas, diz Vicente Rao, é lícito indicar os princípios gerais, “que devem inspirar a organização do Estado de Direito, ou seja, a organização democrática do Estado: 1º) – Origem popular do Poder e do Direito; 2º) – Temporariedade das funções políticas legislativas e executivas; 3º) – Divisão (independência e harmonia) dos poderes políticos; 4º) – Garantia e disciplina jurídica dos direitos civis, políticos e econômicos, inerentes à personalidade humana; 5º) – Participação do Estado, assim organizado, na comunidade internacional, baseada no reconhecimento dos principais fundamentais da organização democrática”.

Estes princípios expressam, a nosso ver, valores fundantes da vida política em nosso tempo, tais como liberdade, igualdade, segurança, fraternidade, etc. Tais valores são símbolos de preferência de ações, indeterminadamente permanentes. Eles podem, a este nível de abstração, ser afirmados, sem inibições, como fórmulas integradoras e sintéticas para a representação do consumo social. Entretanto, quando ocorre a necessidade de se estabelecerem certas ações ou projetos de ações em que devemos decidir entre conflitos de valores, para isso não há, no mesmo nível de abstração, nenhuma regra de validade genérica. Isto significa que, se podemos abstrair pontos de vista valorativos, o mesmo não é possível quanto às relações, hierárquicas ou circulares, entre os valores.

Por outro lado, sabemos que um sistema político, numa situação concreta de decisão, tem de simplificá-la, na medida em que ele refere as relações conflitivas a determinados problemas. Isto exige um processo de neutralização das relevâncias valorativas possíveis, que se torna concretamente necessário na medida em que a confiança ingênua na validez de fins tradicionais desaparece e a mobilização e diferenciação da ordem social abalam os fundamentos seguros do consenso.

Este processo de neutralização se efetiva através de pontos de vista ideológicos. “Ideologia” é, sem dúvida, um termo equívoco. No século XIX e na primeira metade deste, a reflexão sobre o pensamento ideológico nos conduziu à problemática do conhecimento transparente a si próprio. Mannheim empreendeu, neste sentido, uma análise de ideologia em termo de relação entre valor e ação como um conjunto de possibilidades de variação num sistema teórico, as quais se limitam mutuamente. Esta concepção, contudo, contém um princípio do qual ninguém se safa e que acaba por tornar toda a investigação inconsequente. A questão tem sido, por isso, retomada recentemente por alguns autores, entre os quais citamos Carl Friedrich e Niklas Luhmann, os quais procuram propor uma interpretação manifestante funcional do conceito de ideologia. As considerações seguintes se baseiam nesta interpretação.

Ideologia é, a nosso ver, um elemento de natureza axiológica. Nestes termos, o ponto de vista ideológico envolve também uma atitude valorativa. Só que, enquanto os valores em geral constituem prisma, critérios de avaliação de ações concretas, nas quais eles se realizam, a valoração ideológica tem por objeto imediato os próprios valores. Não desconhecemos, no fazer esta asserção, que os próprios valores se julgam, na medida em que é sempre possível submeter um valor a outro e, a partir daí, num processo reflexivo, constituir ordens valorativas hierárquicas. Esta valoração, porém, dada a reflexidade regressiva e circular dos valores – valores julgam-se uns aos outros ad infinitum – é necessariamente flexível e instável. A valoração ideológica, ao contrário, é uma atitude, em princípio, rígida e limitada. Ela atua no sentido de que a função seletiva do valor na orientação da ação se torne consciente, isto é, a ideologia permite que se tome consciência dos valores como guia da ação. Não nos guiamos apenas pelos valores, a consciência ideológica não é um dado universal, mas localizado. Isto é, se toda sociedade se guia por valores, nem toda sociedade reflete sobre os seus valores. Isto só ocorre em sociedades cuja complexidade atinge um ponto tal que não é mais possível organizar e controlar os conflitos em nome da Justiça ou da Liberdade, pois tais valores se tornaram vazios e abstratos. Um exemplo moderno disso temos com o uso indiscriminado da palavra democracia, capaz de ser utilizado em contextos radicalmente diferentes. Ora, a valoração ideológica cria justamente condições para delimitar os valores. Cria-se a possibilidade de se avaliar as próprias avaliações, estimar as estimativas, selecionar as seleções, valorar os próprios valores. A valoração ideológica é, neste sentido, meta-valorativa, pois ela não tem por objeto guiar as ações, mas avaliar os critérios valorativos das ações. Mas, nesta medida, o sentido usual de valoração, de certo modo, se desacredita como tal. Pois a valoração ideológica fixa o sentido dos valores. Não se fala mais em justiça, mas em justiça-no-sentido-liberal ou conservador ou comunista, etc. Não se fala mais em democracia, mas em democracia-no-sentido-progressista, desenvolvimentista, ocidental, popular, etc. Com isso, é verdade, a valoração ideológica estabelece condições para que os valores variem só na medida das necessidades de ação, ao garantir consenso ou, ao menos, um certo consenso, na manifestação dos valores, assegurando, neste limite, a possibilidade de sua expressão. Mas ao fazê-lo, ela está se constituindo numa instância que vai neutralizar a valoração, na medida em que ela perverte o valor, retirando-lhe o sentido de símbolo aberto a múltiplas conotações, o que provocaria, inevitavelmente, conflitos em larga escala.

Um exemplo disto pode ser visto nos sistemas políticos atuais. Muitos deles desenvolvem esta espécie de perversão, dos valores dominantes, através da inversão de fins e meios na política. Assim, o poder é dado aos políticos para que realizem aqueles valores. Mas o objetivo da sua atividade passa a ser a manutenção daquele poder que, de meio, passa a ser o fim real de sua ação. Com isso, pervertem-se os valores, que são neutralizados e instrumentalizados. Evidentemente, o perigo da manipulação ideológica está numa perda de contato com a própria complexidade do sistema que pode, no limite, tornar-se totalmente indeterminável. Este perigo é contornável, desde que a neutralização ideológica permaneça formal, isto é, não impeça, ao contrário, possibilite o oportunismo do câmbio de valores, o que, na prática, é obtido pelo desdobramento e diferenciação do poder, através do que certos símbolos, normais e instituições são, em cada esfera de competência (a organização de administração pública, a praxis decisória da justiça, a atividade legislativa) reciprocamente neutralizados.

Isto posto, podemos entender em que medida o dilema proposto anteriormente é contornado. Em princípio, os “direitos do homem” expressam valores fundamentais e inalienáveis da vida política. Nesta medida, o seu reconhecimento pelo direito positivado significa a sua aceitação como invariante, donde a sua utilização como critério para a seleção de diferentes comportamentos e normas a eles referidas. Nestes termos, eles se estabelecem com o fim da atividade política. Ora, a mera fixação destes fins para a ação não pode ocorrer de modo unívoco, funcionando, ao contrário, apenas como orientação necessariamente elástica para a comparação e opção entre meios apropriados, não podendo a sua prescrição ou proibição abstrata constituir um juízo merecedor de confiança para a ação. Em outras palavras, os valores expressos na declaração dos “direitos do homem” têm de ser concebidos abstratamente, para deixar em aberto as diversas possibilidades de ação. Ora, isto só pode ser alcançado quando sua “seletividade” é dirigida aos comportamentos visados, que podem ocorrer de modo variado, de tal maneira que estes últimos venham a funcionar como prisma para a seleção de meios apropriados. Vê-se, por aí, que a simples declaração dos direitos, de fato, em virtude da sua flexibilidade abstrata, pode trazer dificuldades: a idéia de que o direito aos fins dá também o direito aos meios perde sua força.

É neste momento que a valoração ideológica atua, no sentido de neutralizar os “direitos dos homens”, através da criação de expressões simbólicas como garantias constitucionais, mas também regras de hermenêutica, ficções jurídicas, distinções formais, que, de certa maneira, de instrumentos que são (meios) passam a constituir os verdadeiros objetivos da vida político-jurídica.

A valoração ideológica, portanto, torna rígida, nesta medida, a declaração dos “direitos do homem”. Ela explica, a nosso ver, como o direito positivado compensa, no interior da sua própria estrutura, a ausência de uma ordem extrema imutável. A ideologia os fixa, dando-lhes o caráter de cerne “indiscutível”, de tal modo que, em princípio, eles não podem ser questionados, permitindo-se, apenas, a sua discussão técnico-instrumental: ao manifestar uma superioridade valoradora a ideologia elimina, artificialmente, outras possibilidades. Isto ocorre mesmo dada a inevitabilidade de múltiplas ideologias, sejam em confronto, ou de modo a estabelecer-se entre elas um relacionamento “indiferente”: mesmo quando elas se contrapõem e se criticam, os “direitos da pessoa” sobrepairam acima das injunções. Isto permite e esclarece, aliás, que regimes políticos tão diversos assinem e subscrevam a Declaração dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas, absorvendo-a, sem maiores problemas, em seus estatutos jurídicos. Isto é possível porque e na medida em que a neutralização ideológica permaneça formal, não impeça, ao contrário, propicie o oportunismo do câmbio de valores.

É preciso, entretanto, salientar, finalmente, que a valoração ideológica, ao neutralizar os “direitos do homem”, perverte, de certo modo, o seu sentido, fazendo deles um jus eminens juridicamente castrado. Instrumentalizando-os, ela lhes aplica uma capitis deminutio, retirando-lhe a qualidade de verdadeiros: eles não funcionam porque são verdadeiros, mas são verdadeiros porque funcionam. Na sua função de orientar e determinar a ação política e jurídica, eles se tornam substituíveis, isto é, uma possibilidade entre outras, o que ficou claro com o advento dos totalitarismos fascistas em nosso século. Com isto, entretanto, abrimos as portas para uma quarta constelação de problemas, abrimos as portas para uma quarta constelação de problemas, que está, por certo, prestes a eclodir, se é que já não eclodiu. Se a cultura clássica debatia-se entre uma ordem hierárquica e a inclusão do homem nesta ordem; se a cultura moderna pôs-se o problema da ordenação do mundo, risco e desafio, pelo homem; se a cultura contemporânea quer entender o homem como transformador das estruturas do mundo e como parte do mundo enquanto estrutura planificada; o futuro parece acenar-nos com o problema da perda da dimensão da responsabilidade humana por uma obra pela qual ele é, de fato, responsável.

5. A relação do título deste parágrafo conclusivo com o inicial é intencional. Postos e delimitados os objetivos e o método do trabalho, pusemo-nos a apontar as constelações problemáticas que nos pareciam capazes de explicar os “direitos do homem” como problema. Vamos agora, após um retrospecto sumário, apontar as implicações da nossa própria análise.

Vimos, neste sentido, que é nos quadros de uma decisão estrutural definida pelos limes do individualismo e sua concepção do mundo que os “direitos do homem” constituem ao mesmo tempo solução de um problema e condição de aparecimento de novos problemas. Isto nos permitiu estabelecer-lhes a função, tomada aqui como um esquema – significativo, que organiza um campo comparativo de relações equivalentes. Na sua inserção na problemática moderna, os “direitos do homem” assumem a antiga posição do “direito natural” – jus eminens –, mas no sentido de instrumentos de coalização de interesses rompidos com a quebra das hierarquias do mundo antigo. A estreita ligação entre “direitos do homem” e “direito natural”, interpretado, é verdade, conforme o jusnaturalismo racionalista, se revela pelo caráter de jus eminens a eles atribuído, somado à constância e invariância abstrata e formal dos seus mandamentos, qualidade esta, porém, fruto não de uma reflexão sobre a hierarquia das ordens que governam o mundo, mas primordialmente do embate e dos conflitos nascentes entre os grupos sócio-religosos, sócio-políticos e, finalmente, socioeconômicos, nos tempos modernos. Esta qualidade, conforme foi testada no correr do século XIX, revela-se, entretanto, na sua relação com o modelo organicista do sistema jurídico, uma fonte de novos problemas. O próprio século XIX, assim, de um lado acentua o formalismo do direito em geral, manifesta, de outro, um processo de historização que marca o ponto culminante e a queda da sistemática formal. A problemática contemporânea reinterpreta, nestes termos, o sentido do direito e, com isto, dos “direitos humanos”, mantendo-lhes, em princípio, a função primitiva.

Esta reinterpretação dá-se nos quadros da positivação do direito que marca os movimentos constitucionalistas atuais. Princípio básico da positivação é a delimitação de validade da norma jurídica a uma decisão, tomada num sentido mais amplo que a simples decisão legislativa. Com isto, se o direito não se reduz à lei, para ser válido, ele pressupõe uma decisão do Poder, entendido num sentido lato: órgão legislativo, ou judicante ou corpo social. Isto introduz, contudo, um novo problema, qual seja, o da decisão, elemento necessariamente instável e sujeito, no limite, à contingência do arbítrio, em contraste com as exigências estabilizantes do próprio direito. Exclui-se, em princípio, por uma necessidade sistemática, a possibilidade de fundar-se a ordem positivada num dado que lhe seja exterior, ou limitar-se, de fato, aquela fundamentação, na medida em que o “direito natural”, mesmo na palavra dos seus defensores mais radicais, subsiste, ao menos teoricamente, se aceitamos o “domínio da metafísica, rainha das ciências, e que esmorece quando o espírito humano, desesperado de sua capacidade de alcançar a verdade, se restringe a uma procura vâ e sem esperança, de meros fatos, no positivismo e no empirismo”. Sem entrarmos no mérito da questão, vê-se por aí que a própria ordem positivada se sente jungida a compensar seu fundamento “duvidoso” (Heidegger) em si própria, funcionalizando o “direito natural”, isto é, dando-lhes o caráter de postulado, ainda que imprescindível, incontornável, etc. Isto ocorre, como vimos, com a axiologização da problemática, onde os “direitos do homem” passam a exprimir a concreção de valores, supremos é verdade, mas como todo e qualquer valor, sujeito a um processo de “realizabilidade”. Se de um lado, a “realizabilidade” dos valores é instável e contingente, existe, por outro, no interior da própria dimensão axiológica um mecanismo de rigidez que absorve, eventualmente, a variança, mas, ao mesmo tempo, a solidifica: a valoração ideológica.

A valoração ideológica, contudo, como vimos, se é fato que realiza a função do “direito natural”, ao fundar os “direitos do homem” como base da ordem positivada, acaba por perverter-lhes o sentido. Essa perversão ocorre pela inversão que ela executa na relação de fins-meios entre “direitos do homem” e sua garantia. Esta inversão, por último, torna os “direitos do homem” funcionais, o que vale dizer, substituíveis, o que aconteceu e acontece, de fato, no mundo contemporâneo, desde o advento dos totalitarismos.

Isto posto, perguntamo-nos agora, qual é, efetivamente, o resultado da nossa análise? Uma resposta insatisfatória a esta questão seria confundir a análise com aquele resultado. Ao fazê-lo, estaríamos realizando também uma espécie de perversão da análise, na medida em que a teríamos funcionalizado. Se isto foi necessário, como atitude metodológica (vide: Introdução), não pode, entretanto, ser generalizado, sob pena de cairmos num círculo vicioso e trágico. Por outro lado, ignorar nossas próprias premissas metodológicas seria admitir uma incongruência, na medida em que teríamos de aceitar que o resultado da análise estaria fora dela, sendo, portanto, um dado incontrolável.

Ora, o resultado de nossa análise está, de fato, na última frase com que encerramos o parágrafo anterior. Ao afirmar que o futuro nos acena com o problema da perda da dimensão da responsabilidade humana por uma obra pela qual ele é responsável, abrimos o caminho para entender, no contexto da nossa própria análise, a eclosão de um novo problema. Com isto permaneçamos fiéis às nossas próprias premissas, mas lançamos, ao mesmo tempo, uma perspectiva que prolonga as suas consequências e as julga. Nela, os “direitos ideologizados do homem”, e com isto não estamos pensando apenas na “declaração dos direitos do homem” mas no direito em geral, perdem o último alicerce que os condicionou como problema na constelação problemática moderna e que continuou, de certo modo, a valer, na contemporânea. Referimo-nos a ideia de que o mundo é um caos (ou um conjunto de problemas) que é ou deve ser ordenado pelo mundo. Ora, a ideologização dos “direitos do homem”, ao relacioná-los às suas garantias, ao mesmo tempo em que as supervalorizam, não excluem, ao contrário, afirmam, em princípio, a responsabilidade do homem perante a sua obra. Isto entretanto é aparente, pois, de fato, esta responsabilidade já está aí esvaziada do seu conteúdo.

A noção tradicional de responsabilidade pode ser vista em relação às dimensões do tempo. É a responsabilidade perante o que ocorre, pelo que ocorreu e pelo que ocorrerá, responsabilidade ativa, que postula o justo e o verdadeiro, e incita ao cumprimento do dever (“responsabilidade instancial” – Weisser). Ela postula assim, instâncias que se apoderam do tempo e não se destroem com sua passagem. Estas instâncias vemo-las na própria declaração dos “direitos do homem”: liberdade, igualdade, pessoa, sociedade, consciência, Deus. Conforme o papel e duração de cada uma delas, a responsabilidade delineia e configura a ação, define expressamente como devemos atuar. Não levanta dúvidas, mas estabelece normas. É escatológica e chega sempre a uma instância última, que decide sem apelação. Esta responsabilidade é pressuposto essencial dos “direitos do homem” no contexto da problemática moderna.

Pois bem, no direito positivado, esta instancialização é neutralizado por um mecanismo interno – a valoração ideológica –, o que provoca um vazio no plano da responsabilidade, pois o homem se vê provocado por condições inseguras a tomar uma decisão pela qual ele responde apenas como função e não como pessoa. A pessoa, como “aquele sujeito cujas ações são capazes de imputação”, portanto, aquele sujeito "que não se submete a outras leis senão àquelas que ele próprio, só ou com outros, se dá” torna-se, pois, um simples reflexo da ordem positivada. Isto porque a ideologia retira da decisão a possibilidade de ela ser verdadeira, restando-lhe apenas a possibilidade de ser eficaz; as decisões humanas tornam-se ideológicas na medida em que, na sua função de solucionar um problema, são substituíveis. O juiz que decide não o faz como pai de família, ou como membro de um clube etc., mas como membro da magistratura, do mesmo modo que aquele que move um processo não o faz como dono de um automóvel, empregado na companhia tal, etc., mas como parte processual. A ideologia alivia a responsabilidade da carga pessoal, ao tornar as decisões socialmente funcionalizadas. Com isto, porém, a responsabilidade torna-se vazia, na medida, em que toda função é imunizável contra a crítica formal em termos de controle da correção técnica.

Ora, isto abre, sem dúvida, uma perspectiva bastante inquietadora no que diz respeito aos “direitos do homem”. Funcionalizando-se a escatologia que os explica, perde-se também a dimensão instancial da responsabilidade, no sentido de que o homem continua responsável por suas decisões, mas não há critérios – instâncias – que ele possa assumir como seus. Com isto caímos numa situação perigosa em que toda responsabilidade instancial assumida configura-se como contestação e subversão, a menos que se funcionalize e se esvazie. Daí o fenômeno curioso em nossos tempos em que todos somos funcionalmente responsáveis pelos atos da coletividade, mas a ninguém em particular – como pessoa – se pode imputar esta responsabilidade. Isto é, somos responsáveis como cidadãos, como funcionários administrativos, como membros de uma sociedade recreativa, como maiores de 18 a 21 anos, em uma palavra, como uma variável que se preenche quando assumimos uma função.

Fonte: FERRAZ JR., Tércio Sampaio Ferraz. “Perversão Ideológica dos Direitos Humanos”. In: Ciência Penal, José Bushatsky, São Paulo: 1974, pp. 397-427.

Texto organizado e corrigido por: Victor Alexandre El Khoury M. Pereira.