Os desafios para a nova Constituição

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

Quando Tancredo Neves, em plena campanha presidencial, no seu "Dis­curso de Vitória", lançou as bases da "Nova República", ouviu-se uma proclamação contundente: "A posse do presidente eleito, em 15 de março, vai marcar uma fase de ordem, de paz, de moderação, de participação e de progresso. Uma fase de avanço institucional, político e social. Ela será iluminada pelo futuro Poder Constituinte que, eleito em 1986, substituirá as malogradas institui­ções atuais por uma Constituição que situe o Brasil no seu tempo". De lá para cá, desencadeado o processo, fomos conduzidos a este projeto que agora está prestes a ser submetido à Assembleia Constituinte. Seria uma Constituição que situa o Brasil no seu tempo?

Para entender isso é preciso antes compreender os problemas e as aspirações que levaram o País a romper com o regime de 64. Sabia-se e proclamava-se que aquele regime, fortemente autoritário, resultara de um pacto político do qual fizera parte a tecnoburocracia emergente, o ca­pitalismo financeiro e as força armadas, que redundara num perfil constitucional caracterizado pela hi­pertrofia do Executivo, o centralismo dos poderes na União, o uso abusivo e seu controle de instrumentos paralegislativos (como o famigerado decreto-lei), levantando o problema de como estabelecer com eficiência o controle dos atos de governo, como reequilibrar o poder de legislar com o de administrar, como garantir a independência do Judiciário e como fazer valer efetivamente os princípi­os constitucionais sobre os arbítrios que de fato acabavam por destruir a crença na legalidade, isto é, a confiança na lei como fonte do direito. Seguia-se daí a necessidade de romper com a excessiva presença do Estado na vida econômica e social, fixando a medida desejável em que o poder público deveria intervir para 1) impedir a exploração de particulares por particulares, evitando-se os conhecidos escândalos financeiros de entidades privadas inescrupulosas, 2) propiciar condi­ções para o desenvolvimento da economia e controle da inflação, 3) arbitrar (ou não) as relações de trabalho. Por fim, sentia-se a neces­sidade de uma revisão da ordem eleitoral e partidária, que propiciasse ao regime a estabilidade política correspondente.

Para enfrentar tudo isso passou-se a exigir uma fórmula capaz de ser fiel, simultaneamente, às demandas sociais generalizadas e às exigências da técnica constitucional, o que significa evitar o fantasma de uma tecnologia constituinte e a tentação de um constitucionalismo populista.

Entre esses dois pólos, o projeto do relator acaba se ressentindo um pouco de ambos. Existem opções de ordem técnica, de inspiração diversa e buscadas em paradigmas constitucionais de outros países que inflam o texto com boas intenções, mas que, diante da realidade, podem constituir uma espécie de bolsões burocráticos que se preenchem do conhecido empreguismo clientelístico de alto nível. Embora ditados com objetivos técnicos saudáveis, figuras como o defensor do povo (art. 27) ou o conselho da república (art. 118) ou o conselho da defesa nacional (art. 120), no confronto com o patrimonialismo político nacional, em que o cargo é prestígio e fonte distribuidora de benesses, certamente desembar­carão na valeta comum dos organis­mos que existem para não funcionar ou que "funcionam" de uma forma perversa. Ao invés de racionalizarem a estrutura criam entraves e aten­dem a interesses pessoais, familiares etc. De outro lado, a tendência em acolher inúmeras propostas que bem poderiam ser deixadas para a legis­lação ordinária demonstra, em parte, um forte componente populista, em parte uma descrença na lei como manifestação estável do direito. No primeiro caso, caminha-se para a exacerbação da concepção assisten­cial do Estado, visto como um imenso agente de serviços respaldado por garantias que se multiplicam por todo o texto. No segundo caso, temos um enrijecimento do ordenamento jurídico, que poderá repercutir des­favoravelmente no atendimento de demandas complexas que exijam maleabilidade política.

O perfil constitucional que se dese­nha tende, assim, a ampliar o Estado como criador de demandas adicio­nais quer através de déficit público não voltado para investimentos pro­dutivos quer de manobras monetári­as, obrigando-o a mediar, em condi­ções cada vez mais difíceis, entre as exigências de desenvolvimento e a manutenção de posições e interesses privilegiados. Isto se vê agravado pela proposta parlamentarista de governo, que transforma, é verdade, o Congresso num centro político fundamental, mas com uma compo­sição regional desigual, com prepon­derância de lideranças econômicas e sindicais mais ligadas a economias fortemente subsidiadas e sindicatos que só têm força se apoiados no braço intervencionista da burocracia estatal.

Por fim, nada garante que a eficiência no controle dos atos de governo venha a ser implementada. Ao contrário, basta ver a brecha que se introduz no art. 94 que representa, com outras palavras, a figura do decreto-lei, chamado agora de "me­didas provisórias, com força de lei", as quais têm por requisito apenas a "relevância e a urgência". É verda­de que se invertem, em relação ao decreto-lei atual, as suas condições de eficácia, pois, se não forem convertidas em lei, em trinta dias, perderão aquela eficácia desde a sua edição. Mas, se pensarmos no que pode suceder nesses trinta dias, nas inúmeras relações jurídicas que se criam e então se desfazem por força do dispositivo, pode-se ter uma ideia do caos que isto poderá gerar, bem como das fortes pressões que os interesses exercerão sobre a necessi­dade, então, de novas ''medidas provisórias", num processo sem fim e incontrolável.

Em que pesem todas essas obser­vações, é preciso que se repita: uma constituição não é apenas um texto, mas sobretudo uma prática. Qual a prática que prevalecerá, eis uma indagação em aberto.

Fonte: FOLHA DE S. PAULO – Domingo, 6 de setembro de 1987 – POLÍTICA – 1O caderno.