O Oficial e o Inoficial - ensaio sobre a diversidade de universos jurídicos temporal e especialmente concomitantes

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

O Oficial e o Inoficial - Ensaio sobre a Diversidade de Universos Jurídicos Temporal e especialmente Concomitantes - Tercio Sampaio Ferraz Jr.
1. O Problema

Constitui uma repetida e acatada tese a afirmação de que o direito das sociedades desenvolvidas se caracteriza, entre outras coisas, pelo monopólio da violência, donde se segue a concentração centralizante do poder e a unidade sistemática do seu universo. Não há dois senhores como não há dois direitos que se contraponham perpetuamente. Mesmo concepções pluralistas não deixam de recorrer ao princípio da unidade ainda que afirmem a multiplicidade dos valores, dos interesses, das situações, das normativizações. De qualquer modo, o império prevalecente da certeza e da segurança jurídicas, a supremacia de certos interesses, como o público sobre o privado, a dignidade da justiça como uma constante realização do bem comum ou a presença de normas primeiras e a fundamentar hierarquicamente o ordenamento constituem, até entre os pluralistas, a retórica usual do seu universo discursivo.

Estas concepções são fortalecidas e implementadas pela própria Ciência Dogmática do Direito na qual, por exemplo, a ideia corrente de que o direito está a serviço da justiça permite a canalização absorvente de diversas e variadas pretensões sociais para um endereço único. Neste sentido observe-se que a definição dominante de justiça, abstração feita de suas variações materiais, é dada pelo esquema da igualdade/desigualdade, como na conhecida fórmula "tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente". O esquema adapta-se a uma espécie de operacionalização da multiplicidade em termos de unidade, permitindo classificações dicotômicas e hierarquizantes, capazes de responder, então, a perguntas postas na forma de dualidades: houve apropriação ou não? há propriedade ou posse? discute-se a propriedade ou só a posse? a aquisição é viciosa ou legítima? houve esbulho ou não? Tais questões, em nome de um princípio concebido de modo suficientemente abstrato, podem assim ser tratadas de modo universalista (cf. Luhmann: Rechtssystem and Rechtsdogmatik, 1974, p. 29), ou seja, conforme critérios internos do sistema jurídico, sem prender-se primariamente a situações concretas, mantendo-se a idéia de que o direito, com todas as variações, é sempre, num espaço e tempo, um só.

Esta orientação universalista da dogmática jurídica institucionalizada em larga medida na consciência jurídica dos grupos social, política, cultural e economicamente dominantes é típica nas sociedades complexas do Ocidente. Ela permite, na verdade, que, por exemplo, as chamadas sociedades industriais tenham sido e sejam ainda capazes de absorver enormes incertezas e diferenças sociais, no sentido de que, através dela, se mentalize a pressão imediata exercida pelo problema da distribuição social do poder e dos recursos, transportando-a para dentro do sistema jurídico no qual ela é, então, mediatizada e tornada abstrata, facilitando a sua operacionalização e controle.

Não resta dúvida de que o desenvolvimento social exige, no universo jurídico, tanto ao nível da sua dogmática, quanto da elaboração espontânea dos agentes sociais, um processo de especificação contínua, que vai esgotando a operacionalidade de fórmulas, conceitos, idéias, ou ultrapassando-os ou reduzindo-os a formulações de abstração crescente. Sua função, neste último caso, se limita à manutenção de uma unidade quase que meramente formal, mas de grande força para o exercício da dominação, posto que, paralelamente à unidade do sistema, existe também a tendência para o monopólio da interpretação do sistema. Por exemplo, o Estado regula, hoje em dia, a economia em todos os seus aspectos, quer através da execução de políticas fiscais e monetárias, quer pelo controle do câmbio, do crédito e de todo o processo produtivo, criando-se sempre novas e diferentes formas de licença, quotas, proibições prévias, incentivos, etc. Como a injunção de novas situações ditadas por esse crescimento da intervenção do Estado no domínio económico tende a implodir o universo unitário a que nos referimos, a tendência é a de se criarem formulações mais abstraías, capazes de explicar a quebra de hierarquias rígidas dominadas pelo princípio da legalidade, sem abandoná-las porém. O recurso a noções abertas do tipo "segurança nacional", "a preservação da ordem pública", "a eficiência da administração" é típico, neste sentido.

Admitindo-se que este seja o universo dos grupos socialmente dominantes, podemos afirmar que ele atua, como uma espécie de padrão, em dois níveis. Num primeiro plano, ele opera no sentido de modelar os fatos sociais que não são jamais o que são, mas sempre, numa unidade difusa, o que devem ser, seja pela relevância dada a certos aspectos, seja pelo esmaecimento de detalhes. Num segundo plano, isto se acentua, pois ele se torna intencionalmente parcial e aproximativo, mas, ao mesmo tempo, abstratamente global e integrador. Deste modo, o malogro eventual do padrão, no segundo plano, esconde o malogro no primeiro, criando a ilusão da totalidade perene e segura que se expressa, por exemplo, em fórmulas do tipo "natureza humana", "natureza das coisas", "a vida é assim mesmo", "isto sempre existiu", etc.

Disto decorre, a nosso ver, uma enorme dificuldade para o analista, quando este se dispõe a detectar, para além do universo dominante, do qual ele próprio faz parte, a presença de outros universos contrapostos, diferentes ou complementares. Neste sentido a tarefa que nos propomos, ao examinar a existência de outros universos jurídicos que equacionem de outro modo os conflitos individuais ou coletivos em que quotidianamente se envolvem os agentes sociais, tem, como ponto de partida, uma dúvida inicial a ser suplantada: existem estes universos? Esta dúvida não pode, no presente estado, ser assumida teoricamente, sob pena de desviar o objetivo do estudo. Ela tem de ser colocada entre parênteses, através de um postulado que afirme aquela existência, admitindo-se, por conseguinte, a possibilidade de um pluralismo não redutível a uma unidade, por mais abstrato que seja seu princípio unificador. Isto posto, há a necessidade de se definir o universo jurídico prevalecente para contrastá-lo com os não prevalecentes. Em seguida passar a um exame de casos empiricamente levantados para ali ensaiar um projeto de análise plural, capaz de pôr em relevo as suas diversas determinações. Os casos mencionados se referem à pesquisa em curso na Universidade Federal de Pernambuco, a propósito de conflitos de propriedade produzidos por invasões de terrenos urbanos na área do Recife, por parte de populações de baixo e ínfimo nível aquisitivo. Dos casos levantados pela pesquisa restringimo-nos ao 1) da Vila das Crianças, em que uma propriedade privada invadida por 300 famílias de baixa renda ocasionou ação de reintegração de posse pela empresa proprietária, com a remoção e expulsão dos invasores por força policial (Bairro dos Afogados, Recife, outubro-dezembro de 1979); 2) da Rede Ferroviária, em que a invasão de propriedade pertencente a empresa pública (Rede Ferroviária S.A.) foi contornada através da negociação e indenização, removendo-se a maior parte dos invasores (Bairro de Imbiribeira, Recife: maio de 1979 até hoje); 3) do Skylab, caso de invasão de propriedade privada por 300 famílias de baixa renda, em que, inicialmente foi utilizada força particular e policial e depois negociação, formando-se então, com os invasores um contrato de locação do solo invadido, permanecendo os invasores no local (Bairro de Casa Amarela, Recife: julho de 1979); 4) da Vila Camponesa, caso de invasão de propriedade pública federal e estadual (CHESF e CELPE) por 2 mil famílias de baixa renda, em área localizada sob fios de alta tensão, em que uma ação de reintegração de posse está ainda pendente (Bairro do Curado, Recife, novembro de 1979 até hoje); 5) do Dendê, caso de invasão de terreno pertencente à Prefeitura Municipal do Recife por 24 famílias de baixa renda, com tentativa de expulsão e ameaça de derrubada dos mocambos, estando as medidas suspensas atualmente (Bairro dos Afogados, Recife; outubro de 1979 até hoje).

2. O Processo Estrutural-Funcional do Direito-Instituição

O intrincado das relações jurídicas numa sociedade dada não pode ser percebido sem uma prévia tomada de posição teórica. A proposta mesma de se admitir universos jurídicos concomitantes e diferentes num mesmo espaço e tempo não é hipótese simples de ser afirmado sem que antes se passe por algumas reflexões.

Na verdade, a intuição social do direito e do seu oposto, ou seja, do jurídico e do antijurídico, passa por processos progressivos de diferenciação social. Como se sabe, em sociedades primitivas, com baixa quota de complexidade, as pretensões normativas têm, em geral, uma imediatidade expressiva. Isto é, ou estamos no direito, ou estamos excluídos socialmente. Não há lugar, no complexo social, para o. não-direito. Daí uma certa confusão entre o ilícito e o estranho. Não participando o estrangeiro do mesmo universo social, ele está automaticamente, identificado com o não-jurídico. Mesmo internamente as penas para infratores têm o sentido da purificação, da expiação, o que significa o retorno à comunidade e à comunhão indissolúvel dos espíritos. Neste universo, a negação do direito, o comportamento infrator é a própria destruição do direito e da sociedade que com ele se confunde. Viver juridicamente é viver socialmente e vice-versa.

É num processo às vezes lento de diferenciação social que infração e culpa (pecaminosa), ser estrangeiro (ou estranho) e comportamento ilícito, pena e expiação vêm a diferenciar-se. A ideia mesma de um direito da sociedade ao lado de um direito das gentes marca já um adiantado processo de complexidade social crescente. Paralelas a ela é que as pretensões normativas, que nas sociedades primitivas têm a mencionada imediatidade expressiva, perdem esse caráter, relacionando-se, então, a regras e valores aceitos por todos, na expectativa de continuidade da vida social. Com isso são criadas condições para que o chamado comportamento desviante tenha também o seu lugar dentro da sociedade, permitindo-se ao delinqüente uma argumentação com os mesmos valores e regras, no intuito de neutralizar, simbolicamente, seu próprio comportamento. É este procedimento que conduz à especialização de juízos e tribunais, como estruturas diferenciadas, induzindo a uma verbalização e uma reflexão da própria imagem da sociedade que se julga a si mesma através de processos jurídicos.

Nestes processos, o juiz, que não é mais um mágico nem um guarda de rituais, torna-se alguém que decide e responde por sua decisão enquanto juiz. Para que isto seja possível, o direito tem de alcançar, como de fato alcança, um nível de abstração maior, tornando-se um regulativo abstrato, capaz de acolher indagações a respeito de divergentes pretensões jurídicas. Ou seja, o direito assume a forma de um programa decisório em que são formuladas as condições, na forma de premissas, para uma decisão correta. Na verdade, é sob a proteção de um domínio politicamente diferenciado que se desenvolve, então, o poder de argumentar e de provar, regras e princípios, figuras e meios de interpretação, instrumentos de persuasão, etc. Socialmente, este aparato argumentativo se separa do próprio direito, permitindo, assim, que o direito em si não seja visto sob a forma de luta, em termos de uma espécie de guerra entre o bem e o mal. Ao contrário, ele é assumido como uma ordem reguladora, dotada de validade para todos, uma instância superior em nome da qual se discute e se argumenta. Em outras palavras, as figuras construtivas de argumentação sobre e com o direito deixam de ser parte imanente da ordem jurídica para serem mediação entre esta e as decisões concretas (cf. Wolfgang Kunkel, An Introduction do Roman Legal and Constitutional History (trad. J. M. Kelly) 1975, p. 84 m.).

Este distanciamento dos procedimentos decisórios concretos em relação à ordem normativa é marcado por uma importante distinção entre as chamadas questões de direito e as questões de fato. Com ela torna-se possível que não se veja o direito como assentado concretamente nos próprios eventos, mas em normas tomadas como critérios para o posterior julgamento à vista dos fatos. Ou seja, o estabelecimento de fatos relevantes para o direito passa a ser uma questão jurídica e não um problema imanente aos fatos. Na realidade, é nesse estágio que a expressão "aplicação do direito" toma um sentido autêntico.

Há, aí, além disso, uma variável política que não pode ser esquecida. Numa sociedade em que o aparecimento de mercado permite a equalização das necessidades econômicas entre não-parentes, o domínio político já se localiza em centros de administração. O primado do centro político na funcionalização da sociedade é um dado importante para compreender-se a conjuntura jurídica. Afinal, o estabelecimento da vida social torna-se ligado a transformações relevantes, surgindo uma fórmula que domina o pensamento juspolítico: polis ou sociedade política, civitas ou societas civilis, que, paulatinamente, conduz ao Estado e à ideia de institucionalização do direito em relação aos homens enquanto homens – o homem enquanto ser livre. Uma segunda institucionalização ocorre paralelamente à forma de domínio, ordem hierárquica de prestígio que atravessa tanto as diferenças políticas, quanto as econômicas, as militares, as culturais, etc., conduzindo a mecanismos secundários, como símbolos de status, modos distintos de comunicação, linguagem própria, consciência de classe, etc. A essas diferenças hierárquicas seguem-se, ainda, diferenças nos papéis sociais, que também são hierarquizados, com normas e liberdades diferentes. Correspondentemente, temos, então, estruturas assimétricas de comunicação: ordens de cima e obediências de baixo. Por último, temos fórmulas decisórias de validade permanente, que não ficam presas ao ocasional, mas aspiram a uma validade intemporal '(cf. Max Weber: Wirtscraft und Gesellschaft, 1976, p. 464 ss.).

O Direito, diante desta diferenciação funcional, apóia-se na institucionalização de certas possibilidades de escolha numa forma de liberdade. Tal escolha se refere à execução de procedimentos decisórios jurídicos e à consistência, independente da situação concreta, de uma hierarquia burocrática que decide e impõe decisões s«m a necessidade de recorrer ao concreto das relações. O direito se torna, assim, um complexo de expectativas normativas (Luhmann) que se manifesta através de jurisdição e que tem de ser legitimado. É aqui, justamente, que surge uma peculiar relação entre autoridade e decisão concreta, que deve ser esclarecida.

3. Relação de Autoridade e Direito Oficial

A situação acima descrita projeta, nas modernas sociedades ocidentais, uma ideologia justificadora que se agrega à própria situação e a reforça. Segundo essa ideologia (antes referida sob o nome de "padrão" que atua em dois níveis), o direito se instaura para o estabelecimento da paz, a paz do bem-estar social, a qual consiste não apenas na manutenção da vida, mas da vida mais agradável possível. Através de leis fundamentam-se e regulam-se ordens jurídicas, que devem ser sancionadas, o que dá ao direito um sentido instrumental que deve ser captado como tal. As leis são assumidas como tendo, em essência, um caráter genérico e formal, que garante a liberdade dos agentes sociais no sentido de disponibilidade. É a liberdade burguesa, típica dos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Nestes termos, reconhece-se uma oposição entre os sistemas formais do direito e a própria ordem vital, possibilitando um espaço juridicamente neutro para a perseguição legítima da utilidade privada. Acima deste espaço, o pacto e a soberania, como categorias máximas, unem-se para fundar a obrigatoriedade da obediência. O domínio legitimado organiza a ameaça da violência e o uso do poder dentro da sociedade política.

Esta concepção ideológica não é necessariamente estática. O próprio crescimento da complexidade social nas sociedades industriais faz do ato legislativo um processo de contínua mudança, crescendo, concomitantemente, a disponibilidade temporal do direito, pois sua validade é também maleável, podendo ser limitada no tempo, adaptada a prováveis necessidades futuras de revisão, possibilitando, assim, um alto grau de pormenorização dos comporta-mentos como jurisdicizáveis, não dependendo o caráter jurídico do caráter de algo que tenha sido sempre direito. O direito é, assim, também um instrumento de modificação planificada da realidade, abarcando-a nos seus mínimos aspectos.

Ora, esta aparente oposição entre o direito como um sistema formal diferenciado da ordem vital, de um lado, e o direito como instrumento de planificação, de outro, ou seja, entre a necessidade de um espaço juridicamente neutro para a perseguição legítima da utilidade privada e a absorção concreta de todas as formas vitais pelo direito, enquanto instrumento planificador, coloca a questão do âmbito do jurídico e do jurisdicizável em oposição ao não jurídico, do direito oficial e do "direito" inoficial, de modo peculiar. Para intendê-la faz mister uma referência à própria relação de autoridade jurídica como uma forma de controle de comportamento.

Este controle pode, socialmente, ocorrer de diferentes modos: pelo uso da força, por uma superioridade culturalmente definida, por uma característica idiossincrática da relação (exemplo: pais e filhos). O controle jurídico de alguém sobre alguém, de um grupo sobre um grupo, etc. Vale-se de referência básica a um terceiro: o juiz, o mediador, o legislador ou, despersonalizando, a norma. O controle através da norma permite a imposição de significações :como legítimas, dissimulando as razões de força que estão no fundamento da própria força e a ela se agregando. Através desta imposição o editor normativo exerce sobre os sujeitos uma relação de autoridade que assim se determina: qualquer endereçado de uma norma pode reagir de três modos: ou confirmando a ordem, ou rejeitando-a, ou desconfirmando-a. Confirmação é uma resposta afirmativa. Rejeição é uma resposta negativa. Desconfirmação é uma resposta desqualificadora. Pois bem, uma relação de autoridade existe na medida em que se neutraliza a resposta desqualificadora: O direito pode ser negado mas não pode ser desacreditado. Daí a existência de presunções do tipo: ninguém pode alegar ignorância da lei, o universo jurídico é um universo completo, o que não está proibido está juridicamente permitido, etc.

No âmbito desta relação de autoridade em que a desconfirmação é desconfirmada como tal e assumida como negação, o jurídico aborda, como diz Kelsen, tanto o lícito como o ilícito, não havendo espaço para um terceiro. Entende-se, assim, que o direito ao mesmo tempo garanta um espaço juridicamente neutro para a perseguição da utilidade privada (o âmbito da permissão negativa ou daquilo que não está proibido), garantindo também a absorção concreta de todas as formas vitais (tudo está regulado, ou positiva ou negativamente). Neste quadro, o âmbito do proibido, do obrigatório e do permitido esgota as possibilidades de comportamento que, lícito ou ilícito, é sempre jurídico.

Formalmente, este é o direito e não pode haver outro, cujo reconhecimento implicaria a paradoxal aceitação de desconfirmação da autoridade. Este único direito é, com todas as características anteriormente descritas, o direito oficial. A possibilidade ideologicamente impossível de um outro "direito" seria o "direito" da desconfirmação, o "direito" inoficial. Concretamente ele existe, mas ideologicamente ele é dissimulado, desacreditado como tal e absorvido pelo único direito.

Isto posto, é nossa intenção agora examinar os casos mencionados no parágrafo n.° l, com o fito de observar como manifestações de um "direito" inoficial ocorrem apesar da sua impossibilidade ideológica, como ocorre a sua absorção pelo direito oficial e, eventualmente, quais os limites desta absorção a provocar crises estruturais num universo jurídico dado.

4. Às Manifestações de um "Direito" Inoficial nos Casos de Invasões Coletivas de Propriedade na Região do Recife

A manifestação tipologicamente mais fácil de ser percebida de um "direito" inoficial refere-se à guerra revolucionária, à tentativa de substituição de uma ordem instituída por outra. Mesmo nesses casos, porém, o universo jurídico oficial tem meios para absorver a ação revolucionária desconfirmadora quando fala, por exemplo, em "direito de rebelião", quando discute a legitimidade da chamada "desobediência civil", etc. Nestes casos estamos diante de contestações assumidas, em que a desconfirmação é exercida intencionalmente. As noções de "direito de rebelião" paralelas ao de "crime político" mostram, de qualquer modo, a tentativa de absorção por parte do direito oficial do ato desconfirmador, de tal modo que tudo adquire sentido (lícito ou ilícito) dentro do seu universo.

Os casos que vamos examinar, entretanto, são diferentes destes exemplos por assim dizer clássicos e de mais fácil percepção. Isto porque se trata de desconfirmações mais sutis, não intencionais, não assumidas como tais, em que a retórica desconfirmadora se utiliza dos mesmos instrumentos do direito oficial, distorcendo-lhes o sentido de modo quase imperceptível. Na verdade, o irrompimento de um "direito" inoficial quase não se nota ao nível dos argumentos, das negociações e dos procedimentos, revelando-se antes pelas crises intermitentes que vão ficando na sua esteira. Além disso, os atores sociais se comunicam através de intermediárias, cujas mediações obscurecem ainda mais o earáter inoficial do "direito" latente. Assim, por exemplo, nas invasões de propriedade que vamos examinar, a população de favelados conta com o auxílio de advogados ligados à Igreja, proprietários usam a complacência de autoridades, criando uma gama complexa de relacões em que o inoficial conhece diferentes matizes.

Para efeito de análise, com o fito de evitar a dispersão, vamos concentrar nosso interesse em alguns focos nucleares. Dentre da temática geral do direito de propriedade que ocupa centralmente as disputas entre invasores e proprietários, nossa atenção estará voltada, em conformidade com o modelo teórico anteriormente desenvolvido, para os seguintes temas: em primeiro lugar, gostaríamos de examinar a noção de infração e culpa tendo em vista uma configuração da ilicitude: o conceito-chave em torno do qual trabalharemos será, para este propósito, o de invasão; em seguida observaremos o comportamento social em face dos procedimentos decisórios, dando relevância à questão do distanciamento entre o fato concreto e a sua qualificação jurídica, abstrata e geral; por último preocupar-nos-emos com a própria relação de autoridade e seus corolários mais importantes, a legalidade e a legitimidade.

4.1. Licitude e ilicitude na concepção de invasão

Nos quadros do direito oficial, a invasão da propriedade é uma modalidade de usurpação de propriedade imóvel, tipificada no artigo 161, II, do Código Penal, sob o nomem juris: esbulho possessório. Os elementos essenciais do crime são, basicamente, a invasão de prédio (terreno ou edifício) alheio, o emprego de violência ou grave ameaça ou concurso de duas ou mais pessoas e a finalidade visada: ocupação do imóvel para aí comportar-se como se fosse dono. No seu fundamento está o próprio direito de propriedade tradicionalmente: aí compreendidos o uso, o gozo e a disposição dos bens, fundados em formas de aquisição legítima. Além disso, também a posse enquanto exercício pleno ou não de alguns dos poderes inerentes ao domínio. Importante ainda o caráter justo da posse, aquela que não é violenta, clandestina ou precária, bem como a presunção de boa fé, quando se trata de possuidor com justo título.

Nos casos que estamos examinando, o direito de propriedade era exercido conforme o direito oficial. O reconhecimento disto é, em linhas gerais, perceptível tanto da parte dos invasores, quanto dos proprietários ou dos funcionários do aparelho jurídico oficial (judiciário, polícia, administração) ou de advogados e intermediários. Entretanto, na configuração da invasão, as nuances começam a aparecer, a ponto de introduzir, na consciência jurídica oficial, alterações importantes.

Da parte dos favelados, três são os principais motivos apresentados para justificar a invasão. O primeiro deles podemos qualificar como o de uma permissão expressa. Isto se vê nas suas próprias declarações: "A principal razão de termos invadido o terreno foi o pronunciamento feito pelo Presidente - todas as áreas abandonadas, que não tivessem muradas e que não tivessem sendo lotadas então podiam ser habitadas" (Líder no caso da Vila das Crianças). Referia-se a um discurso feito por João Batista Figueiredo, fato reconhecido pelo juiz de direito, que julga os feitos, no caso em tela, do seguinte modo: "Soube, extraprocesso, extra-autos, que o Presidente teria dito que – aí tem tanta terra vazia, porque vocês não moram lá? E disto ficou sabendo esta população pobre. Eu acredito que ele tenha dito mesmo, é um sujeito muito alegre e extrovertido e depois o repórter insufla, como de costume... O segundo motivo qualificaríamos como o de uma permissão implícita. No dizer de uma moradora: "eu vi que depois de 10 anos que o terreno esteja desobrigado, o terreno pode ser ocupado" (caso Vila das Crianças). O terceiro chamaríamos de situação de fato, ou como disse um membro de comissão de moradores no caso Skylab: (o que determinou a invasão) "foi a necessidade, porque as pessoas vivem ai sem emprego mesmo, casa cheia de filhos, pagando aluguel e quando não pagava, no outro dia o cara tava na porta, querendo botar ele pra fora, ameaçando polícia".

Os três motivos têm pesos diferentes no que diz respeito à consciência da infração. O primeiro deles supõe o elemento pessoal, a força da autoridade constituída, mas tem a fragilidade da desconfiança. A ordem permissiva parece clara mas, nos quadros do direito oficial, no qual deveria estar inserida, tem, mesmo para o favelado, um aspecto contraditório em face das instituições. Como conta um deles: "Foi assim, a gente tava em casa, ouvimos uma voz pelo rádio e o repórter falando que onde existisse terra sem ser cercada nem murada, a família pobre que não tivesse uma casa para morar podia fazer o seu mocambozinho; então houve um grupo de amigos aqui no Alto do Brasil que ouviram bem a voz e saíram de porta em porta, chamando, incentivando; uns queriam outros não queriam, tinham medo". Na realidade o que move é a ação coletiva, que gera, porém, uma incerteza. De um morador: "Aí chegaram os donos dizendo que a terra era deles. Eu disse: cidadão, eu to aqui por causa dos outros, mas se é assim eu vou-me embora". Na verdade, este ir com os outros, fundado numa permissão expressa de que ouviu falar ou que foi reportada, produz uma certa irresponsabilidade do ato invasão, do qual se tem consciência. Morador (Vila das Crianças): "Disseram acolá onde eu moro: tão invadindo ali. E eu com cara de rapariga fui invadir. Aí tomei no papeiro. O povo diz – isso aí não tem dono, vá também. Vá que você não perde seu trabalho. Mas moça. .. eu caí na besteira".

O segundo motivo, a permissão implícita, parte de um entendimento próprio do direito oficial. Na suposição de que a interpretação é correta, a invasão se descaracteriza como tal, provocando tolerância quando se dá conta de que não é como se pensava. Da mesma moradora supracitada: "Eu vi que depois de 10 anos que o terreno esteja desobrigado, o terreno pode ser ocupado. Fui a primeira a chegar aqui e estou tranquila dos meus direitos... Os donos são os herdeiros de Fernando Rodrigues, isto aqui é posse. A terra é de marinha e nós somos posseiros". Depois, quando houve o despejo por ordem do juiz, embora reclamassem contra a forma – derrubada das casas e prazo curto para saírem – moradores havia que reconheciam: "mas que o juiz tá certo tá, o juiz autorizou o despejo, mas assim não, agressivamente", "mas é isso mesmo, quem vai atrás da terra dos outros... quem faz de cachorro gente fica com os rabos nos dentes".

O terceiro motivo é o mais forte. A situação de fato, como aliás o próprio direito oficial reconhece, pode até gerar direito. Mesmo contra legem, como assevera Kelsen na sua Teoria Pura. Nos casos expostos, a necessidade parece suplantar tudo. Vide, por exemplo, os seguintes testemunhos: "A reação do proprietário era porque a terra desabitada pra ele tava rendendo muito mais. Queria defender a terra dele, ele tinha era que agir daquela maneira pra ver se a gente desistia; se desistisse, ele ganhava o lucro porque a terra tava desabitada. Eu não posso julgar isso pelo um direito porque a necessidade da gente tava maior que a deles". A última afirmativa é decisiva. O direito oficial ("um direito") não suporta a necessidade que é capaz de arrastar tudo: "Eu tava numa grande necessidade; quer dizer que todos a gente arriscou, podia até apanhar da polícia, ser preso ou morrer, mas pelo uma grande necessidade". A necessidade mencionada não é apenas de ordem material. Há também a pressão moral, a dignidade social, cuja força é equivalente: "Só tenho fé em Deus de não pagar mais aluguel. É uma humilhação ser cobrado todo dia sem ter dinheiro. Os vizinhos ficam sabendo... Não me importa de ir para o Ibura, não escolho lugar. Eu quero um canto que não me expulsem nem venham cobrar aluguel".

Quando o motivo é do primeiro tipo, não há consciência de um "direito". O caráter infrator fica. A prevalência do direito oficial tem de ser contornada. E isto ocorre com a ajuda de intermediários que fazem, por assim dizer, a acomodação. Como diz um membro da Comissão de Justiça e Paz, no caso Skylab: "O grande gerador de tensão em todo este conflito foi a defesa da propriedade privada". E outro (Dom Helder) disse: "Não reajam e permaneçam dentro de suas casas. Se existe uma lei da propriedade privada, existe o direito a uma casa própria... A gente sentia que eles (o povo) estavam convictos de que tinham direito a ter uma casa". E o presidente da Comissão: "Se se começa a raciocinar muito em termos de lei, nem se discute Skylab... Tem que ver a coisa num contexto mais amplo... O ideal é quando o povo puder caminhar com suas próprias pernas". O mediador percebe a incongruência dos dois mundos e tenta criar a ponte. Como diz um seminarista: "Eles (os diretores, falavam de uma maneira que o pessoal não entendia: não só a linguagem técnica, mas são as palavras de dia de domingo, como o povo chama... O fato é que tinha dois mundos numa sala, dois mundos a partir da ideologia". Da parte dos invasores ocorre, então, o recurso paternalista à autoridade constituída, na forma de um apelo e de uma esperança: "não acredito que o juiz mandou ordem pra derrubar, ele não vai dar essa autoridade. Sem prazo? Ele é humano. Ele pode muito bem pensar e tá dentro do direito, dentro da lei – nunca ia fazer isto" (Skylab). Ou ainda: "Aí chegou o dono do terreno. Foi uma derruba. Aí viemos para cá. Quando apareceu o fiscal, disse que isso é da Prefeitura e que a gente ficasse" (Dendê). Gente correu para o Dendê. Não soube de derrubadas por lá. Lá é terra da Prefeitura, não tem problema (Vila das Crianças). Ou então; "e eles são vereador, candidatos, precisa de voto pra dar ao governo e aí o governo precisa da gente. Espero que o governo resolva" (Vila das Crianças).

Se o motivo é do segundo tipo, o caráter infrator do ato não se configura, porque surge a consciência de um direito, precário, é verdade, mas nos quadros de um suposto direito oficial. Na realidade, este caso enseja inclusive uma série de elaborações, análogas às que ocorrem no universo jurídico vigente. Desta forma, a possibildiade de oposições de direitos e interesses se organiza, dando margem a um subproduto jurídico bastante peculiar: "Eu acho assim, se esses terrenos são vazios há tantos anos, esses homens não faz nada do terreno, se aqueles pobres que precisam não têm onde morar..." O raciocínio da moradora, porém, se interrompe. Ela então reflete sobre a propriedade e diz: "Agora, tomar a terra deles, não". Entretanto, continua, se a invasão que houve foi devida ao abandono e isto não gera direito, há a possibilidade de se pagar pelo uso, então, um direito se cria e a infração desaparece: "mas a gente vai pagar o foreiro... A terra não é deles? A terra é deles, não é da gente. O mocambo é da gente, a terra é deles. Se estes terrenos estão desocupados, tem nada de mais que o povo invada. Quanta gente aí anda na rua? Eu não acho errado não" (Skylab). No caso da Rede Ferroviária, a elaboração para-jurídica é ainda mais patente, apagando o caráter infrator do ato: "Eu não seu invasora. Comprei minha casinha. Tá bom que a Rede precisa das Terras, mas nós temos direito a uma moradia decente". Ou como diz outro morador, mostrando claramente que o entendimento é no sentido de separar a propriedade do solo e a da habitação: "To num lugar que o terreno é dos outros, mas a casa que tô é comprada. Logo não me chamem de invasor" (irritado).

Quando o motivo é do terceiro tipo, situação de fato, não há consciência da infração e o "direito" que daí surge não é definida nos quadros oficiais pelo invasor. Por assim dizer, ele é invasor. Mas a invasão não é infração. E o fato lhe confere um "direito" inoficial. Este "direito" inoficial tem nuances próprias e está intimamente ligado à necessidade que é sua fonte emanadora. Diz uma moradora (Skylab): "Pelo uma parte eu não sou contra os donos da imobiliária, ninguém quer ter o seu para ser invadido assim... Todos tiveram necessidade de fazer isto. Ninguém, tendo casa própria, tendo de que viver, ia se apossar de uma coisa impossível... Se meu marido tivesse um emprego eu não tinha necessidade de invadir o que é dos outros". O argumento se completa com o que diz outra moradora: "Se isso é uma necessidade de quem não tem casa própria, acho que a gente fez um direito". Este "direito", porém, não é absoluto. De um lado, ele tem de ser regulado. Ou melhor, ele gera o direito de fazer um acordo e de pagar: "... (a gente) teve o direito de fazer (a invasão) porque se a gente tá pagando a eles... Agora, invadisse e não fizesse acordo nenhum com a imobiliária, tá certo, porque eles são donos". De outro, ele exclui a pseudonecessidade: "mas eu sei que por aqui tem muito explorador de casa, gente que invade sem precisar, só pra ganhar dinheiro" (CHESF — Vila Camponesa).

Pelo que observamos, quer-nos parecer que, no que se refere à relação de autoridade, cuja manutenção é necessária à prevalência do direito (oficial), o primeiro tipo de motivo para a invasão configura uma rejeição, não destruindo a autoridade, mas, ao contrário, reforçando-a. O segundo tipo, porém, sob a aparência de uma confirmação do direito oficial introduz uma sutil desconfirmação, pois, ao reinterpretá-lo, o desorienta. O terceiro é uma desconfirmação camuflada por um principio que não se explicita, mas que está presente a todo momento: "Esta ordem, do jeito que está, é injusta e não há por que respeitá-la". A desconfirmação, porém, que percebemos nos dois últimos tipos, não é suficiente para configurar um "direito" inoficial. Para percebê-lo é necessário verificar, agora, o tipo de resposta oferecida pelo direito oficial, conforme a atuação dos demais agentes sociais.

4.2. O comportamento social em face dos procedimentos decisórios e a qualificação jurídica, abstraía e geral

"Não cabe à justiça resolver probleminhas sociais, mas garantir o primado da lei". Este testemunho de um dos juizes envolvidos nos processos suscitados pelos casos examinados retrata simbolicamente a resposta oficial do direito oficial. Neste sentido, de um lado, ao nível da vivência social do cotidiano, o direito se revela como um conglomerado de símbolos e ideais não coerentes que o homem comum percebe como incoerentes quando se envolve, por exemplo, num processo judicial, e vê-se confrontado com o direito dos outros. De outro lado, porém, é impensável que o direito admita, oficialmente, que ele se move em múltiplas e incoerentes direções, até como condição para satisfazer os valores emocionais e os interesses em conflito numa sociedade dada. Como observamos anteriormente, o bom êxito do direito como força unificadora depende de se dar um significado efetivo à ideia de um governo do direito como algo unificado e racional. Este êxito repousa, em parte, na verdade ideológica da elite cultural, implementada pela ciência jurídica, que transforma o direito numa caixa de ressonância das esperanças prevalecentes e das preocupações dominantes dos que crêem no governo do direito acima do arbítrio dos homens. No universo oficial, os ideais contraditórios aparecem como coerentes, pois se demonstra que o direito é, ao mesmo tempo, seguro e elástico, justo e compassivo, socialmente eficiente e moralmente equitativo, digno e solene, mas também funcional e técnico. E porque, modernamente, existe a pretensão de uma certa racionalidade objetiva, fundada em princípios e regras ao menos dotado de alta razoabilidade, o direito assume os aspectos de um rito cerimonial de uma busca constante da justa coerência.

Nos casos em exame, este quadro geral se manifesta através de mecanismos neutralizadores da incoerência. A incoerência não é suprimida, ela permanece, mas neutralizada. Esta neutralização é obtida, de um lado, pelo distanciamento funcional da autoridade, de outro, pelo encobrimento retórico propiciado pelos lugares comuns próprios da cultura jurídica dominante.

Quanto ao distanciamento funcional, do escrevente ao juiz, do advogado ao administrador, a técnica da legalidade é uma tônica constante. Veja-se a citada frase do juiz ou o seguinte testemunho do escrevente (Vila das Crianças): "Minha função lá era de mostrar o mandado e explicar o porquê"(...) O juiz cumpriu seu dever (...) seguiu a lei". A percepção do distanciamento existe, pois ele acrescenta : "Mas acho que se ele soubesse antes da situação social talvez fosse a favor dos pobres. Os advogados trazem retratos, dizendo que as casinhas estão para ser levantadas (e por isso não haveria derrubada). O juiz não vai lá, pensa que é mesmo... enquanto as casas já estão prontas. Enfim, ele só pode julgar dentro dos autos". Do mesmo modo, um oficial de justiça: "Surgiu um mandado de imissão de posse para eu cumprir. Senti a barra dos miseráveis que estavam lá. Mas ordem dada deve ser cumprida."

Quanto ao encobrimento retórico, o lugar comum da legalidade tem enorme relevância. "Toda área é protegida pela lei quando se tem dono. Bom, o regime de propriedade deve ser mantido – cada macaco no seu galho. O proprietário não tem a ver com o problema" diz o escrevente. "O direito de propriedade está claramente protegido pela Constituição", afirma o gerente da empresa reclamante. "As medidas judiciais são as únicas cabíveis nos conflitos de propriedade porque é o direito que soluciona os litígios. É o único meio legal para resolver os casos... O direito de propriedade não pode ser ferido. Modificá-lo seria uma inconstitucionalidade. Direito de propriedade é direito adquirido diz o assessor jurídico da Secretaria do Trabalho e Ação Social. E mesmo um engenheiro, coordenador do Programa de Recuperação de Favelas da Secretaria da Habitação repete enfático: "Defendo a habitação, mas o direito de propriedade não pode ser agredido por conta disso". Do mesmo modo, um delegado do DOPS: "Mas o fato é que terra é terra e por menos rentável que seja é um património e por isso deve ser defendido". Mais explícito é ainda o engenheiro diretor do Programa Especial da Secretaria da Habitação: "A Secretaria não pode apoiar invasões porque há leis que preservam a propriedade privada. Mesmo que alguém aqui dentro achasse injusto o não uso de terras na área urbana".

Não se pense que esta retórica é de uso apenas de um grupo. A crença na Justiça aparece também, ainda que de forma difusa e atabalhoada, entre os favelados: "Com advogado vai ser bem melhor. Do jeito que ele teve causa ganha prá destruir o que era nosso, a gente pode ter causa ganha para adquirir aquilo que foi destruído (...) Acredito que a Justiça pode resolver nosso problema, porque não havia motivo. Tudo deve haver aviso prévio e aqui não deram", diz uma moradora da Vila das Crianças, referindo-se à derrubada dos mocambos e à ordem para imediata retirada das famílias. Mas aqui, o direito tem algo de primitivo, ele é menos instância abstraia e se assenta mais diretamente nos fatos. É verdade que a moradora diz que o advogado, isto é, o agente do direito, pode fazer ganhar um lado como o outro. Mas isto não significa o reconhecimento do direito como instância abstrata, separada do próprio social. Ao contrário, o fato de que o direito possa proteger o outro lado parece algo estranho e até inconcebível. Diz a mesma moradora: "Não acredito que o juiz mandou ordem pra derrubar (...) Sem prazo? Ele é humano. Ele pode muito bem pensar e tá dentro do direito, dentro da lei – nunca ia fazer isso". Ou seja, o direito tem de estar conforme a necessidade social ou não é direito. Não se entenda nisto uma formulação racionalizada, a questão da acomodação do direito abstrato à realidade concreta. Trata-se antes de uma identificação. Esta identificação, contudo, é obviamente problemática. Mesmo porque, a consciência da própria situação social não é abstrata, mas concreta e contrastante. "Aí botaram a gente pra Dois Rios", diz um morador do caso Vila das Crianças, contando o que ocorreu depois da expulsão do terreno ocupado. "Quando a gente chegou lá, era uma barreira tão grande, moça, que quando era 11 horas a gente via o sol, quando era 11,30 hs. desaparecia o sol. Eu disse: onde, danado, eu vou viver mais? Pobre é uma merda, é feito cachimbo, só serve para levar fumo". Não se trata, além disso, de uma consciência passiva e acomodada. "Sem a Comissão de Justiça e Paz seria mais difícil", diz um membro da comissão de moradores de Skylab. "A gente tinha de partir para a ignorância. Eu acho que eles aceitaram o acordo porque não queriam enfrentar tanto prejuízo". Com isso, todo o arcabouço estrutural do direito oficial, que exige uma coerência racionalizada, fica em perigo. Afinal, acordos, como o que surgiu em Skylab produzindo um "contrato de locação de terreno", decisões judiciárias, acomodações políticas, têm por condição a racionalidade da intenção social, ao menos do ponto de vista do direito oficial.

Neste sentido, a participação da Comissão de Justiça e Paz é significativa. Se, como diz uma autoridade do direito oficial, o engenheiro diretor do Programa Especial da Secretaria da Habitação, "Eu só atuo com favelas já organizadas, é um requisito para que o trabalho se desenvolva", então a preocupação da Igreja, no mesmo contexto, só podia ser uma: "O pessoal do Skylab não tinha experiência de organização, de articulação de comunidade, de nada... Daí é que a nossa preocupação foi de que eles escolhessem a comissão, que participassem do processo de discussão e que eles afinal de contas assumissem". A presença do advogado do lado dos invasores realiza, assim, a mediação racionalizadora. De uma parte diz a moradora no caso da Rede Ferroviária: "Aqui eu tenho o telefone da Fábrica Pirelli a meu favor, ônibus pertinho. Isto conta muito. Vá eu morar no fim do mundo. Vou gastar muito, né? Eu não sou besta pra ficar contente com pouco dinheiro". De outra vem a mediação do advogado: "Em vez de reconhecer a posse mais do que mansa e pacífica daquelas pessoas e como o terreno era da União, o pessoal não podia requerer usucapião". Daí se partiu para a indenização.

Na verdade, mesmo com a mediação, a exigência estrutural da racionalidade esbarra nas dificuldades reais e se desmonta. Com isso, o direito oficial, abalado, passa a exigir condições de efetivação para além da sua própria retórica. Ao abalar-se, porém, as desconfirmações de autoridade antes referidas tomam corpo, configurando-se, assim, um "direito" inoficial. Ou seja, a resposta do direito oficial às desconfirmações, quando ultrapassa seus próprios limites ideológicos, dá margem à transformação de uma desconfirmação, como às referidas no item 4.1., numa forma de "direito" inoficial, um universo jurídico paralelo, concomitante e conflitante.

4.3. A crise de autoridade

"O acordo foi a melhor saída. Houve turbação da posse, eles se puseram contra a invasão... Os V.C. tavam com pavor à invasão. Pois eles têm terra e alugam. Mas existe um princípio maior que o do negócio, é o princípio da autoridade: sou dono da terra, posso pintar e bordar sem dar satisfação a ninguém". O testemunho é de um advogado da Secretaria da Habitação. Nele, o princípio da autoridade aparece expressamente. No caso se identifica com o respeito ao regime de propriedade: "Respeito e acredito na capacidade de organização do povo, mas eles jamais conseguiriam o acordo", diz o mesmo advogado, "pois eles estão numa condição inferior, estão errados em invadir. Não adianta ver o justo e o injusto. No fundo tudo é regido pela propriedade".

Está claro que a relação de autoridade não está identificada com a efetividade do direito, mas com o respeito que se tem por ele. Houve turbação da posse que é uma negação de direito, mas não uma desconfirmação, pois, para negar o direito, ao turbar a posse, é preciso antes reconhecê-lo e só se nega aquilo que se reconhece. Só quando se desacredita, se ignora, é que temos a desconfirmação. O princípio de autoridade implica, pois, para prevalecer, no crédito na autoridade.

Os casos que estamos examinando mostram, contudo, um processo de descrédito. Uma espécie de impotência da ordem constituída ou de desconfiança patente nas soluções normativas e no esquema de autoridade que lhe subjaz. Em primeiro lugar através do reconhecimento quase cínico da realidade. "Já se sabe que dentro do sistema capitalista e jurídico, quem faz a lei é o dono da terra – deputados e senadores" diz o advogado há pouco citado. "A legislação não proteje [sic] gente pobre. Estes saem sempre perdendo, explorados", fala um engenheiro, diretor geral de Coordenação da Secretaria da Habitação. Ou ainda, um advogado de uma empresa no caso Skylab: "Cada um é dono do que tem, quem compra tudo é o dinheiro... As leis não modificam nada. A natureza humana é que determina o ter. Modificar o sistema de propriedade é modificar a própria natureza humana que se regula pelo ter". Isto se conecta, em segundo lugar, com a desconfiança nas soluções normativas do direito oficial. Diz o Delegado Chefe da Divisão de Operações da SSPE: "Acho o processo judiciário muito lento". Ou o engenheiro, presidente da Comissão de Desapropriação: "Justiça? Só se fosse para terminarmos isso no ano 2000".

Apesar disso, é preciso encontrar uma solução. Dentro do próprio direito oficial há uma retórica justificadora que forma uma exigência: "Temos que defender o interesse coletivo", fórmula usada por um advogado da Rede Ferroviária e que coloca o universo jurídico numa forma neutralizada, que esconde as parcialidades de um direito que se pretende imparcial. Mesmo do lado da Comissão de Justiça e Paz, algo semelhante aparece: "tem que ver a coisa num contexto mais amplo" diz o seu presidente.

Tudo isto, entretanto, acaba servindo de pano de fundo para uma solução que vai para além da ideologia do direito oficial. A questão se torna um problema de força: "(...) com o processo de abertura, o cara ganha o direito de falar mais grosso" (Diretor do Programa Especial da Secretaria da Habitação). "Veja só: ninguém vai derrubar uma casa com gente debaixo dela, É uma defesa. Eles não têm dinheiro pra pagar advogado" (Delegado-chefe da Divisão de Operações da SSPE). "Leis não trazem solução. A taxação de solos urbanos para atender objetivos sociais não seria suficiente... A Justiça é fraca. Poderia ser mais ágil. O juiz deve mandar tirar todo mundo para depois resolver o caso. Mas não é o que acontece e por isso temos que procurar nossas próprias soluções", diz o Diretor financeiro da Imobiliária cujos terrenos foram invadidos.

E na busca das "próprias soluções" os desvios começam. Não sãoo ostensivos, mas se escondem por detrás da pseudolegalidade. Afinal, como diz um advogado de uma empresa envolvida: "Só os espertos levam vantagem, mesmo na Justiça". Consciente disto, o próprio juiz justifica: "É natural que os invasores queiram prazos para a retirada de suas coisas. No entanto, se dermos prazos a eles, criam mais direitos... E o direito se exerce, coercitivamente, por coação. Não se pode relaxar. Então fazemos tudo sem alarde, mas com energia, tomando as medidas justas". As tais "medidas justas" chegam até aos oficiais de justiça: "Não nos é permitido trabalhar dia de domingo, mas a diligência havia sido iniciada no sábado e tinha que continuar... Geralmente, no cumprimento do mandado, quando há crianças, não podemos derrubar. Mas ali tinha que tirar tudo". Isto apesar de, no caso da Vila das Crianças, pelo art. 180 do Código de Processo Civil, o prazo devesse estar suspenso.

De qualquer modo, mesmo as "soluções" quando obtidas não parecem mais decorrer do direito oficial Diz o Diretor do Programa Especial da Secretaria da Habitação: "Não se pode apoiar invasões, porque é problema de segurança pública... É uma excrescência, do ponto de vista social, os latifúndios urbanos... A tensão do conflito forçou o acordo". Claro que para isso há uma espécie de "saída" honrosa: "evitar esses fenômenos urbanos é um problema mundial, não é só nosso". Afinal, o problema escapa ao direito (oficial): "é difícil determinar as causas das invasões. Mas ninguém invade porque quer. O problema é de ordem económica,.. Mudar as leis? De nada adianta, ficará tudo no papel", diz o advogado da Rede Ferroviária.

5. Conclusão

Tendo em vista o exposto, algumas observações conclusivas tornam-se possíveis a respeito do "direito" inoficial. Sua ocorrência não deve ser determinada nem como uma negação do direito oficial, que, então, o qualificaria juridicamente, absorvendo-o como ilicitude, antijuridicidade, nem como uma desconfirmação revolucionária, o que significaria, nos quadros doutrinários, oficiais, a instauração de um novo direito (oficial). Também não se trata de uma desconfirmação do tipo produzido pelo desuso ou pelo costume negativo, em que a perda de vigência do direito oficial é preenchida, de fato, por um outro direito a pedir, em virtude de sua força fática, um reconhecimento. Na verdade é um fenômeno que não se enquadra no contexto dogmático oficial; não é ilicitude, nem revolução nem costume negativo.

À falta de uma terminologia, chamaríamos o "direito" inoficial, de que estamos falando, de uma articulação desarticulada do direito oficial. No fundo, este "direito" vale-se do instrumental oficial mas produzindo uma insuportável importância, de tal modo que o direito oficial, acaba por se articular conforme um padrão que o desacredita e o reforça ao mesmo tempo. Para explicar este paradoxo faz mister retornar uma noção apresentada no início deste trabalho, segundo a qual o universo dos grupos dominantes e, por extensão, o universo socialmente dominante atua sobre a realidade como um padrão ideológico, em dois níveis. Neste sentido, o direito oficial opera, num primeiro plano, de modo a modelar os fatos sociais que não são jamais o que são, mas são, numa unidade difusa, o que devem ser. Num segundo plano, isto se acentua, mas de uma forma inversa, pois aí o direito oficial atua no sentido de modelar os fatos sociais que, então, devem ser o que aparentemente são. No primeiro plano, o padrão tem sentido normativo; no segundo, sob a capa do cognitivo, há um sentido criptonormativo.

Nos casos em eu apresentamos neste trabalho observamos que, em dado momento, o padrão normativo propriedade, posse, usucapião, turbação, processo legal se desarticula, exigindo que autoridade e sujeito passem a atuar fora dele. Esta atuação fora do padrão, contudo, num segundo plano, se rearticula através de fórmulas criptonormativas ao tipo "ou o direito se exerce coercitivamente ou não há direito", "as leis não podem resolver todos os problemas", "a natureza humana tem seus meandros e, às vezes, nos coloca diante do Inexorável", etc. É aí que ocorre, então, aquela articulação desarticulada que desacredita o direito oficial no primeiro plano, mas o reforça no segundo. Nestes termos, o "direito" inoficial não aparece como ruptura ou como anormalidade dentro do direito oficial. Faz parte, ao contrário, da experiência deste último. No limite, é claro, o oficial pode ser levado a uma crise global, à destruição e à sua substituição por um outro direito oficial. Salvo esta hipótese, o que sucede é uma convivência com a crise, o oficial e o inoficial coexistindo no mesmo espaço e no mesmo tempo.

Não foi nossa intenção, neste trabalho, examinar causas e condicionantes económicos, políticos e socioculturais dos processos de manifestação do "direito" inoficial no contexto do direito oficial. Do material coletado na pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco nos limitamos, por assim dizer, às manifestações superestruturais. Não visamos ao porquê, mas ao como, sem contudo, ter qualquer pretensão de reduzir um ao outro.

De qualquer modo, se alguma lição se tira das observações apresentadas, talvez ela se condense num texto de Oswald de Andrade, no "Manifesto Antropofágico", em que se diz: "Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o".

Fonte: 13º Colóquio Internacional da International Association for the Semiotics of Law, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1997, pp. 588-609.