O jogo do poder

Tercio Sampaio Ferraz Jr

 

Quem observou, com um mínimo de reflexão possível a recente enxurrada de informações, medidas, resoluções, decretos, docrelos-leis a pro­pósito da nossa politica económica, deve estar pasmo com o ponto a que chegou a confusão das comunicações, desmentidos e ordens contraditórias. A crise de credibilidade que se proclama e que atinge o governo, ao menos no que diz respeito a orientação do cidadão interessado e necessariamente sujeito ás diretrizes do Poder Público quanto a sua própria economia e finanças, resulta em boa medida não tanto das decisões tomadas efetivamente, mas da na manutenção das regras estabelecidas.

Do ângulo politico, mais do que do econômico, esta forma confusa de comandar parece favorecer a falha de credibilidade sem consequência, dá a impressão de conduzir o País a uma anomia, a uma crise de poder. Por isso mesmo, ao observador desprevenido pode parecer que as autoridades, cias próprias estejam totalmente perdidas nas decisões que tomam, que cias próprias não sabem mais o que fazer, vendo, em consequência, esvair-se seu poder de governo.

Isto, talvez, pudesse ser até assumido no que diz respeito ao aspecto econômico e financeiro da orientação que está sendo imprimida aos destinos do País. Entretanto, do ponto de vista político, algumas considerações merecem a atenção, pois nos conduzem a reflexões que, no mínimo, não podem ser descartadas quando o fluxo e o rumo das decisões por parte de um governo que, paradoxalmente insiste em manter sua criticada orientação, toma um ritmo tão acelerado e destoante como o atual.

Neste sentido, gostaríamos de ponderar o seguinte: a bem da verdade, a primeira impressão de que, numa tecnocracia, como a nossa, inde­pendentemente de aprovarmos ou não os seus atos, sua força legitimadora repousa no sucesso e na racionalidade dos seus atos. Em tese, não há técnico que sobreviva no poder se o seu malogro se torna um fato público. Os jeitinhos e os apadrinhamentos, comuns na escolha dos nossos quadros burocráticos, valem mais para os cargos menores, de menor relevância pública. Nos cargos ostensivos, a competência técnica que gera malogro destina o ocupante à exclusão da equipe que governa.

Quando pensamos, no entanto, no triunvirato econômico-financeiro que nos dirige, não deixa de surpreender a sua manutenção diante da crise que, em termos políticos mais cheira a malogro do que a sucesso. A primeira impressão seria a de que o ministro Delfim Neto, chamado ao governo, no momento em que o ex-ministro Simonsen parecia sucumbir a uma insatisfação ditada por orientações que se diziam derrotistas e equivocadas, deveria, ele também, deixar o poder quando semelhante situação ocorre no exercício do seu ministério. Se o malogro ou a ameaça do malogro julga a competência, politicamente era de se esperar a sua queda.

Tal não ocorre, porém. Como explicar, politi­camente, este processo? Obstinação? Interesses? Imposições?

As formas de exercício de poder mostram, as vezes, curiosas relações entre os homens. Via de regra, quem manda quer ser obedecido. E quer ser obedecido o mais estritamente possível. Por isso, quando dá as suas ordens, procura faze-lo de um modo preciso, para que o endereçado cumpra integralmente o que foi comandado. O endereçado, por sua vez, por mais obediente que seja, vendo restringidas suas possibilidades da ação pela ordem expedida, procura ganhar espaço, tornando impreciso a comando, ao entende-lo a seu modo, conforme os seus critérios de interpretação. As relações de poder, por isso, demonstram, por de trás delas, uma sutil briga em torno de critérios interpretativos que Isaac Epsten, num trabalho intitulado Modos de Comunicação das classes subalterna: Subsídios para uma gramática do poder, denomina código forte (claro, preciso, denotativo) e código fraco (obscurecedor, impreciso, conotativo.

Nas burocracias bem organizadas, a autoridade usa, para seus comandos, um código forte que é pressuposto do comportamento da própria autoridade e, em consequência, de funcionamento de toda a burocracia. Por isso o código forte também limita a opção da autoridade, conferindo uma espécie de legitimidade aos seus comandos. Isto porque, sabendo disso, os endereçados tem a possibilidade de prever como so comportara a autoridade, sendo dentro dos critérios dela que procurarão para si as saídas, os espaços conquistados através do outro código, o código fraco.

Em épocas de crise, porém, ocorre ou pode ocorrer uma — terrível — inversão no uso desses critérios interpretativos. Assim, uma autoridade pressionada pela conjuntura desfavorável, a fim de manter o poder sobre os endereçados, pode emitir os seus comandos, que ela interpreta, porém conforme um código fraco. Deste modo, suas ordens passam a ser confusas, obscuras, imprevisíveis, levando o endereçado à angústia de não saber o que, realmente, a autoridade quer dele. Nestas situações, acossado desta maneira, o endereçado se defenderá, exigindo ou tentando interpretar as ordens recebidas através de um código forte, preciso e esclarecedor. Ou seja, o uso dos códigos, forte e fraco, se inverte.

O que sucedeu no Brasil, nos últimos tempos, é a manifestação patente deste jogo. Quando estava no poder a equipe Simonsen, as classes governadas, sobretudo as empresariais, vislumbrando uma certa insatisfação na orientação da política econômica, passaram a exigir um novo ministério, que fosse capaz de imprimir uma orientação mais clara, mais animadora, portanto interpretada por um código forte. Assumiu a equipe Delfim. A princípio, as ordens atenderam aos reclamos. Depois, porém, a conjuntura conduziu aos impasses que conhecemos. E daí para cá começaram as orientações confusas, as surpresa as insatisfações. De novo as classes governadas passam a exigir clareza e precisão. Isto, num certo momento, não chegou a afetar as relações de poder, pois ainda havia a expectativa de que "a complexidade era tão grande que só o Delfim saberia administrá-la". Quando, porém, a crise atinge um ponto insuportável, a reação dos endereçados só pode ser pedir a cabeça do ministro. Este, no entanto, se mantém. Como?

É aí que entra o jogo das ordens confusas com a sua perversa consequência. O que acontece é o seguinte: quando essas ordens sucedem num contexto do qual ninguém consegue sair, cria-se uma situação de dependência, por parte dos subordinados, de dupla ordem. De um lado, eles permanecem subordinados porque há uma relação institucional de autoridade. De outro, eles também permanecem subordinados porque, no contexto, confuso, o que quer que façam, aumenta a sua dependência. Por exemplo: o empresariado, por relações institucionais, está adstrito a autoridade econômica: como esta emite ordens confusas subordinado reage confusamente, pois, ao mesmo tempo em que pede clareza pede também “saídas” que tornam a situação ainda mais confusa. E o ministro, que não é tolo, se aproveita disto dizendo, como afirmou, que os empresários só pedem "coisas absurdas". A recente divergência entre o ministro Delfim Neto e o presidente da Fiesp mostra exatamente isto: a equipe econômica se manterá no poder porque dita ordens confusas, criando uma situação de dependência em que, no apuro, as reivindicações parecem contribuir para a confusão e, consequentemente, para a manutenção do status quo.

Nesta situação, qual a saída? Corno escapar deste "duplo vínculo"? Como diz Michel Foucault (Microfísica do Poder), "o grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam de quem se disfarçar para pervertê-lo, utiliza-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, introduzindo-se no aparelho complexo, o funcionar de tal modo que os

dominadores se encontrarão dominados por suas próprias regras..." A saída, portanto, está no apoderamento das regras, o que pode suceder pela violência, mas pode acontecer com vantagem pela denúncia, pelo embate das opiniões pela conquista do espaço público, da palavra e da ação. Donde, na segunda hipótese, a importância da democracia, de renovação dos quadros, dos mecanismos institucionais de alternância no poder. A perspectiva brasileira, no momento, é, no mesmo tempo, de perplexidade e de esperança. O que virá, o tempo dirá.

Fonte: Quarta-feira, 6-4-83 - O ESTADO DE S. PAULO.