Tercio Sampaio Ferraz Junior
A preocupação social do Estado diz respeito, a nosso ver, a vários âmbitos fundamentais: saúde, seguridade, previdência, educação. Nestes termos, o social atravessa as diferentes funções do chamado Estado interventor. Referimo-nos à função provedora — Estado provedor, no sentido de que lhe cabe prover o bem-estar social de uma forma direta —, função reguladora — Estado regulador, no sentido de que lhe cabe interferir na liberdade econômica de indivíduos e grupos, quer via supervisão, quer via imposição de termos compulsórios para as transações privadas, quer pelo controle do meio ambiente, quer via planejamento econômico —, função empresarial — Estado empresário, no sentido de agir como uma empresa, produzindo e consumindo, dentro do mercado — e função arbitral — Estado árbitro, não só no sentido de defesa e administração da Justiça, mas também de instrumento de distribuição da riqueza.
Obviamente, o social tem a ver com sua função provedora, ao assegurar-se aos trabalhadores assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva, ao assegurar-se previdência social nos casos de doença, velhice, invalidez e morte, seguro-desemprego, contra acidentes do trabalho e proteção da maternidade, ao assegurar-se colônias de férias e clínicas de repouso, recuperação e convalescença, ao assegurar a educação como um dever do Estado. Tem a ver também com a função reguladora, posto que, por exemplo, através da imposição de encargos sociais legalmente estabelecidos, cujo ónus recai sobre as empresas enquanto parte integrante da sociedade, o Estado disciplina as relações de justiça distributiva de forma compulsória. A função empresarial stricto sensu tem a ver com os serviços públicos essenciais, o que também pode ser exercido através da função reguladora, no caso de concessões. Mas num sentido mais amplo, tem a ver com extensos problemas de investimento, por exemplo, no que diz respeito, ao financiamento da pesquisa, pura e aplicada, e, nesta ordem de ideias, à implementação de tecnologias avançadas enquanto recurso central das sociedades modernas, ligadas, por exemplo, ao sistema de ensino superior.
Esta síntese apertada da presença do social no Estado moderno nos dá um panorama da magnitude dos problemas que se enfrentam. Pode-se imaginar como a questão afeta a quarta função — arbitral — do Estado. Afinal, o que se percebe é a complexidade de uma sociedade que define seus padrões de vida pela qualidade da existência avaliada de acordo com serviços e confortos — saúde, educação, previdência, lazer — considerados desejáveis e, enquanto desejáveis, possíveis para todos. Estas exigências, aliadas à incapacidade do mercado para atender às necessidades que têm as pessoas tanto de um meio ambiente como de mais saúde, educação e previdência, multiplicam as tarefas do Estado, onde, por pressuposto, estas necessidades têm de ser atendidas.
O Estado moderno, neste sentido, é um Estado afogado num mar comunitário, isto é, um Estado em que a relação entre participação política e cooperação concreta é extremamente difícil de ser arbitrada, conduzindo a um intrincado e incontrolável leviatã burocrático em que a cooperação é substituída pela cooptação, a eficiência dá lugar à administração das situações sem saída, as necessidades técnicas de decisão social entram em choque com as exigências populistas. Na realidade, a participação de indivíduos e grupos, sobretudo ao nível das cidades, mas agora também nas áreas rurais, cresce mais do que em toda nossa história pregressa. Contudo, esse aumento de participação conduz a um dilema: quanto maior o número de grupos, cada qual em busca de um objetivo diferente e até competitivo, maior a probabilidade de que, mesmo em face de conquistas sociais gerais, esses grupos acabem por vetar os interesses recíprocos, com a consequente sensação de frustração e impotência acarretada por esses impasses. Isto é verdade tanto no plano municipal como no estadual e no nacional.
Ora, do ponto de vista jurídico-político, as pressões desta sociedade em ebulição têm sido enfrentadas por dois meios. Em primeiro lugar, o Estado incha, transformando-se, simultaneamente, no maior empresário, na maior agência de financiamento, no maior consumidor, no maior de todos os empregadores. E daí decorrem conhecidos problemas. Por exemplo, a multiplicação de funções oficiais cria a necessidade de novas fontes de renda. A expansão concomitante da burocracia oficial aumenta os custos. Essa saída traz, porém, conhecidos problemas. Os orçamentos do Estado estão sujeitos a restrições políticas, diferentes dos orçamentos das entidades da iniciativa privada. Assim, para aumentar os rendimentos estatais recorre-se, digamos, à aceleração do ritmo de desenvolvimento econômico, mas utilizando os proventos resultantes para objetivos do governo, por exemplo, seus programas sociais. Mas essa aceleração acaba gerando inflação descontrolada. Ou então, tenta-se aumentar a produtividade em setores oficiais e de serviços. Mas isso, quando se obtém, fica sempre muito aquém de outros setores industriais. Então se recorre ao aumento de impostos. E o clamor público, em geral, cresce fortemente. A alternativa seria desinchar a máquina burocrática, contendo despesas e reduzindo os programas oficiais. Mas, o que acontece, então, é uma grita desencontrada: a indústria e o comércio colaboram, mas querem manter os subsídios ou não querem perder o grande consumidor; os sindicatos colaboram, mas exigem reposições salariais que inclusive não podem ser acompanhados pelo próprio governo enquanto o maior dos empregadores; e o espetáculo terrível da miséria exige programas sociais mais amplos ainda.
A segunda resposta no enfrentamento das pressões é também sabida: estabelece-se uma série de direitos sociais fundamentais por via programática. O efeito de normas programáticas, sobretudo e principalmente constitucionais, é conhecido: empurram as medidas concretas para frente, enquanto, simultaneamente, pelo menos por um período, sossegam a consciência política da nação. Em verdade, esta função das normas jurídicas não pode ser desprezada. Trata-se de uma função social da legislação que T.W. Arnold, em 1935 ("The Symbols of Government"), formulou nos seguintes termos: "É parte da função do Direito prestar reconhecimento a ideais que representam a conduta exatamente oposta da estabelecida. A maior parte das complicações deriva da necessidade de pretender fazer uma coisa, enquanto em realidade se faz outra"; ou seja, a norma prevê algo, mas, na verdade, reforça uma outra tendência social. Assim, por exemplo, por intermédio de uma norma constitucional programática que determine ser dever do Estado a educação, ou que preveja ser direito dos empregados o salário-desemprego, a ser regulado por lei posteriormente, estabelece-se uma obrigação e um direito; mas o que a norma constitucional realmente faz é contemplar uma tendência que julga a obrigação do Estado em face da educação ou o direito do trabalhador ao salário-desemprego, uma questão importante a ser oportunamente resolvida. Essa função diz respeito à necessidade de se lograrem compromissos numa assembleia legislativa, convertendo as formas legislativas em meios para resolver ou atenuai os conflitos de grupos.
O resultado desta segunda resposta conduz no entanto, a situações problemáticas toda vez que a realidade social torna maduras as pretensões já agasalhadas na lei sem que as condições de sua viabilização tenham sido criadas. Neste caso, a norma programática se vê abortada na sua função social antes descrita e passa a atuar, ela própria, como fonte de pressão sobre a situação. Acentua-se, assim, um dos grandes problemas da grande sociedade contemporânea que é o verdadeiro choque entre racionalidade e política.
Isto posto, cumpre observar que o cerne do problema que estamos discutindo repousa num conflito inerente ao chamado "Estado assistência!". Na verdade, a posição mais difundida entre os juristas tende a creditar a introdução dos mecanismos assistenciais e de redistribuição e controle de renda às lutas políticas no interior do Estado de Direito liberal. Nos quadros do Estado do Bem-Estar Social, as prestações sociais, os serviços, as subvenções são os instrumentos por meio dos quais se expressa a função de direção do poder político, cuja intervenção realiza uma espécie de compensação política das desigualdades econômicas ligadas ao mercado.
Ora, esta concepção pressupõe duas premissas:
1) a configuração do Estado como sujeito autônomo e neutro;
2) a distinção entre produção e distribuição.
No entanto, a experiência tem demonstrado que nenhuma destas premissas é plenamente aceitável. Quanto à primeira, é preciso reconhecer que o Estado interventor é ambivalente, posto que, de um lado, tende a criar uma demanda adicional através do gasto público e do incremento das obras públicas, bem como condições de investimento através de manobras monetárias, e, de outro, se vê obrigado a mediar entre as exigências de desenvolvimento e os titulares de posições e interesses privilegiados. Por sua vez, quanto à segunda, tem-se observado que a distribuição não é separável da produção nem pode subtrair-se às leis que governam o mercado, ou seja, a exigência de a produção reintegrar o capital e valorá-lo põe um limite à distribuição, de tal modo que as margens de disponibilidade do produto social para intervenções redistributivas são estreitamente dependentes da conjuntura.
A estas observações deve-se acrescentar mais uma: a sociedade atual não está mais centrada apenas nos conflitos entre o capital e o trabalho, mas sobretudo no choque entre os profissionais técnicos e os não-técnicos. Ou seja, o profissionalismo tornou-se um critério de posição social e política que entra em conflito com as diferentes formas de populismo, gerados pelas reivindicações de novos direitos e de uma maior participação na sociedade.
Ora, isto afeta diretamente o Estado assistencial, que é, eminentemente, um prestador de serviços sociais. Na medicina, por exemplo, o fim do relacionamento médico/cliente, substituído por relacionamentos e remunerações esquematizadas em termos de acordos entre o governo e os prestadores de serviço, significa o fim do médico como empresário individual e, em consequência, a importância cada vez maior do hospital e dos tratamentos em grupo. Ora, isto cria, para os legisladores, uma enorme pressão, pois exige um papel maior do Estado nos serviços de assistência, obrigando-o a dobrar e triplicar seus orçamentos.
Em suma, o Estado assistencial é hoje um paquiderme no meio de pressões que só o fazem crescer sem que este crescimento, politicamente, atenda às necessidades sociais de maior participação nas decisões sobre o seu próprio bem estar.
O quadro assim descrito, obviamente, não é róseo. Mas comporá, não obstante, o pano de fundo da Assembleia Constituinte a ser eleita em 1986. Em termos de dispositivos constitucionais, os problemas afetam de perto a regulação da chamada "ordem econômica e social". Dizem respeito sobretudo ao princípio diretor, de natureza ideologia, que presidirá as intenções legiferantes do poder constituinte. Assim, uma ideologia socialista, não comunista nem totalitária, levará, não obstante, a um fortalecimento do Estado como planejador global da economia, em que os critérios de eficiência na produção e no consumo deverão estar subordinados a uma ampliação das funções assistenciais e até uma multiplicação dos direitos sociais, com todos os riscos da resultante ineficiência. Já uma ideologia liberal estará se guiando por critérios de eficiência econômica, aceitando o papel do Estado como planejador parcial, mas encarando as funções assistenciais como um mínimo plausível, a partir do que as possibilidades de ampliação se subordinam a condições de desempenho de economia. Tanto uma como outra, porém, terão de levar em conta que os mecanismos de mercado não contêm embutidas fórmulas de controle das chamadas "externalidades" (que ocorrem quando alguém é afetado, positiva ou negativamente, pelos resultados de uma decisão da qual não tornou parte). Ora, se isso coloca o Estado na contingência de atuar sobre elas (regulação de preços, controle de salários, estabelecimento de monopólios etc.), torna-se inevitável a decisão constituinte sobre o alcance e limites desta atuação, o que fará da futura Constituição um instrumento político primordial. E as decisões sobre este instrumento têm de ser amadurecidas num processo que não ocorre apenas no momento em que começa a funcionar a assembleia, mas que já se iniciou, desde o instante em que se incorporou na vida nacional o reconhecimento da necessidade de uma nova Constituição para o País.
Fonte: O Estado e o desenvolvimento social, Tércio Sampaio Ferraz Jr, Indústria & Desenvolvimento, São Paulo, fevereiro/1986, 19 (2): 35-37.