Hobbes e a teoria normativa do Direito

Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Universidade de S. Paulo e do IBF)

Num estudo intitulado "Hobbes et Leibniz et Ia dogmatique juridique", o jurista Tulio Ascarelli observa que o pensamento jurí­dico moderno se caracteriza por uma consciência moral que Kant se recusa em cristalizar em regras concretas, por ver no bem uma tensão constante em direção ao mesmo bem. O pensamento medieval não teria distinguido as regras jurídicas das da consciência moral. O voluntarismo ultrapassaria esta posição e anunciaria as Escolas de Direi­to Natural. Assim Hobbes, descobrindo o fundamento do direito na necessidade de sobrevivência, i.é, num elemento utilitarista, opera uma redução do direito à economia lato sensu. Se toda lei é justa, Hobbes dirá que o problema é descobrir a lei que é boa, útil e eficaz. Este é justamente um problema novo. Para o homem medieval, o problema era do homem bom e não da lei boa, isto é, de observação da lei que é um bem para a sociedade e não o estudo da sua oportu­nidade. Ora só quando o direito é concebido de modo autônomo é que se põe o problema da lei boa.

Para mais bem enquadrar estas ideias no contexto, uma rápida menção a propósito da concepção de sociedade se faz necessária. A filosofia social europeia, incluindo-se aí as preocupações políticas, morais, jurídicas, constituiu-se em relação a uma concreta concepção de polis. A polis representava um momento de transformação das sociedades arcaicas, aparecendo nela o homem como indivíduo, que pode agir em face de boas e más possibilidades, escolhendo racio­nalmente. É a ideia de liberdade como qualidade específica do agir humano, da qual nos fala Hunnah Arendt no seu livro Entre o Passa­do e o Futuro, a propósito dessa noção entre os gregos. O problema filosófico era, então, ver a sociedade como o lugar onde os indiví­duos realizam a sua liberdade, donde a ligação do conceito de sociedade com o de societas civis ou koinonia, descrita em termos relati­vamente concretos como relações de amizade, de família e de seus membros, especialmente de pais e filhos, do senhor e do escravo etc.

No correr dos séculos, com a decadência da polis como unidade-mater da sociedade e o aparecimento das nações, esta concepção política stricto sensu de sociedade é substituída por uma concepção ética em que zoon politikon, traduzido por animal sociale, reunindo todas as vinculações humanas, compõe o chamado corpo social. Aqui a terminologia filosófica sofre uma inflexão e a sociedade passa a ser descrita em termos capazes de, num grau de abstração maior, abarcá-la na sua maior complexidade. Assim a relação entre os dife­rentes direitos e leis se torna um problema, pondo-se a questão de como se compõem organicamente a lei divina, a lei humana, a lei na­tural, a lei positiva etc.

Ora, na era moderna, crescendo ainda mais a complexidade social, os conceitos centrais da filosofia social passam a ser elaborados a partir de uma visão econômico-utilitária. Termos como segurança, polícia, administração vão dominar pouco a pouco, tornando-se a compatibilização da sociedade econômica com a política, com a religiosa, com a moral e com a jurídica um problema a ser enfrenta­do preponderantemente.

Neste contexto, a filosofia social de Hobbes representa um mar­co significativo. De certo modo, adiantando-se até ao seu tempo, quando ainda prevalecia o uso de conceitos "concretos" e do menor operacionalidade para uma sociedade já em mudança (como virtude, amizade, poder, homem), Hobbes é talvez um dos primeiros a formu­lar a societas num conceito que exclui dela o indivíduo concreto. Sem torná-la ainda um conceito analítico (como hodiernamente, em que o indivíduo é apreendido através de conceitos como papel, fun­ção, intenção etc. e o todo social, através de outros como estrutura, sistema, processo etc.), na sociedade de Hobbes, o indivíduo, afir­mando a sua autonomia, a sua moral, coloca-se fora do todo: surge então a questão de como a sociedade enfrenta o indivíduo como um problema a resolver, em termos de sociedade versus indivíduo.

Ora, nessa linha de raciocínio, através da tese do abandono do estado selvagem, Hobbes transforma a linguagem num símbolo da existência do estado civilizado, abrindo espaço para a argumentação e a retórica (razão utilitarista) em lugar da violência individual. É isto que o conduz à análise do direito na forma de comandos e à elaboração de um pensamento muito próximo da hodierna dogmática e de seus temas mais importantes como as fontes, a promulgação das leis, a interpretação jurídica, distinção entre lei civil e penal, entre de­manda e ação, dolo e culpa, pessoa física e moral ou jurídica, vontade contratual, representação, legalidade, delegação de poderes etc.

A posição de Hobbes era avançada para a sua época, na medida em que submetia o direito a um poder político arbitrário como con­dição mesma de exercício da razão utilitarista no controle da socie­dade. Na verdade, o direito inglês, pelas suas origens, não é tão costu­meiro como se pensa. Ele surge de intervenções reais e depois parla­mentares, sendo afinal o resultado da obra de juristas, isto é, da obra consciente de uma classe dirigente e da concentração da administra­ção da Justiça. Isto foi ocultado pela tradição que fazia crer que esta classe estava impregnada de alto espírito cívico, de uma sabedoria política exemplar. A teoria de Hobbes, neste ponto mais próxima daquilo que sucedia no continente, põe esta ideologia a descoberto.

De fato, quando no início do capítulo 26 do Leviathan, a pro­pósito das leis civis, Hobbes as define como leis que os homens estão obrigados a obedecer porque são membros, não desta ou daquela Commonwealth em particular, mas de uma Commonwealth, o seu modo de falar toma características extremamente hodiernas, pare­cendo que estamos a ouvir um teórico geral do direito à moda, por exemplo, de Hans Kelsen.

A semelhança no estilo de tratamento do problema do direito (como norma) entre Hobbes e um certo formalismo contemporâneo já chamou a atenção de outros autores como por exemplo Bobbio. De fato, Hobbes não só se preocupa em distinguir o estudo de um direito dado qualquer do direito em geral, mas define igualmente as leis civis como comandos (e não como conselhos, donde o traço dis­tintivo da lei estar inicialmente no seu caráter imperativo). Da mes­ma forma encontramos na Teoria Pura de Kelsen uma preocupação semelhante, primeiro distinguindo a Teoria Geral das diferentes dog­máticas jurídicas, segundo determinando o caráter normativo de uma prescrição através da sua imperatividade.

É evidente e conhecido que Hobbes não reduz a lei a um coman­do qualquer e que, como Kelsen, se ocupa em determinar quando um comando deve ser entendido como lei. A explicação de Hobbes, embora aqui não se aparente com a de Kelsen, não deixa de ter com ela alguns pontos de contato. Enquanto para o autor da Teoria Pura a norma se reconhece como tal na medida em que participa, por rela­ção de validade, de um sistema normativo dominado pela ideia de norma fundamental, para o inglês, um comando é uma lei quando o seu destinatário já está, primariamente, obrigado a obedecer o editor. De certa maneira está aqui uma ideia de competência que não é de todo estranha a Kelsen que vê também a validade da uma norma repousando na competência do seu editor, conforme o determinado por normas hierarquicamente superiores.

Muito à semelhança de Kelsen, a posição de Hobbes assim nos conduz a uma espécie de dogmatismo sistemático. Certamente, para o inglês, a sociedade civil é artificial, é a criação livre de vontades individuais absolutas que se rendem, envolvendo, em consequência a substituição da liberdade pela lei (law) e do direito (right) pela obri­gação. Do mesmo modo, para Kelsen, no mundo jurídico a liberdade não é um pressuposto da obrigação nem uma condicionante da normatividade. Ao contrário, a liberdade resulta da imputação normati­va do mesmo modo que resulta da imputação normativa o dever jurí­dico e o ilícito. É preciso reconhecer, porém, que na hierarquia das fontes normativas, em Kelsen, nos aproximamos, numa sequência minguante, da única norma, primeira na ordem, não posta por nenhuma vontade, mas pressuposta pela razão (dogmática) que exi­ge, como condição de possibilidade do seu próprio pensar, uma inter­rupção na pesquisa regressiva das premissas e a sua instauração como ponto de partida não discutível. Para Hobbes, por sua vez, a sobera­nia é produto de vontade e representa em si as vontades dos seus criadores, sendo, pois o direito de fazer leis por ato voluntário não se submetendo, ela própria, à lei (porque leis criam obrigações, não direito-subjetivo) nem à razão, que nada cria, nem obrigação nem direito. Por isso, para Kelsen, a ordem normativa, na sua dinâmica, constitui um sistema (racional, unitário, não contraditório) de nor­mas que se ligam umas às outras por subordinação (hierárquica) e não por derivação (de conteúdos genéricos a concretos), em que o .decisivo é a forma fundante do comando (e não o conteúdo). Já para Hobbes, as leis da natureza e as leis civis têm a mesma extensão e se contêm umas nas outras (Lev. 26-4), não sendo tipos diferentes de lei, mas partes diferentes da lei.

Isto significa que para o positivismo formalista de Kelsen, a função da norma fundamental, no sentido de condição lógico-transcendental de possibilidade do direito como objeto, é acionar o processo de validação que é, todo ele, positivo salvo quanto à própria primeira nor­ma Acionado, o sistema vai por si, assumindo conteúdos variados, tro­cando suas fontes positivas até por revolução, sem que a continuidade do direito se interrompa. Já para Hobbes, o direito positivo assegura à lei natural sua efetividade. Por exemplo, a justiça enquanto manutenção de acordos, dando a cada um o que é seu, é ditada pela lei natural. Ora, qualquer sujeito da ordem civil tendo concordado em obedecer a lei civil, faz a obediência à lei civil ser parte da lei da natureza. Embora a razão nada crie e o fundamento da ordem normativa seja sempre a von­tade do soberano (que não produz as leis mas é a sua alma), a lei nunca pode ser contra a razão (Lev. 26-7). Não, evidentemente, contra a razão privada de cada um (donde se segue que, para Hobbes não é ajuris-prudentia — a sabedoria dos julgadores que faz a lei), mas a razão da socie­dade civil: cada juiz deve guiar-se, nas suas sentenças, pela razão que mo­ve o soberano ao fazer a sua lei; caso contrário, sua sentença será um co­mando apenas privado e, assim, injusto (26-6).

De certo modo apesar das diferenças nas duas posições, as analogias nos permitem dizer que em ambos, a análise do direito conduz a uma dogmática do positivo, sendo, para Kelsen, é uma dogmática eminentemente formalista, o que, obviamente, não ocorre com Hobbes. Isto porque para Kelsen o comando normativo corresponde a uma prescrição formal de sanção a qualquer comportamento que se torna, então, um delito. A ordem normativa como prescrição de sanção, como norma sobre a sanção, é totalmente instrumental e tem por único critério limitador a própria coesão interna do sistema. Para Hobbes, as punições (e as recompensas) são atribuídas pela autori­dade àquele que realizou ou omitiu aquilo que a lei obriga ou proíbe. A transgressão da lei gera a sanção negativa (e o cumprimento, a positiva). É verdade que nem a vingança privada nem a reação puni­tiva do indivíduo são sanções, mas apenas aquelas que procedem da autoridade pública (cap. 28). Mas de qualquer modo, para Hobbes o direito não é, formalmente, uma ordem instrumental de estabelecimento de sanções, mas uma ordem materialmente constituída de obrigações geradas por leis, fruto da vontade da sociedade civil, do legislador.

Neste ponto é interessante comparar a posição de ambos no que diz respeito à interpretação. Hobbes reconhece (cap 26) que toda lei, natural ou civil, necessita de interpretação. No que diz respeito às leis da natureza sustenta ele que o juiz, constituído pela autoridade do soberano, as interpreta ao produzir suas sentenças. O juiz julga, considerando se a demanda está ou não de acordo com a razão natu­ral e com a equidade. Hobbes, entretanto, considera autêntica a in­terpretação não porque ela se guia pela razão natural e equidade, mas porque ele dá a sentença pela autoridade do soberano, pelo que ela se torna sentença do soberano. O mesmo vale para as leis escritas, cuja interpretação não é dada por comentário, em geral mais cavilo­sos que as leis, exigindo comentários de comentários ao infinito.

A questão da autenticidade levanta um problema importante também para Kelsen. Este, como Hobbes, reconhece uma certa incer­teza na norma, o que requer interpretação: Kelsen fala da norma como um quadro que tem que ser delimitado no caso concreto. Já Hobbes, no caso das leis escritas, lembra a inconsistência semânti­ca e no caso das leis naturais, a presença das paixões a obscurecê-las. Para ambos é a competência do intérprete, vinda do soberano (para Hobbes) e da norma fundamental (para Kelsen), que confere auten­ticidade à interpretação contida na sentença. Contudo, para Kelsen é claro o caráter constitutivo de qualquer sentença, o que ele afirma expressamente, mesmo por que a norma superior não contém, pelo seu conteúdo, a norma inferior numa relação de derivação lógica. Já para Hobbes, em nos atendo ao texto do Leviathan, do problema da autenticidade não decorre tranquilamente o caráter constitutivo da sentença. Assim, no caso de erro do juiz, Hobbes sustenta que sua sentença só obriga as partes em questão, não obrigando, por analo­gia, outros juízes, pois o juiz pode errar na interpretação das leis escritas e isto não quer dizer que as mude, tal como as estabeleceu o soberano. Pode-se concluir daí de um lado que, se a sentença errada do juiz competente vale para as partes, ela é constitutiva no que diz respeito ao caso concreto. Por outro lado, se Hobbes reconhece que há uma interpretação correta — a que reproduz a intenção do sobera­no — pode-se também entender que o juiz nada mais faz que declarar aquela intenção.

De qualquer modo, a discussão sobre a interpretação ressalva a ordem jurídica na forma de um sistema de subordinação. Isto é claro em Kelsen. Em Hobbes o percebemos pelo papel exercido pela razão na construção do ordenamento. A razão é muito mais ligada à desco­berta de utilidade para a sociedade. Hobbes, descobrindo o funda­mento do direito na necessidade de sobrevivência, isto é, num elemento militarista, sustenta então que toda lei é boa, cabendo ao homem apenas descobrir qual a lei boa, útil e eficaz. E pela tese do abandono do Estado Selvagem, ele acaba por conferir ao comando do soberano uma supremacia unitária no conjunto dos comandos e que se transfere de comando a comando, por subordinação. Sua teo­ria, entretanto, ao admitir que toda lei é interpretável, termina numa espécie de dilema que o positivismo Kelseniano contorna ao forma­lizar totalmente a razão normativa. Esta, para Kelsen, apenas confere ao sistema unidade e validade, sendo, então, todo ato interpretativo sempre um arbítrio constitutivo. Para Hobbes, no entanto, o desen­volvimento de uma dogmática material o conduz a uma teoria dilemática da interpretação, posto que reconhece que toda lei é inter­pretável, mas não resolve o problema resultante do contraste entre a interpretação autêntica do soberano e a interpretação, constitutiva para as partes, do juiz singular.

Fonte: FERRAZ JR., Tercio Sampaio. "Hobbes e a Teoria Normativa do Direito". Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, vol. XXXIV, fasc. 137, p. 24-30, janeiro - fevereiro - março de 1985.

Texto organizado e corrigido por: Victor Alexandre El Khoury M. Pereira.