Essas leis são sérias?

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

Para um país cujo desenvolvimento econômico o levou a transformar a velocidade num hábito, a ordem. agora é andar a 80 km/h. Para uma população que transformou o rodar em automóvel em forma de lazer, o momento é de pagar mais pela gasolina e, em troca, ganhar um cuponzinho emitido pela Casa da Moeda (que o ministro da Fazenda insiste em chamar de poupança menos atrativa que as cadernetas).

A crise do petróleo, como se vê, está conseguindo agitar as cortinas atrás das quais repousa um seríssimo problema de ordem social. Vejam-se os noticiários: ulti­mamente eles estão fartos em notícias sobre os desen­contros, as normas ditam regras num sentido e o com­portamento se encaminha para o lado oposto. A tal ponto, que já surgiram alguns conflitos entre os que pretendem respeitá-las e os que vivem à sua margem. Se alguém duvidar, tente andar na velocidade legal numa cidade como esta: os ouvidos seguramente ficarão re­pletos de palavras que a sociedade normalmente não considera de bom-tom.

A verdade é que este conflito nada mais representa do que o embate surdo entre as normas e as instituições. Admite-se, hoje, que uma das funções básicas da legislação está em interferir nas estruturas sociais, para modi­ficá-las. Nesse sentido, o Direito é uma arma antes de eleições; escolas superiores antes da alfabetiza­ção; bancos antes da economia; salões antes de educa­ção popular; conceito exterior antes de consciência in­terna; empréstimos antes de riqueza consolidada; e, fi­nalmente, aspirações de grande potência antes de ter a força interior.

O oficialismo, deste modo, é um vício nacional que faz com que muitas de nossas peças jurídicas e políticas tenham antes o sabor de um embuste, do tipo para inglês ver. Mesmo a crise de indecisões que envolve o atual governo em parte talvez se explique, embora não se justifique, por esta atávica tendência da se pôr o carro antes dos bois. Somos levados a acordar repentina­mente para nossos problemas e, quando despertamos, brandimos a varinha mágica da lei. Quando as crises são demasiadamente agudas, a tal ponto que a varinha fica parecendo mais um chuço de cabo curto, ficamos incer­tos e indecisos.

Atualmente, estamos empenhados numa tarefa gi­gantesca: racionalizar o uso de combustível numa socie­dade acostumada ao desperdício e à ânsia pelo novo e pelo abandono do antigo. A propaganda oficial infunde no espírito do leitor de jornais e do ouvinte de rádio a consciência do problema. Mas acorda tarde. Respeito às leis de trânsito exige, antes de tudo, respeito à lei em geral, à crença continuada e reforçada por processos educacionais de que a lei deve sobrepor-se ao privilégio, ao tratamento pessoal, ao "jeitinho". Ora, tais compor­tamentos — que são características negativas da nossa mentalidade e que foram alicerçadas no oficialismo que sempre marcou nossa política — não se mudam de um momento para o outro.

Sem dúvida alguma, surge aqui um problema que merece atenção, planejamento e medidas de prazo va­riado. Afinal, instituições não se transformam somente com leis. E um dos instrumentos básicos de modificação institucional é a educação. Educação como contato vivo e aberto entre os homens, capaz não apenas de orientá-los mas, sobretudo, de fazê-los saberem orientar-se, o que pressupõe comunicação livre de problemas e cha­mamento à responsabilidade pelas soluções — uma ati­tude eminentemente antioficialista, que convoca o povo, e não apenas o invoca.

Mas parece que, de todos os instrumentos, a educa­ção é claramente a menos favorecida pelas benemerências governamentais. Vai governo, vem governo, a edu­cação tem apenas verbas madrastas e planejamento de superfície. Cuidou-se de esticar o índice de alfabetiza­ção, criando-se analfabetos letrados. Procurou-se au­mentar o número de vagas em escolas superiores, produzindo-se doutores de canudo.

No entanto, pouco se pensa sobre a formação — e não apenas informação — da juventude. Nossos progra­mas visam antes à constituição de tecnólogos que, com um conhecimento conquistado sem o respaldo de um saber humanístico, encaram a sociedade como um labo­ratório: o ser humano é um cobaia e o sucesso da ativi­dade desse tipo de profissional é medido pelo resultado final, não importando as mazelasas fiquem na esteira do seu caminho.

Acordar é sempre melhor que adormecer em berço esplêndido. Resta, pois, a esperança de que a crise não apenas promova as necessárias medidas de emergência, mas que, para além disso, sacuda a consciência nacio­nal, acabe com as decisões indecisas, abra o jogo dos-problemas, permita a sua discussão franca e aberta, propicie um remanejamento de atitudes e incite os de­tentores do poder a uma ação de mentalidade alargada.

Fonte: Terça-feira, 25-1-77 —O ESTADO DE S. PAULO.