Desafios do federalismo fiscal brasileiro

Marco Aurélio Greco e Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

SUMÁRIO: 1. O federalismo solidário - 2. Mudança de status das antigas províncias - 3. Os desafios no Brasil; 3.1 Carga tributária. 3.2 Distribuição dos encargos públicos. 3.3 "Guerra fiscal". 3.4 Critérios de definição da competência tributária. 3.5 Neutralidade da tributação.

1. O federalismo solidário

A Federação brasileira resultou de um movimento histórico de centrifugação (cf. Orlando Bittar, Obras completas, Belém, 1978, vol. 2, p. 323). O país não nasceu federativo. As antigas províncias, entidades preponderantemente administrativas, transformaram-se imediata e diretamente em Estados. Não houve, entre nós, um processo centrípeto, de agregação, com a decisão de entidades independentes de se associarem politicamente. O poder central, preexistente, é que assumiu a forma federativa. Assim, enquanto nos casos de agregação, a distribuição das competências é, analiticamente, controvertida, no Brasil deve-se partir historicamente, de um hegemonia do todo para a constitucionalização das competências parciais.

Este processo de federalização, não obstante, mostra uma passagem progressiva de uma tônica segregacionista, com a insistência na autonomia das unidades parciais, para um federalismo orgânico, com a tônica na cooperação. Assim, já a partir dos anos 30, são normalizadas as relações intergovernamentais, reconhecendo-se o papel da União no custeio, na direção técnica e administrativa das zonas em que as grandes endemias nacionais excediam as possibilidades dos governos locais. Mas é sobretudo na discriminação de rendas que se percebe a nítida tendência para um federalismo solidário (Bittar, op. cit., p. 328) - a identidade de destinos pela comunicação fecunda de recursos: federalismo cooperativo - espelhado mormente na cooperação financeira por meio de regras capazes de regular o inter-relacionamento resultante do exercício da competência tributária das unidades federadas bem como num compartilhamento tributário.

Nesses termos, o sistema constitucional vigente de discriminação de rendas combina a outorga de competência tributária exclusiva, por fonte, para cada esfera governamental, como sistema de participação no produto da receita tributária de uma entidade no de outra, conforme três modalidades básicas (cf. José Afonso da Silva em Curso de Direito constitucional positivo, São Paulo, 1993, p. 616): a participação em impostos de decretação de uma entidade e percepção por outras (CF art. 157, I e art. 158, I) a participação em impostos de receita partilhada segundo a capacidade da entidade beneficiada (CF art. 158, II, IH, IV e seu par.ún.) e a participação em fundos (CF art. 159). O federalismo solitário exige esta cooperação, mas, num certo sentido, a transcende. De todo o interesse, nesse sentido, a menção ao Ausgleich financeiro, instituído pela Lei Fundamental de Bonn, artigos 106 e 107, em que se prevê a equalização compensatória, por motivos de desigualdade de força tributária, tanto verticalmente, quanto horizontalmente, regulada naquele país pela Lastenausgleichgesetz, de 1952.

Na Constituição Federal brasileira de 1988, a matéria referente a um federalismo solidário é aflorada já no enunciado superlativo do art. 5.°: "todos são iguais perante a lei", garantindo-se, entre outros, "o direito à igualdade", com o que se generaliza uma aspiração bem mais ampla que alcança também as desigualdades de fato, na medida em que se desvaloriza a existência de condições empíricas discriminantes e se exige equalização de possibilidades. Entende-se destarte que um dos fins fundamentais da República Federativa (art. 3.°) seja promover o bem estar de todos, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (cf. Ferraz Jr., Legitimidade na Constituição de 1988; In: Constituição de 1988: Legitimidade, Vigência e Eficácia, Supremacia em colaboração, São Paulo: Atlas, 1989, p. 31 et seq.). Acresçam-se a isto os dispositivos que autorizam um regime compensatório do ICMS, de modo a favorecer os Estados economicamente menos desenvolvidos.

2. Mudança de status das antigas províncias

O federalismo solidário exige, conforme se mostrou, como condição de efetividade, a cooperação entre os entes federados, tanto no sentido vertical quanto horizontal. Esta cooperação, embora à primeira vista faça pensar numa espécie de contrato federado, a presidir as relações entre as unidades, tem um outro fundamento. Na verdade, no contexto do federalismo solidário, ela não tem uma natureza contratual. Isto porque as relações interindividuais entre as entidades que compõem a federação, cujo objetivo deve ser o fomento das finalidades comuns, ainda que tenham a aparência de vinculações contratuais, com o estabelecimento de direitos e deveres em face de conteúdos específicos, têm um sentido jurídico-político que as transcendem. Para adotar a célebre distinção de Henry Maine (Ancient Law, Dent, 1917, p. 99-100), não se trata de contrato, mas de status. A federação não une contratualmente seus membros, mas altera-lhes o status. De uma entidade administrativa, no caso brasileiro, a província muda a sua constituição: passa a Estado federado. Daí a ideia de união indissolúvel (CF, art. l.º), de uma ordem permanente (CF, art. 60, par. 4.º, I). À federação cabe, nestes termos, a fortiori, o princípio da homogeneidade, de que nos fala Carl Schmitt (cf. Verfassungslehre, Berlim : Duncker & Humblot, 1970, p. 375), ou seja, da igualdade substancial que preside todo acordo concreto entre seus membros e exclui, entre eles, formas conflituais típicas das relações entre estados independentes, como a represália, a invasão territorial, a guerra. Uma entidade federativa, por isso, não é, para outra, um estranho ou um estrangeiro, mas a portadora de certas competências, cujos eventuais conflitos exigem à presença da instâncias constitucionais.

Neste contexto insere-se o desafio do federalismo fiscal.

3. Os desafios no Brasil

O sistema tributário brasileiro é altamente complexo, sendo formado não apenas por impostos, mas também por taxas, contribuições e empréstimos compulsórios, não sendo possível expor neste estudo todas as peculiaridades e temas que envolvem sua aplicação. As considerações feitas a seguir traçam um singelo panorama dos desafios enfrentados e as referências feitas a tributos específicos buscam apenas ilustrar as dificuldades, mas não esgotam a problemática específica de cada tributo ou questão apontada.

A experiência brasileira de um federalismo fiscal tem enfrentado cinco grandes desafios. Os três primeiros encontram-se no plano político, pois implicam definição quanto ao perfil que se pretenda dar ao relacionamento entre os vários segmentos da sociedade e do poder público. Os dois últimos envolvem questões de ordem técnica, ligadas à instituição e conformação da tributação enquanto tal.

3.1 Carga tributária

O primeiro desafio está ligado à definição da carga tributária global a ser imposta à sociedade. A carga tributária interfere com as rentabilidade e o volume de investimentos realizados pelas empresas, mas é através dos tributos que o Estado procura enfrentar suas despesas, não só de manutenção, mas também para o desenvolvimento de programas sociais direcionados segundo as necessidades da coletividade. A busca do ponto de equilíbrio entre necessidades públicas e interesses particulares encontra no tema da carga tributária um dos seus pontos cruciais.

Num sistema tributário em que há diversas entidades com competência tributária própria, que pode ser exercida independentemente de haver sintonia com os interesses e prioridades das demais entidades, há sempre o risco de ocorrer a busca de maior arrecadação, mediante o aumento dos tributos de sua competência. A possibilidade de um exercício descoordenado da tributação apresenta reflexos imediatos na definição da carga tributária global, pois o dimensionamento do encargo fiscal está diretamente ligado às políticas econômica e social implementadas pelo Governo.

Muito tem sido discutido, atualmente, no Brasil a respeito deste tema. Alguns afirmam ser excessiva as cargas existentes, particularmente tendo em conta a dimensão e a qualidade dos serviços públicos prestados. Fala-se muito da existência de um elevado custo para as empresas, gerado pelo excesso de entraves burocráticos à atividade econômica e por um sistema tributário que impõe elevada carga tributária global. Por outro lado, a União Federal e os Estados-membros frequentemente afirmam a insuficiência da arrecadação obtida para enfrentar a despesa pública e, alegando necessidade de recursos, periodicamente modificam impostos ou contribuições, buscando, com isto, aumentar sua receita. O desafio está, exatamente, em assegurar, num sistema com múltiplas entidades competentes para instituir e aumentar tributos próprios, que a carga tributária global não se torne excessiva.

No passado, o Brasil tentou criar mecanismos mais rígidos de controle. Assim, por exemplo, na Constituição de 1967 a União tinha, dentre outras, a competência para tributar com exclusividade bens e atividades de caráter estratégico ou de amplo consumo (p. ex., minerais, combustíveis, energia elétrica, comunicações). Os Estados-membros tinham competência para instituir e cobrar, dentre outros impostos, um imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias (o denominado ICM, de perfil semelhante ao IVA). Por sua vez, aos Municípios cabia a competência para instituir, além de um imposto sobre a propriedade imobiliária urbana, um imposto sobre serviços em geral (ISS).

O ICM era (como é atualmente o ICMS) o mais importante imposto brasileiro ligado à produção e circulação de mercadorias, pois onera todas as operações desde a extração ou produção até o consumo final, podendo alcançar inclusive a exportação. Visando manter a carga tributária de ICM sob um certo controle, de modo a não permitir que os Estados, aleatoriamente, passassem a onerar produtos diversos por alíquotas diferentes, a Constituição de 1967 previa que as alíquotas do ICM seriam uniformes, cabendo ao Senado Federal fixar as alíquotas máximas para os vários tipos de operação. Com isto atribuía-se a um órgão do nível federal (Senado da República) formado por representantes dos Estados-membros, um poder de controle sobre a dimensão da carga tributária gerada por este significativo imposto.

Por outro lado, cabia aos Municípios a competência para tributar serviços em geral (com base em definição feita por lei complementar que especificam as atividades tributáveis) neles incluídos não apenas serviços de caráter artesanal e repercussão econômica localizada exclusivamente em seu território, como serviços que podem ter maiores reflexos no processo econômico, como por exemplo, a construção civil. Para o imposto municipal sobre serviços, a CF/67 previa a possibilidade de serem fixadas alíquotas máximas, mediante lei complementar federal, figura legislativa que depende de um processo especial de aprovação no Congresso Nacional.

Ou seja, na CF/67 atribuía-se, em última análise, a União Federal o poder de definir a dimensão de seus próprios tributos e a aptidão (através do Senado ou de uma lei complementar) de fixar o texto da carga tributária que seria gerada pelos dois impostos de competência estadual e municipal de maior representação no processo econômico. Esta aptidão foi exercida em se tratando de ICM, mediante resoluções do Senado Federal, fixando tais alíquotas máximas, definidas para as operações dentro do Estado, operações interestaduais e operações de exportação (as alíquotas variaram significativamente desde a implantação do ICM em 1967 e, nas operações interestaduais as alíquotas diferem conforme as regiões em que se encontrem os Estados remetente e destinatário da mercadoria). Por outro lado, no âmbito do ISS, foi editado o Ato Complementar 34, de 30.01. 1967 (cuja constitucionalidade veio a ser questionada pelos Municípios) que fixava as alíquotas máximas conforme o tipo de serviço. Em suma, na CF/67 existiam mecanismos voltados à busca de controle sobre a pressão que o aumento de impostos por Estados e Municípios pode gerar na carga tributária global.

Tais mecanismos retratavam um modelo de convívio federativo que dava à União e aos interesses nacionais alta relevância.

Na Constituição Federal de 1988, o quadro se altera: não só os Estados passam a ter competência para tributar determinados bens e atividades que, anteriormente, eram onerados por impostos federais (minerais, combustíveis, energia elétrica, comunicações e transportes) como também foram eliminados o regime de alíquotas uniformes do ICMS (que passou a ser seletivo em função da essencialidade dos produtos). Além disso, reduziu-se a competência federal para estabelecer limites à tributação estadual (mantida apenas a competência do Senado para prever alíquotas em operações interestaduais, de exportação e a fixação de alíquotas máximas ou mínimas em hipóteses especiais). Como regra, não há mais um teto para alíquotas em operações realizadas dentro de cada Estado. Estas mudanças fizeram com que certos bens (p. ex., energia elétrica e combustíveis) tivessem uma alteração profunda no nível de tributação, passando de uma situação de baixa tributação (ou mesmo não tributação) para alíquotas que, em certos Estados, chegam a 25%. Esta mudança é muito significativa, mesmo considerando que, na tributação pelo ICMS, haverá possibilidade de aproveitar o crédito do imposto nas operações subseqüentes. De fato, se no curso do ciclo econômico esta elevação da alíquota pode ser compensada, quando se trata de consumidor final o impacto é imediato. Quanto aos Municípios, ainda permanece a previsão constitucional da possibilidade de serem fixados limites máximos às alíquotas do ISS, mas há dúvidas quanto a existência concreta de norma de natureza complementar impondo tal restrição.

Concluindo: o primeiro grande desafio que surge num federalismo fiscal se encontra na definição do dimensionamento da carga tributária global, imposta à sociedade. Mecanismos de controle podem ser imaginados (alíquotas máximas, lei complementar definindo a matéria tributável etc.) mas estas restrições e limites sempre poderão ser questionados em função da autonomia que o pacto federativo pretender assegurar aos Estados.

Da ótica de uma análise sobre a Federação, o desafio é encontrar o ponto de equilíbrio entre a atribuição de competências e o controle sobre o seu exercício.

3.2 Distribuição dos encargos públicos

O segundo desafio diz respeito à distribuição dos encargos públicos. Num Estado de estrutura federal, tão importante quanto definir quem poderá instituir certo imposto, é especificar quais despesas ou serviços públicos ficarão a cargo de cada entidade. Este tema envolve o debate sobre a natureza dos serviços públicos e o grau de descentralização administrativa que se pretende definir para as entidades políticas internas (Estados-membros).

Por sua natureza, determinados serviços se vocacionam a ser prestados pela União por dizerem respeito a valores ou interesses do país ou da sociedade como um todo. Assim, por exemplo, os serviços gerais de defesa de território nacional, manutenção de forças armadas, no mesmo sentido, os serviços de seguridade social na medida em que todo trabalhador deve ter as mesmas possibilidades de acesso a benefícios da previdência e proteção contra infortúnios. Outros serviços, porém, não apresentam uma natureza que aponte necessariamente para uma competência federal, comportando acesos debates quanto à sua configuração. Assim, por exemplo, o serviço de saúde tanto pode ser prestado por entidades federais como estaduais ou mesmo locais; ou ainda sua prestação pode ser fracionada conforme o tipo de prestação. Ou seja, há serviços que comportam múltiplas formas de conformação orgânica e funcional. O mesmo se diga da educação, dos transportes, das obras públicas etc.

Este é o segundo grande desafio: definir os encargos públicos que serão de responsabilidade de cada entidade política, sabendo-se que, nesta definição, será fundamental encontrar um ponto de equilíbrio entre os encargos e as receitas asseguradas à entidade.

3.3 "Guerra fiscal"

O terceiro desafio envolve o tema que, no Brasil, se convencionou chamar de guerra fiscal entre Estados dentro da Federação, no qual surgem importantes questões relacionadas ao federalismo cooperativo.

O quadro é o seguinte, cada Estado tem autonomia financeira para dispor sobre seus próprios recursos. Cada Estado tem interesses próprios que, muitas vezes, podem não conflitar, mas não são necessariamente idênticos aos de outros Estados. Cada Estado tem sua própria política de desenvolvimento econômico e social, atendendo às suas peculiaridades locais. A instalação de empresas em seu território corresponde a um importante objetivo a ser perseguido, não só pelo incremento da arrecadação estadual, como também pela geração de empregos daí decorrente. A Constituição Federal contempla uma vedação expressa no sentido de que benefícios, incentivos fiscais e isenções de ICMS só podem ser concedidos mediante convênio entre os Estados. Restrição, porém, que não abrange outros mecanismos financeiros (financiamentos especiais etc.), desde que não tenham base no imposto.

Diante deste quadro, muitos Estados passaram a instituir mecanismos de fomento, apoio ou incentivo às empresas que se instalarem em seu território, instaurando o que se dominou de guerra fiscal, assim entendia a oferta e concessão pelos Estados de conjuntos de benefícios financeiros, ou mesmo fiscais, visando atrair o investimento a ser feito no novo empreendimento. Neste contexto, têm sido utilizados os instrumentos mais dispares. Há Estados que concedem financiamentos em condições especiais com benefícios significativos; outros concedem isenções fiscais; outros criam mecanismos de devolução do imposto estadual (ICMS); outros dão prazo longuíssimo para pagamento desse imposto etc.

Esta "competição" entre os Estados pode ser sadia se cada um se ativer à vocação que lhe é própria e se limitar a conceder benefícios que apresentem uma equação equilibrada entre as vantagens obtidas com o empreendimento (geração de receita, aumento da oferta de emprego) e os dispêndios realizados pelo Poder Público.

Porém, em muitas situações, Estados têm se utilizado indevidamente do ICMS como instrumento para a concessão de tais atrativos o que, além de esbarrar na proibição constitucional à concessão unilateral de incentivos ou benefícios fiscais de ICMS pelos Estados, pode gerar distorções econômicas no processo de produção e circulação da riqueza. De fato, o ICMS é um imposto que, embora seja de repercussão nacional, foi atribuído à competência estadual; ademais, deve ser um imposto geral que resulte neutro no processo econômico. Assim, sua instituição e funcionamento em todo território deve ser harmônica e compatível. Se um Estado concede unilateralmente um benefício com base no ICMS (p. ex., uma isenção), a carga tributária do imposto sobre aquele produto resulta distorcida, na medida em que parte do ciclo do produto não será onerada.

Neste contexto, o conceito de federalismo solidário e cooperativo indica a necessidade de existirem mecanismos que, de um lado, assegurem a autonomia dos Estados de modo a possibilitar a adoração de programas próprios de desenvolvimento segundo suas peculiaridades e, de outro lado, inibam uma competição predatória entre os Estados mediante a utilização de instrumentos tributários. Neste último aspecto cabe mencionar o papel que o Supremo Tribunal Federal tem na composição dos litígios que envolvam interesses de mais de um Estado, existindo diversos processos em andamento, de iniciativa de um Estado contra medidas adotadas por outro.

3.4 Critérios de definição da competência tributária

O quarto desafio é de ordem eminentemente técnica, qual seja, encontrar os critérios de definição da competência tributária atribuída a cada uma das entidades que compõem a Federação. Esta é uma preocupação constante nos ordenamentos de tipo descentralizado (veja-se o clássico Princípios comuns de Direito constitucional tributário, Victor Uckmar, São Paulo : RT , 1976, p. 91 et seq.).

Autonomia financeira supõe a existência de impostos de competência própria de cada entidade política (União, Estado-membros e, eventualmente, Municípios). Para cada um deles ter sua área específica de tributação é necessário haver uma discriminação de competências em nível constitucional. A existência de outorga constitucional de competência tributária própria a cada entidade é decorrência da necessidade de assegurar sua autonomia pois, se a atribuição de competência ficasse entregue ao Congresso, seria sempre uma das entidades políticas (União) a titular da aptidão de definir o que seria tributável pelas demais. Daí a previsão, na própria Constituição, dos tributos que são atribuídos à União, aos Estados-membros e aos Municípios.

Na discriminação de competências tributárias, porém, é preciso definir alguns critérios. Em primeiro lugar, é preciso definir se a atribuição de competência será de caráter exclusivo, ou seja, se aquela parcela da realidade econômica descrita pela norma de atribuição de competência que foi conferida a uma entidade (p. ex., Estado) somente poderá ser atingida por ela própria ou se haverá áreas de competência concorrente que comportarão tributos de mais de uma entidade tributante. A opção da Constituição brasileira em matéria de impostos foi de indicar áreas de competência exclusiva de cada entidade, de modo que todas as vezes em que uma entidade edita uma lei instituindo um tributo que invada área reservada a outra pessoa política, esta lei é considerada inconstitucional por ferir a norma constitucional de atribuição de competência. Porém, ao lado da competência exclusiva de cada entidade política, e ciente de que a enumeração de matérias tributáveis por impostos pode não esgotar a totalidade de eventos que denotem manifestação de capacidade contributiva, a Constituição prevê também o que se denominou de competência residual, no sentido de que a União pode instituir impostos sobre toda e qualquer hipótese que não se confunda com as já atribuídas a Estados e Municípios (CF, art. 154). Ou seja, uma norma de completude do sistema tributário.

Em segundo lugar, é preciso definir que tipo de conceito será utilizado para distribuir as competências. Em princípio, podem ser utilizados para tal fim, tanto conceitos que denotam fenômenos de elevado teor econômico (p. ex., renda e grandes fortunas), como conceitos que se refiram a realidades eminentemente jurídicas (p. ex., salário, mercadoria e imóvel). A Constituição brasileira se utiliza dos dois tipos de conceitos para discriminar as competências tributárias, o que torna o sistema altamente complexo ensejando inúmeras situações em que a realidade dos fatos (que nem sempre se apresentam como a lei abstratamente os previu) faz com que surjam conflitos entre leis estaduais e federais ou vazios tributários fruto da incapacidade do legislador prever todas as situações possíveis.

Em terceiro lugar, assume relevância o tratamento que venha a ser dado à figura das contribuições, especialmente as destinadas à seguridade social. A importância da sua disciplina é claramente identificada quando se tem presente que no Brasil a contribuição devida ao sistema de seguridade social adotada como bases de incidência, dentre outros, o faturamento e seu lucro que, em tese, são bases econômicas próprias de impostos. A definição da sua natureza e da relação que as contribuições devem manter com os demais tributos é elemento do qual depende a coerência do sistema tributário.

A temática dos conceitos tem se apresentado como de imensa relevância no Direito tributário brasileiro, e muitas questões judiciais têm se desenvolvido em função do sentido e alcance que se dê às palavras utilizadas pelo legislador ou pelo constituinte.

3.5 Neutralidade da tributação

O quinto desafio é um desafio de caráter menos político e mais técnico. Trata-se de assegurar a neutralidade da tributação perante a concorrência das empresas no mercado. O tributo não deve se constituir em elemento que interfira na concorrência; não pode se transformar em elemento que constitua custo maior para uns, do que para outros concorrentes.

Embora esta seja uma afirmação até certo ponto óbvia, a neutralidade tem se tornado de difícil obtenção quando se está perante um sistema complexo de tributação, fruto da intersecção dos critérios de discriminação de competências. Quanto maior for o número de impostos e contribuições e quanto mais sejam utilizados como critério de discriminação de competência conceitos que comportem áreas cinzentas de abrangência, maior será a possibilidade dos contribuintes encontrarem hipóteses não atingidas pela tributação.

Identificadas tais áreas ou hipóteses, a experiência brasileira tem visto multiplicarem-se as discussões judiciais visando assegurar o Direito de não sofrer tributação em tais situações (pleitos muitas vezes julgados procedentes), o que pode significar, na prática, a obtenção de uma vantagem diferencial quando comparada a carga tributária suportada por duas empresas concorrentes do mesmo setor (uma pagando o imposto e outra obtendo uma decisão judicial favorável, liberando-a da exigência).

Ou seja, a complexidade do sistema tributário e a dificuldade de encontrar critérios de discriminação de competências absolutamente nítidos têm levado a situações em que empresas concorrentes resultam submetidas a cargas tributárias diferentes, o que afeta a neutralidade da tributação e pode distorcer a concorrência.

Em suma, os postulados de um federalismo solidário e cooperativo repercutem profundamente no equacionamento da tributação em nível constitucional, pois influenciam os critérios de atribuição e exercício das competências impositivas, bem como o perfil e a amplitude que se pretenda dar à autonomia dos Estados-membros e aos parâmetros do seu relacionamento. Num Estado federal, ao lado do convívio sadio das entidades públicas, têm igual relevância as dificuldades técnicas na definição da matéria tributável, que pode resultar em uma desigualdade de tratamento perante a tributação.

Em grandes linhas, este é um breve resumo da experiência vivida e esses são os principais desafios que se apresentam atualmente ao federalismo fiscal no Brasil.

Fonte: Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, Ano 1, n. 2 – Julho-Dezembro de 1998, São Paulo: 1998, pp. 97-104. 

 

(Digitalizado e conferido por Gabriela Faggin Mastro Andréa)