Competência Tributária Municipal

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

1. Sobre a noção de competência. 2. Sobre a competência tributária constitucionalmente atribuída aos Municípios e seu fundamento na autonomia municipal. 3. Sobre a competência tributária municipal. 4. Conclusão

l. Sobre a noção de competência

1.1 Competência é uma forma de poder jurídico, isto é, de exercício impositivo de comportamentos e relação de autoridade regulado por normas. Enquanto poder jurídico, competência pode ser entendida especificamente como capacidade juridicamente estabelecida de criar normas jurídicas (ou efeitos jurídicos) por meio e de acordo com certos enunciados.

l.2 A norma ou normas que estabelecem a competência são chamadas de normas de competência em oposição às chamadas normas de conduta (cf. Ross. Lógica de Ias Normas, 1968). A distinção fundamental entre ambas está na relação jurídica que delas deflui e nas consequências de sua violação. Normas de conduta estatuem relações de obrigação e sua violação implica responsabilidade. Já normas de competência estatuem relações de sujeição e sua violação afeta-lhes a eficácia. Ou seja, quem viola uma norma de conduta não afeta a eficácia do ato jurídico que ela agasalha, apenas se vê imputada uma responsabilização. Já o descumprimento da norma de competência provoca a nulidade ou a anulação dos atos.

1.2.1 Se o ato jurídico produzido conforme a norma de competência é ele próprio uma outra norma, então dizemos que a violação da norma jurídica provoca a invalidade da norma produzida. Ou seja, o exercício de uma competência legislativa conforme uma norma superior de competência, fora de seus limites, é ato jurídico nulo e a norma criada por este ato é inválida. Ou ainda, as normas de competência são sempre constitutivas.

1.2.2 A distinção teórica entre normas de conduta e de competência, na prática, nem sempre é clara. Saber se uma autoridade pública que ultrapassa os limites de sua competência produz ato nulo ou incide em responsabilidade civil, salvo quando esta imputação é expressa em normas de conduta, é, muitas vezes, questão de interpretação.

1.3 A norma de competência que estabelece este poder especial de criar normas enuncia, também, as condições necessárias para o exercício de tal poder. Usualmente, estas condições são divididas em três grupos: as que delimitam qual sujeito está qualificado para realizar o ato criador da norma (competência pessoal), as que delimitam o procedimento a seguir (competência procedimental) e as que delimitam o alcance possível da norma criada com relação aos sujeitos passivos desta, à sua situação e ao seu tema (competência material).

1.3.1 As sociedades modernas, cujo direito se insere no fenômeno da positivação, isto é, no qual se pressupõe a mutabilidade com a regra e a legalização da mudança como princípio, costumam classificar as normas de competência por seu conteúdo e por sua função.

1.3.2. Assim, de um lado podemos falar em normas de competência cujo conteúdo é o estabelecimento de um poder que chamamos de autonomia privada e cuja função é capacitar o sujeito a dar forma a suas relações jurídicas de acordo com seus próprios interesses no marco da ordem jurídica. Por definição, portanto, este poder é não qualificado (qualquer pessoa o tem), é autônomo (é usado para obrigar a própria pessoa competente: capacidade passiva), é discricionário (exerce-se livremente) e é transferível (pode ser transmitido a outro). O poder mesmo não é um direito mas parte de um direito transferível (Ross, ob. cit.).

1.3.3 De outro lado temos as normas de competência que criam o que se costuma chamar de autoridade pública. Estas normas possuem caracteres opostos e correlates às anteriores. Isto porque, sendo seu conteúdo o estabelecimento da autoridade pública, sua função é capacitar um agente para dar forma às relações jurídicas de terceiros. Em decorrência, são características destas normas a criação de um poder apenas para certos sujeitos especialmente qualificados (poder qualificado), um poder que se exerce não para si próprio, portanto heterônomo, cujo exercício é um dever para com a comunidade, i.é, um múnus publicum e que, por se qualificado, “não é transferível” podendo apenas e eventualmente ser delegado.

1.3.4 As normas de competência estabelecem, por fim, relações de subordinação cujos correlatos são, de um lado, a competência, de outro, a sujeição e, negativamente, de um lado, a incompetência, de outro, a imunidade. Em princípio, sendo a competência uma situação delimitada pessoal, procedimental e materialmente, a incompetência é, por definição, não específica, isto é, a autoridade é incompetente para tudo o que não for de sua competência expressa. O mesmo se diga para o seu correlato, a imunidade. No Direito Público, no entanto, por força de princípio da legalidade estrita, costumam-se estabelecer imunidades específicas que não decorrem apenas do argumento “e contrário”, mas são conteúdo especial de normas: é o caso, p. ex., das imunidades tributárias.

1.4 Por último, normas de competência têm a estrutura de normas permissivas, isto é, seu dever se expressa por meio de juntores do tipo: é autorizado, é facultado, pode, cabe, que constituem as chamadas permissões fortes (cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo de Direito, 1988).

2. Sobre a competência tributária constitucionalmente atribuída aos Municípios e seu fundamento na autonomia municipal

2.1 Na Federação brasileira, o Município é um ente público, político, que constitui a República Federativa: "...formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal" (art. 1.°, CF). Trata-se de concepção normativa sui generis, posto que via de regra a federação se constitui pela união de Estados. A tradição brasileira, contudo, pela importância histórica do municipalismo na implantação da colônia, a unidade territorial “Município”, conquanto não representada no exercício político congressual (não há senadores municipais), constitui a federação brasileira. Isto é, embora não representados no pacto da chamada constituinte congressual, o Município é parte integrante da República Federativa, regendo-se por um estatuto próprio, a lei orgânica municipal, cuja elaboração participa, de algum modo, do chamado poder constituinte decorrente (v. art. 29: “O Município reger-se-á por lei orgânica... atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos”).

2.2. A autonomia municipal é assegurada pelo mencionado art. 29 da CF e também pelos arts. 18 e 30. Autonomia significa capacidade de gerir seus próprios negócios mas também capacidade de exercício de poder heterônomo no caso de autonomia como qualidade de ente político.

2.3. Até agora as Constituições brasileiras haviam outorgado ao Município uma autonomia em termos de “governo próprio” e “competências exclusivas”. A Constituição Federal de 1988 acrescentou, como vimos, o poder de “auto-organização”. Em síntese, a autonomia municipal, sede de competência tributária, resulta de atribuições constitucionais (via normas de competência) que outorgam ao Município capacidade de auto-organização (lei orgânica), de autogoverno (eletividade do Executivo e Câmara), de poder heterônomo (elaboração de leis municipais ou capacidade normativa), e de autoadministração (capacidade de instituição de tributos arrecadação e aplicação: autonomia financeira) (CF. José Afonso da Silva, O Município na Constituição de 1988).

2.4. O poder heterônomo do Município é garantido pelo art.30,I,II. De um lado, assegura-se a competência para legislar sobre assuntos de interesse local. Deve-se entender, com isso, competência legislativa exclusiva e não apenas peculiar ou de características peculiares, como se podia inferir da Constituição de 1967-1969. Ou seja, no novo perfil constitucional do Município, o poder heterônomo tem traços próprios, mormente no que diz respeito à legislação tributária e financeira. Neste sentido, entende-se que a Constituição Federal tenha atribuído ao Município competência comum com a União, Estados e Distrito Federal (art.23), competência legislativa supletiva (art.30, II), embora excluindo-o do art. 24 (competência concorrente). Aliás, esta exclusão faz pleno sentido, posto que a competência legislativa concorrente diz respeito à possibilidade de os Estados e o Distrito Federal, na omissão da União, legislarem sobre normas gerais. Ora, admitindo, porém, a federação brasileira que o território se divida, no interior dos Estados, em Municípios, seu poder normativo heterônomo só pode exercer-se, tendo em vista interesses locais (art.30,I) naquilo em que o local de um Município se confronta com o local de outro Município. Quando o interesse é extra local, ou se trata de assunto comum com a União, Estados e Distrito Federal e, então, no âmbito da localidade do interesse comum, o Município também tem a sua competência própria ou então se trata de interesse genérico, não podendo o Município, na omissão da União, aí, adentrar sem colidir com os outros, donde a competência concorrente estar ele excluído. Nesse caso lhe resta apenas a competência suplementar (art.30,II).

2.5 A distinção entre o comum e o genérico é importante para o entendimento deste ponto e diz respeito à distinção entre normas gerais pelo destinatário e gerais pelo conteúdo.

As normas gerais pelo destinatário se destinam à universalidade dos sujeitos. Com elas se correlacionam as normas particulares, que se destinam a um sujeito ou a um grupo de sujeitos.

As normas gerais pelo conteúdo têm por facti species a descrição de uma hipótese de uma situação abstrata, na forma de um tipo ou categoria genérica. É o caso, p. ex., da norma que veda a prisão civil por dívida. Ela se refere a toda e qualquer dívida. Em correlação temos as normas singulares, cujo conteúdo é específico. Por exemplo, a norma que admite a prisão por dívida decorrente de obrigação alimentar.

Ora, quando as autoridades recebem competência concorrente suas normas serão gerais ou singulares pelo conteúdo. Se a União deve limitar-se às normas gerais e não usa de sua competência, então, ficando um conteúdo sem disciplina genérica, admite-se que outras o façam em seu lugar. Se a competência de uma autoridade para legislar sobre norma geral é exercida, generalidade pelo conteúdo, tendo em vista o interesse genérico, as normas gerais das demais autoridades devem ceder.

Mas se a competência é para editar normas gerais pelo destinatário, a competência exclusiva de uma autoridade se limita pela competência exclusiva de outra. E a falta de uma norma geral pelo destinatário de uma não pode ser nem substituída pela norma geral de outra nem mesmo suplementada.

Ora, os Municípios têm interesses comuns com os demais entes e, no seu âmbito, têm competência exclusiva, tanto para normas individuais quanto para gerais pelo destinatário. Mas não têm interesses genéricos, não podendo, pois, editar normas gerais no sentido de competência concorrente, na omissão da União, tendo, porém, no âmbito local, competência suplementar às normas gerais pelo conteúdo da União e dos Estados.

3. Sobre a competência tributária municipal

3.l A competência tributária dos Municípios, na Constituição Federal, está contida imediatamente em normas de competência constitucionais ou mediatamente em normas previstas na Constituição, as leis complementares.

3.1.1 A competência tributária dos Municípios está primeiramente na norma contida no art. 30, III ("Compete aos Municípios: ... III — instituir e arrecadar os tributos de sua competência...."). Nesta norma, cujo juntor permissivo está na expressão "compete" (“é atribuída” ao Município competência para ou “fica autorizado” o Município a .... ou “permite-se” – “faculta-se, expressamente, ao Município que. . .), aparece como conteúdo precípuo da norma a instauração de uma autoridade pública — “o Município” — e como função “instituir” (e arrecadar) tributos. Trata-se, obviamente, de um poder qualificado (a competência é, expressamente, municipal, excluindo outras autoridades), heterônomo (pois visa à instituição de tributos para outros), sendo um munus publicum intransferível e, por disposição expressa no Código Tributário Nacional (art. 7.°) também indelegável. A competência para instituir é correlata com a de revogar e, expressamente, com a de isentar (art. 151, III) e de anistiar e remir (art. 150, § 6.º).

3.1.2 Como norma de competência, aquela contida no art. 30, III, é norma constitutiva. Ou seja, a competência tributária não é poder que se possa exercer pelo ente público, independentemente da norma, p. ex., como uma faculdade "natural" de conglomerados políticos. Segue-se que o exercício da competência fora de suas condições gera nulidade do ato e invalidade da norma instituidora de tributos. Por outro lado, normas constitutivas, salvo ressalvas expressas, possuem eficácia imediata e plena. A norma do art. 30, III, instituidora da competência tributária municipal, produziu seus efeitos no momento da promulgação da Constituição (5.10.88). Doutro modo teríamos tido um complicado interregno entre os tri-butos instituídos pelo Município enquanto autoridade pública pela Constituição de 1967-1969 e sua recepção pela Constituição de 1988.

3.1.3 Outra, porém, é a situação das condições necessárias para o exercício do poder instaurado. A própria norma do art. 30, III, faz menção a estas condições ao enunciar: "instituir e arrecadar tributos de sua competência". A aparente redundância "compete”... “instituir tributos”... “de sua competência" mostra que se trata de dois usos distintos da mesma expressão: na primeira — compete aos Municípios — o verbo aparece como juntor, o qual confere à norma seu caráter prescritivo (norma permissiva específica: instaura uma relação de sujeição); na segunda — de sua competência — o substantivo refere-se às condições do exercício. A norma do art. 30, III, portanto, é norma dependente, que se relaciona sistematicamente com outras.

3.2 A primeira regra delimitadora das condições — competência pessoal — emerge da utilização da partícula possessiva "sua competência". Trata-se de uma condição que individualiza, ao qualificar, a autoridade pública em contraste com outras autoridades, que são a União, os Estados e o Distrito Federal. O Município, de cuja competência se trata, é a unidade constitutiva da República Federativa (art. 1.° da CF), que se rege pela lei orgânica aprovada por sua Câmara Municipal (art. 29, CF), cujo património, renda ou serviço goze de imunidade perante a competência, no que se refere a impostos, dos outros e que, a contrario sensu, é igualmente incompetente para os mesmos efeitos perante os demais. Ou seja, para a Constituição Federal só há quatro autoridades públicas com competência tributária: União, Estados, Municípios e Distrito Federal. O Município é, qualificadamente, uma delas. Para eventuais conflitos, a Constituição Federal remete à lei complementar (art.146,I), isto é, ao Código Tributário Nacional.

3.3 A segunda regra delimitadora — competência procedimental — se infere, inicialmente, do uso, no art. 30, III, da expressão “tributos” (no que concerne ao nosso tema: competência tributária). A vedação constitucional de exigir tributo sem lei que o estabeleça (art. 150, I, da CF) faz da lei o instrumento normativo próprio para o exercício da competência. Com isso, todos os procedimentos próprios da atividade legislativa passam a delimitar a competência tributária do Município, atribuindo a Constituição Federal tais funções à Câmara Municipal (art. 29, IX). Note-se que a competência tributária dos Municípios é para instituir tributos mediante leis mas não legislar sobre direito tributário, de cuja competência estão excluídos (v. art. 24, CF). Deve-se entender com isto que não cabe ao Município criar figuras tributárias in genere nem estatuir leis de natureza complementar ao sistema tributário. A expressão ‘’Direito Tributário’’ tem um contorno dogmático de ordem sistemática que inclui princípios, regras, tipologias, no qual, nesse contexto, não está incluído cada tributo concretamente estatuído, mas a competência para instituir e a correspondem-te figura tributária. A Constituição quer dizer, pois, com Direito Tributário, normas gerais, isto é, normas gerais pelo conteúdo ainda que, eventualmente, não gerais pelo destinatário.

3.4 Obviamente, a exigência de lei vai significar sua necessidade para instituição, extinção ou majoração de tributos, definição do estado gerador da obrigação tributária principal, fixação da alíquota e da base de cálculo dos tributos, cominação de penalidades, hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de crédito tributário ou de dispensa ou redução de penalidades (CTN, art. 97). Além disso, entram aqui todas as cláusulas das limitações constitucionais ao poder de tributar (salvo, talvez, o art. 150, V — limitar tráfego via tributação).

3.5 A terceira regra delimitadora das condições — competência material — reporta-se ao uso mesmo do substantivo "competência". Em primeiro lugar, o art. 145 da CF disciplina quais os tipos de tributos admitidos (condição tipológica): impostos, taxas, contribuição de melhoria. Já o art. 156 prescreve quais os impostos que condicionam a competência tributária municipal. Sobre este tema o seminário cuida abundantemente e sua análise extravasa o âmbito desta exposição.

4. Conclusão

A outorga constitucional da competência tributária ao Município é plena, ressalvadas as limitações constitucionais. Ou seja, seu poder heterônomo é, constitucionalmente, exclusivo e não pode ser limitado nem pela União, nem por Estados, Distrito Federal, ou obviamente por outros Municípios conforme o princípio do destinatário territorial (o sujeito em seu território). O Município, porém, não tem capacidade para legislar sobre normas gerais de direito tributário ainda que de incidência local. Se possível, sua competência, nesse âmbito, seria apenas suplementar, se coubesse, mas nunca concorrente. Ou seja, não lhe cabe legislar sobre normas gerais pelo conteúdo na ausência de normas federais ou estaduais, embora lhe caiba aperfeiçoar, por normas especiais, a generalidade (competência supletiva, mas não concorrente).

Fonte: Revista de Direito Tributário, nº 54, RT, São Paulo: 1990, pp. 158-163.