Apenas um dos momentos da crise

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

A voz coincidente de alguns empresários exigindo a redemocratização, acompanhada das declarações do en­tão ministro Severo Gomes, de que o Brasil deveria promo­ver a participação de grupos de interesses diversos, em nome de um pacto de aceitação e não de submissão, foi apenas um dos momentos da crise politica atual e não sua causa especifica.

A velocidade dos acontecimentos, por isso mesmo, tem levado os analistas a alguns equívocos, dadas as informa­ções desencontradas e os diversos boatos. No início, houve, quem saudasse com fervor romântico o passo à frente em busca de um novo mundo e de uma nova nação. Com o tempo, porém, surgiram os que se lançaram contra a classe empresarial, acusando-a de ingratidão num momento em que as dificuldades econômicas criaram pânico. Posterior­mente, apareceram os que contestaram as vantagens de estar próximo aos centros decisórios, mas sem poder deter­minar as estratégias.

Ontem, foi a vez de um episódio decisivo, embora longe do final da crise: após a lembrança estranha e curiosa do ministro Mário Henrique Simonsen de que a política se faz nos partidos, Severo Gomes foi obrigado a demitir-se do Ministério da Indústria e Comércio. Não há dúvida de que as coisas estão confusas. Sob o ângulo político, por exemplo, sua demissão não pode ser encarada como um aconteci­mento fortuito. Após a crise do petróleo, da inflação e do acentuado déficit do balanço de pagamentos, o governo se viu diante da necessidade de rever seus critérios de política econômica, ciente de que não poderia continuar depen­dente dos instrumentos de exceção para inibir um amplo debate.

O dilema oficial, certamente, não tem alternativas fá­ceis. Castello Branco, Costa e Silva e Médici sustentaram-se politicamente não só pelo emprego da coerção organizada mas também, pela utilização dos mecanismos operacionais que permitiram ao regime revolucionário obter significati­vos resultados no âmbito do desenvolvimento econômico. Consequentemente, o sucesso na gestão administrativa e a performance econômica, medidos apenas em termos quan­titativos, esvaziaram crescentemente um debate que a coer­ção organizada procurava impedir.

Geisel tentou alterar esse esquema, aparentemente consciente de que os custos sociais eram elevados, na me­dida em que suprimiam as liberdades públicas, acentuavam a desigualdade na distribuição de renda devido à forte contenção nos reajustes salariais, limitavam a criatividade ao controlar a produção e divulgação de cultura, etc. No entanto, teve de enfrentar uma conjuntura altamente des­favorável, a partir da crise energética, a qual se expressou pela redução gradativa do excedente líquido de capitais, ampliando a tensão entre o setor público e a iniciativa privada.

O ministério que assumiu o poder, em 1974, aparente­mente teve a percepção de que o regime teria de passar por uma série de mudanças, com a finalidade de não comprome­ter seus objetivos iniciais, e passou a falar em máximo de desenvolvimento possível com um mínimo de segurança in­dispensável. O primeiro elemento dessa combinatória acar­retou uma série de medidas que procuraram expandir os segmentos do mercado interno, por intermédio de uma nova política de preços que dividia os ganhos de produtividade entre o produtor e o consumidor, e pela elevação dos salá­rios reais, permitindo uma melhor redistribuição das ri­quezas.

Por outro lado, o segundo elemento daquela combinatória conduziu, ao início, a um amplo debate dos temas nacionais. Posteriormente, possibilitou um momento de distensão e uma esperança de reabertura e redemocratização, mas comprometido pelo resultado das eleições de 74. O resultado, que encontra na forma como Severo Gomes foi obrigado a afastar-se de seu cargo um grande exemplo, não poderia ser outro: sem ter à disposição um instrumental técnico necessário e suficiente, acompanhado da substitui­ção de debates internos à decisão de responsabilidade ex­clusiva do presidente, a formulação e execução da política econômica tomou-se confusa e dispersa.

Nesse momento, as dificuldades também passaram a ser de natureza política, pois o problema da participação na formulação das grandes decisões é fundamental à sobrevi­vência dos regimes que procuram legitimar as relações en­tre os governantes e governados. A democracia, portanto, subordina-se em dois pilares: a ideia de representação dos governados pelos governantes, e a noção de identidade de ambos os grupos. Nesse sentido, representação significa participação mediata e institucionalizada através dos ins­trumentos políticos tradicionais, como eleições, mandatos populares, pluralismo partidário e liberdade de expressão. Do mesmo modo, identidade quer dizer participação cons­ciente, comunhão autêntica de ideias e politização da atuação de governantes e governados.

Em termos ideais, a participação exclui tanto a repre­sentatividade manipulada como a identidade forjada, fun­dada em pactos de submissão e não de aceitação, para utilizar as palavras mencionadas ultimamente pelo ex-ministro Severo Gomes. O problema é que a conciliação de ambas—representação e identidade —, na prática, torna-se uma tarefa de habilidade pragmática — um jogo demasia­damente difícil, que requer a intuição dos rumos e o senso dos caminhos.

Ora, neste momento, o sistema político brasileiro pa­rece enfrentar um dilema em grande parte resultante de sua própria estrutura: ao refrear o pilar da representação, da forma como o fez ao longo dos treze últimos anos, lan­çando sobre seus instrumentos uma aura de descrédito por ter restringido a participação popular na escolha dos gover­nantes, minimizado o papel do Legislativo e esvaziado o sistema partidário, ele acabou por abalar o pilar da identi­dade, exigindo adesão e não consenso. Em outras palavras, possou a solicitar uma comunhão difusa de grupos em nome de projetos grandiloquentes e às vezes inócuos, os quais reclamavam mecanismos de exceção todas as vezes que alguém trocava sua liberdade de dizer pela liberdade pes­soal de ser diferente.

Deste modo, uma vez comprometido o pilar da identi­dade, o governo se viu na contingência de buscar em si próprio, diante de uma crise econômica, sua legitimidade. E é ai que está o problema das dificuldades atuais: ele tem de buscar internamente uma legitimidade, mas não sabe onde encontrá-la.

A legitimidade democrática pressupõe um mecanismo impessoal de aceitação dos governantes pelos governados, o que requer participação por representação conciliada com autêntica identidade. Mas, para tanto, era preciso con­quistar o consenso dos assalariados, fomentar a participa­ção dos segmentos que compõem a classe média, compreen­der o papel da Igreja, assimilar o debate proposto pela universidade, aceitar um diálogo nos níveis reclamados pelo empresariado e, ames de tudo, fugir do monólogo.

O episódio de ontem com a demissão do ministro Severo Gomes, revela no entanto que o governo continua a insistir em mecanismos de freios e concessões, como se a arte política fosse um simples negócio econômico. Com isso. o país continua numa incerteza de rumos, como se muitas pessoas jogassem num único tabuleiro de xadrez uma par­tida a diversas mãos. É claro que o rumo e a estratégia corretos não são um ovo de Colombo. Mas, de um modo ou de outro, é preciso pô-lo de pé. Por isso, a substituição de um ministro não resolve muita coisa, uma vez que o desafio continua lançado.

Fonte: O JORNAL DA TARDE - Quinta-feira, 9-2-77 – O ESTADO DE SÃO PAULO.