A teoria tridimensional do direito de Miguel Reale

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

Foi nos quadros de uma mentalidade fortemente positivista, evolucionista e naturalista que, em 1940, Miguel Reale publicou o seu Fundamentos do Direito, provocando uma grande mudança no panorama jusfilosófico brasileiro que se faria sentir sobretudo após a Segunda Guerra.

Esta mudança é nítida na passagem da obra de 1940 para a primeira edição, treze anos mais tarde, de sua Filosofia, do Direito, cujas edições sucessivas começam a esboçar, talvez pela primeira vez no Brasil, um imenso esforço de síntese e superação, na direção de um sistema jusfilosófico elaborado a partir de premissas universais, das quais se extraem conse­quências próprias.

Em sua obra inicial, já há, sem dúvida, um esforço de articulação de ideias que remontam a Kant, Hegel, Marx, nos quadros de um histori­cismo e de um culturismo jurídicos. Nota-se, contudo, ainda um neokantismo acentuado, permeado mais largamente pela Escola de Baden, mas que, a partir de 1950, vai sendo substituído por um diálogo fecundo com as reflexões de Nicolai Hartmann, Max Scheler, Husserl, que culminaria no estabelecimento da experiência como um centro nuclear de toda uma jusfilosofia.

É possível descobrir aqui raízes de sua Teoria Tridimensional do Direito. Isto porque, na relação entre o normativo e o fálico, ao contrário do neokantismo, o "fato" não chega jamais tomado, por Miguel Reale, como "um pretenso fato puro originário", como um dado bruto recebido ab extra, mas significa "aquilo que já existe num dado contexto histórico; o "fato", de um modo geral, é "uma porção do real a qual se refere um conjunto de qualificações", ou, expresso numa linguagem fenomenológica, "a base de um complexo convergente de significações, que pressupõe um eidos", isto é, uma "essência", inconfundível com o "fato", como "tal". Nestes termos, escreveria ele mais tarde, sob o prisma da norma (em elaboração), "fato" quer dizer tanto um "dado de natureza ou um acontecimento independente da vontade humana, como os eventos e realizações resultantes dela (os objetos histórico-culturais) inclusive os modelos jurídicos enquanto já positivados, isto é, já feitos pelo homem".

Se é verdade que as normas jurídicas se dirigem aos fatos, ao discipliná-los, Reale deixa entrever, no conceito de "fato", uma "nota de tipicidade", embrionária e de natureza axiológica, não sendo, portanto, algo que, em dado momento, passa a fazer parte do mundo jurídico, mas sim algo "já dotado de sentido". Ou seja, o fato, ao qual se dirige a norma, não ganha "forma" apenas porque se torna conteúdo normativo (como em Kelsen, por exemplo), mas contém já alguma forma, que não se reduz inteira­mente à norma: é a percepção do valor.

Esta concepção de fato permite, assim, a Miguel Reale, uma reinterpretação da estrutura da norma na sua referência à "realidade". A norma deixa de ser aí um a priori, dado antes do caso concreto, um "esquema" ou "medida" de validez da "realidade", para ser um "modelo funcional" que contém em si mesmo o "fato", em outras palavras, que envolve em si, como componente integrante, intrínseco e necessário, o momento situacional e sua carga valorativa. Está aí o esquema central do tridimensionalismo.

Desse modo, enquanto no normativismo abstrato, próprio de uma teoria da aplicação do direito ingênua e não reflexiva, a norma se contra­põe ao caso concreto em termos de ajuste ou desajuste, isto é, a norma, confundida com o seu texto, é vista como um tipo geral oposto à individualidade concreta, à qual ela tem de ser adaptada, no tridimensionalismo de Reale, a norma se conexiona intimamente com a sua "realizabilidade". Por conseguinte, se é possível afirmar que a norma jurídica, como texto, é um "juízo lógico" ou "posição normativa" onde este é visto como sim­ples "suporte ideal", graças ao qual "uma dada porção da experiência hu­mana é qualificada especificamente como experiência jurídica", é preciso, por outro lado, dizer-se que a norma alberga na sua estrutura, um campo que lhe é próprio (fato) e um programa que constitui o seu sentido prospectivo (valor).

Mas a mera justaposição, numa só estrutura, de norma, fato, valor, ainda não é suficiente para entender o fenômeno jurídico. A relação de três dimensões já era conhecida como o resultado de uma atividade cognoscente, perspectivista. A isto Reale denominou tridimensionalismo abstrato. Como se a realidade jurídica conhecesse ordens, em si indepen­dentes, que a subjetividade punha em contato. Ao contrário, a concepção de Reale coloca dentro da norma a mesma problemática da relação "direi­to" e "realidade". Com isto se elimina não só a oposição que se observava entre o "direito" como "norma" e o "direito" como "conduta", mas a estru­tura abstrata à qual se acresce a dimensão valorativa. O direito é, então, para Reale, "a norma e mais a situação normada" como tipicidade axiológica, isto é, a "situação normada" não é um terceiro (plano dos fa­tos), em relação ao valor e à própria norma, pois a realidade jurídica, na sua concretude, constitui, com a norma e a situação valorada, in concreto, uma totalidade significativa.

Com essa compreensão da realidade jurídica, o campo do repertório das normas — o "complexo fático" — não pode ser analisado separadamen­te, por uma sociologia cega para um momento normativo, nem o progra­ma que lhe é imanente e que lhe confirma e lhe garante o sentido — o "complexo axiológico" — pode ser objeto de uma consideração desligada do próprio repertório, nem, finalmente, a própria norma, como texto, pode ser entendida, se reduzida a um mero "suporte ideal", sob pena de incorrermos num formalismo abstrato, próprio do trialismo abstrato.

Entende-se, assim, o que Reale chama de tridimensionalismo concreto. A norma se clarifica, nesse sentido, como o que Reale chamará de "modelo jurídico" como "estruturação — volitiva do sentido normativo dos fatos sociais", referido a "modelos dogmáticos", como "estruturas teoréticas" que procuram captar e atualizar o valor da norma na sua plenitude.

Este correlacionamento, ademais, não se dá na forma de um recorte isolado no fluxo da experiência jurídica. Ele não é estático, o que tornaria de novo abstrato, em que pese o caráter concreto e operacional dos ele­mentos postos em relação. Ao contrário, o próprio movimento entre ambos, submetidos ao que Reale denomina de "dialética de implicação-polaridade", é dinâmico. Esta dinamicidade peculiar localiza-se na sua natureza essencialmente axiológica. Daí sua concepção de um tridimensionalismo concreto e dinâmico.

Os valores, para ele, não podem ser concebidos sem a sua perma­nente referibilidade histórica, na medida em que transcendem cada for­ma. De um lado, a norma jurídica assinala um "momento conclusivo", mas não isolado e abstrato, visto achar-se inserida num processus sempre aberto à superveniência de novos fatos e novas valorações, isto exige, por outro, por parte do intérprete, uma atitude "histórico-cultural" que vai, por assim dizer, para além de uma semântica ingênua, no sentido de que as palavras da norma podem assumir um significado não previsto pelo legislador.

No tridimensionalismo concreto e dinâmico, a temporalidade própria do direito, afirma Reale, não é, pois, necessariamente, sucessiva e linear, podendo comportar tanto a interpenetração como a simultaneida­de das formas e fases. Em consequência, o próprio ato interpretativo, por isso, significa, ao mesmo tempo, a sobrevivência de formas temporais passadas e a projeção das significações passadas no futuro, no sentido da sua atualização prospectiva.

Esta concepção permite, em suma, a Miguel Reale, conceber um relacionamento novo dos componentes do processo de comunicação do direito, na medida, por exemplo, em que se supera a visão abstrata da dogmática jurídica como mero receptor passivo que simplesmente aplica a norma "emitida" pelo legislador lato sensu. Mas sobretudo a ideia de que a regra jurídica é inerente à informação da "exigência de uma opção axio­lógica havida como essencial a uma conduta típica", nos remete necessaria­mente ao sentido operacional essencialmente tridimensional do direito.

Este sentido operacional implica que as regras de comportamento e seus objetivos não são fixados a priori, isto é, o direito deixa definitivamente de ser um a priori formal da vida social, à maneira neokantiana, para ser o resultado de um processo.

A palavra resultado não nos deve confundir. Ela deve ser entendida no sentido de "opção axiológica", pois para Reale todo valor, inerente à norma, é escolhido, não pertencendo a ela por natureza. Assim, valores, uma vez escolhidos na positivação normativa, podem mudar, ou porque os fatos que eles iluminavam são outros ou porque os objetivos que eles prescreviam se transformaram. Isto, porém, explica a possibilidade de proliferação de objetivos e consequente aparecimento de conflitos em larga escala.

E aqui entra, por fim, o papel do poder. Não se trata de uma quarta dimensão do fenômeno. O poder não é um elemento, externo e subsistente por si, como se direito e poder fossem realidades distintas e contrapostas. O poder não é nem um "outro", por exemplo, um puro fato — algo como "força bruta" —, em oposição ao direito que então lhe "imporia" um regramento, nem uma "força controladora" capaz de absorver o direito (direito como força), mas um momento de positividade da opção axiológica tornada normativa. Direito sem poder não é direito, mas poder sem direi­to não é poder. Entende-se, assim, o sentido operacional do modelo jurí­dico tridimensional concreto e dinâmico, localizado, justamente, na in­versão da possibilidade de conflitos em larga escala, na medida em que, na solução normativa positivada (poder), o número de objetivos se reduz, tornando-se possível o controle dos conflitos. Como, porém, a estrutura é dinâmica, toda positivação desencadeia, a partir dela, novas opções normativas, novos conflitos, donde um processo contínuo de positivações.

Fonte: FERRAZ JR., Tércio Sampaio. “A Teoria do Direito de Miguel Reale”. In: Cidadania e Cultura Brasileira. "Homenagem aos 90 Anos do Professor Miguel Reale" . 1ª ed., São Paulo: Edusp, 2001, p. 53-57.

Texto organizado e corrigido por: Victor Alexandre El Khoury M. Pereira