A sindicalização rural

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

A — A doutrina social da Igreja e os sindicatos
l — A legitimidade dos sindicatos.

No interesse da justiça, já Leão XIII proclamara a legitimidade da intervenção estatal para assegurar designadamente a proteção aos membros mais débeis, economicamente, da sociedade. Alude, entretanto, e com perfeita razão, a uma outra forma de defesa, inconfundível no seio das sociedades livres: a auto-defesa, a "self help", isto é, o dever de os interessados organizarem a si mesmos. Embora sem precisar verdadeiramente, o Papa mencionava, na Rerum Novarum a necessidade concreta de associações profissionais, escrevendo "A experiência que o homem tem da exiguidade de suas forças, convida-o e impele-o a procurar a cooperação alheia"... "Desta tendência natural, como de um mesmo germen, nascem, primeiramente, a sociedade civil e, depois, no seio dela, outras sociedades que, nem pelo fato de serem limitadas e imperfeitas, deixam de ser verdadeiras sociedades" (R.N, ASS 23, p. 664). Ora, nesta linha, as associações profissionais se inscrevem, devendo gozar por parte dos Estados de acolhimento e de proteção, quer contra outras sociedades de caráter privado, quer contra si mesmas, isto é, nem devem ser desestimuladas nem devem se constituir num perigo para as demais.

São pois, consoante as formulações da Rerum Novarum estas palavras de Mons. Doutreloux: "Pensamos, por conseguinte, que onde os patrões, devido a circunstâncias particulares, puderem organizar estas corporações mistas, com base religiosa, farão uma obra excelente, para eles e para os operários (...); mas onde, por qualquer razão, se não puderem fundar, desejamos, com o Papa, que se criem associações só de operários" (Lettre Pastorale sur Ia question ouvrière, p. 12).

2 — As liberdades sindicais.

Afirma Leão XIII, na Rerum Novarum: "Os patrões e operários podem muito, na procura de uma solução, servindo-se de instituições apropriadas, para aliviar eficazmente a indigência, e para realizar a aproximação entre ambas as classes. Entre essas instituições, podem enumerar-se as sociedades de socorros mútuos; os vários organismos, devidos à iniciativa privada, para socorrer tanto os operários, como as viúvas e órfãos, em caso de morte, de acidente e de doença; os patronatos, instituídos para proteger as crianças de ambos os sexos, os adolescentes, e os homens feitos". E a seguir: "Pertence o primeiro lugar às associações de trabalhadores (solidalitia artificium), que abrangem, aproximadamente, tudo o mais" (RN, ASS, pp. 663-664).

Estas "collegia opificum" declaradamente mencionadas são condicionadas, evidentemente, pela liberdade de associação, isto é, a liberdade de criarem a associação sob tutela e respeito do Estado: Porém, não só a liberdade de reunirem-se em sindicatos, mas também de auto organizarem-se, isto é, de se determinarem, nos seus objetivos, sem a intromissão do poder público, ou ainda, de se organizarem como melhor lhes parecer. A missão do Estado, assim, é verificar se a sociedade cumpre sua finalidade e se os meios usados são legítimos. Mas a escolha e execução dos fins e dos meios cabe, livremente, aos sindicatos. Este dois direitos, postos em dúvida no século passado, são piramidais para a execução da justiça social e atualmente, sobre eles, não paira a menor incerteza.

3 — O objetivo dos sindicatos.

O princípio do direito de criar as associações e livremente organizá-las merece uma explicação maior, no que diz respeito aos fins que devam ser colimados.

Evidentemente, em primeiro lugar um sindicato deve ter por finalidade o bem dos próprios membros, mas o bem espiritual. Não quer isso significar que não devam eles se ocupar dos bens materiais, da prosperidade e da segurança econômica. Ao contrário, isso é também uma das partes essenciais. O que se quer dizer é que o bem espiritual deve ser uma espécie de guia supremo e uma advertência contra as associações de espírito declaradamente antirreligioso e cristão.

Pio X reconhece numa passagem clara, que "a justa organização do salário e do trabalho era um dos legítimos objetivos da associação de trabalhadores" (Singulari Quadam). Nestes termos, podemos perceber entre as finalidades dos sindicatos a salvaguarda dos direitos do trabalhador, sua automanutenção ao nível das exigências modernas e finalmente, a defesa e a salvaguarda dos interesses materiais dos trabalhadores. (V. Pio XII, Alocução de 11/9/49).

Evidentemente esta enumeração não é taxativa e limitativa. Ela é elucidativa. Mas pergunta-se, então, sob a oportunidade da utilização política dos sindicatos. A resposta é circunstancial. Em princípio é possível que uma associação tenha ao mesmo tempo diversos objetivos, inclusive, os políticos. No caso atual, dentro das circunstâncias presentes em que mais acesa esta a luta pela justiça, há uma manifestação inequívoca de Pio XII: "O sindicato exerce, naturalmente, uma certa influência na política e na (opinião pública" (...) "Ultrapassar este limite seria expor-se a graves danos. Se o sindicato como tal, em consequência da evolução política e econômica, chegasse um dia a exercer uma espécie de domínio, ou de direito, em virtude do qual dispusesse livremente do trabalhador, das suas forças e dos seus bens, como já em certos países está a acontecer — é claro que em tal caso o mesmo conceito de sindicato — que é a união para a própria ajuda e defesa — estaria alterado e destruído até" (Alocução, 11/3/45). Entretanto, o que aqui se proíbe é de o sindicato usar seu poder a ponto de ferir o bem comum, o bem público. Por outro é evidente que, como no Brasil, na medida em que os sindicatos patronais conseguem e efetivamente exercem pressão política e econômica na votação de leis que dizem respeito, não só ao interesse privado dos trabalhadores, mas ao interesse público, manda a equidade que essa participação seja equilibrada com igual atuação por parte dos sindicatos. Sobre o que insiste o Papa é a não usurpação do bem comum por parte dos sindicatos que se instituem em anjos da guarda do trabalhador, através dos chamados Estados Sindicais.

4 — Fim essencial do sindicato.

"Qual é efetivamente o fim essencial dos sindicatos, senão a afirmação prática de que o homem é o sujeito e não o objeto das relações sociais; proteger o indivíduo em face da irresponsabilidade coletiva dos proprietários anônimos; e representar a pessoa do trabalhador perante aqueles que tendem a considerá-lo apenas como força produtiva de preço determinado?" (Pio XII, Mensagem de Natal, 1952). Não resta dúvida, pois, de que "sustentar vigorosamente os direitos e as legítimas reivindicações dos trabalhadores, e levar à aplicação dos princípios cristãos, em matéria social" (Q. A.) é o duplo objetivo dos sindicatos, e seu objetivo essencial.

5 — A sindicalização rural.

As transformações que vêm sofrendo as estruturas agrárias, abaladas nas suas bases pelo desequilíbrio entre as necessidades de produção e a possibilidade de produção efetiva, refletindo fortemente na situação do próprio trabalhador rural, são motivo das mais apaixonadas discussões da atualidade.

Destas discussões, é importante verdadeiramente que o homem do campo tome consciência, como um dos principais interessados. Essa tomada de consciência, por seu lado, não deve ser realizada isoladamente — porque então perderia muito da sua força — mas socialmente. Assim como os operários chegaram a ela, sobretudo através da formação dos sindicatos, assim também o trabalhador rural deve se associar, para legitimamente oferecer a. sua perspectiva do problema.

A Encíclica Mater et Magistra, a partir do seu parágrafo 142, até o parágrafo 152, proporciona à questão agrária uma verdadeira carta de princípios, onde se procura estabelecer com vigor o papel dos agricultores (cf. § 144), através da realização consciente de sua missão. Neste sentido, diz-nos ela: "estamos persuadidos de que, na agricultura, os primeiros promotores do desenvolvimento econômico, da elevação cultural e do progresso social são os interessados, os próprios agricultores". Para tanto, isto é, para a conscientização da necessidade de sua missão, aponta o Papa a importância da associação.

O § 146 da Encíclica assinala expressamente: "Não se poderia deixar de sublinhar que em agricultura, exatamente como nos outros setores da produção, a associação é uma necessidade vital, sobretudo quando se trata de empreendimentos familiares" (O Papa faz aqui, como se pode observar uma referência evidente à oportunidade e às vantagens da propriedade familiar, conforme já fizemos notar em nossos artigos sobre a Reforma Agrária). "Em todas as circunstâncias, continua a Encíclica", os agricultores devem se sentir solidários uns em relação aos outros e se unir tendo em vista a criação de sociedades mútuas e cooperativas e das associações profissionais: ambas são necessárias, seja para tirar proveito do progresso científico e técnico, seja para assegurar a defesa dos preços". (A força da associação permite uma vitória contra o individualismo egoísta, característico de nossa sociedade e deve, também nesse sentido ser estimulada). "Por esses meios, os agricultores ficarão em igualdade de condições com as outras profissões", (uma referência ao desprezo que a. técnica industrial moderna lançou ao homem do campo), "que são muito mais organizadas. Enfim é o meio para que eles obtenham nas questões públicas uma influência que corresponda à importância do seu papel; porque, como cada um sabe, em nossa época, uma voz isolada é uma voz perdida" (MM, § 146).

A última parte da citação nos ressalta claramente o objetivo fundamental das associações profissionais rurais. Evidentemente não se esquece daquilo que referimos anteriormente, os aspectos morais e religiosos, mas dá-se uma certa ênfase ao valor da associação como meio de promover o desenvolvimento econômico, cultural e político dos membros.

6 — Sindicatos rurais: respeito às leis morais e civis.

A mesma coisa observada para os sindicatos das demais categorias é sublinhada em relação às associações rurais. Exige-se o respeito à moral, e, em relação ao Estado, guarda-se a liberdade da sindicalização, de auto-organização, devendo o poder público velar para que o sindicato, como associação privada, não ofereça perigo ao bem comum. Dai o respeito às leis civis.

A contribuição para o bem comum é apontada com relevância. Não podem os sindicatos constituírem-se empecilho para a sua realização, mas ao contrário, eles devem trabalhar para a sua efetivação. Daí a importância que o Papa concede à sua missão e à tomada de consciência do seu papel.

7 — Fins político para os sindicatos rurais.

A mensagem da Encíclica é clara: "que eles tomem parte ativa na vida pública, tanto nos organismos administrativos como nos movimentos políticos". Este ponto, que é pôsto em dúvida até mesmo para os sindicatos operários, cujo índice de conscientização é já bem maior, é declarado como necessário para a sobrevivência da classe. É claro que não deseja o Papa acentuar com isso uma importância única das entidades econômicas face às atividades globais das nações, mas não deixa, por outro lado de reconhecer a força de participação do econômico no político e social, não como causa, mas ao menos como condicionador.

A participação política, através da representação de classe se impõe, principalmente se levarmos em conta a estrutura dos países ditos de bases agrícolas.

8 — Conclusões.

A sindicalização rural revela-se hoje em dia como um dos principais meios de realização efetiva da reforma agrária. Ela possibilita aos camponeses a auto-organização, para poderem instituir em seu próprio favor uma representação efetiva dos seus direitos, uma defesa legítima dos seus interesses, uma promoção eficaz das suas reinvidicações, além de ajudá-los a si e à própria nação na realização da reforma agrária, pela pressão eventual que venham a exercer sobre o poder político.

A coordenação do seu trabalho, dentro das associações, permitirá ao camponês uma politização crescente, ao que se acrescem a formação e a orientação profissional, proporcionando-lhe a oportunidade de assumir as responsabilidades que lhe cabem na sociedade.

Através da criação do sindicato, não como uma entidade erguida no ódio opositor das classes, mas como uma Comunidade de Trabalho, garantiremos para o país uma estabilidade maior, porque fundada na justiça e não na desigualdade caótica das forças.

Texto digitado e organizado por: Gabriela Faggin Mastro Andréa.