A Filosofia do Direito no Brasil.

Tercio Sampaio Ferraz Júnior

(Da USP e do IBF)

l - O papel das Faculdades de Direito na cultura brasileira.

Antes de 1827, um pequeno grupo da sociedade brasileira era dirigido à Universidade de Coimbra para realizar seus estudos superiores. Ali, debaixo dos mais duros tratamentos e opressões, ou em Lisboa, nas Cortes, sendo atacado por grupos de numerosa multidão das galerias e ouvindo até mesmo proposições horríveis, o jovem se empenhava em obter os rudimentos do conhecimento jurídico, para trazê-los de volta ao Brasil, onde o esperava a falta de institutos para prosseguir e retomar os seus estudos. (Alberto Venâncio F°: Das arcadas ao Bacharelismo, São Paulo, 1977).

A criação dos Cursos Jurídicos entre nós, datada de 11 de agosto de 1827, manifestava, nesta conjuntura, uma mentalidade reativa, constituída pela pregação do individualismo na organização política dos Estados, pelo liberalismo nas relações econômicas e pelo romantismo na literatura. Com a proclamação da Independência, os antigos padrões coloniais de vida econômica e social e de autoridade tradicional iriam ser substituídos pela pregação de um sistema legal impessoal e nacional, que pretendia repousar sobre princípios gerais e ser aplicado segundo critérios objetivos. Quando, porém, São Paulo e Olinda recebem os seus primeiros estudantes, o país era ainda dominado por um sistema tradicional de autoridade, ligado à estrutura familiar, em que preponderam o pai, o padre ou o chefe político local. No confronto destes dois sistemas, as recém-criadas Faculdades de Direito vão representar, assim, uma lenta penetração de padrões técnicos, cujo processo antitético acompanha a vida nacional até os nossos dias.

Os juristas, durante todo o século XIX, não foram, desde o início, o que se poderia chamar de estritos profissionais do Direito. Muito mais do que isso, os bacharéis, como classe, eram elementos destacados nas instituições, políticas do país como legisladores, administradores, diplomatas, literatos. Neste sentido, as Faculdades de Direito desempenharam o importante papel de formação da cultura nacional. Colaborando na elaboração das leis, produziram ao menos doutrinariamente uma organização jurídico-legal da vida política nascente, representando uma importante força na luta em favor do Estado Liberal, ou seja, aquele Estado marcado por limitações constitucionais ao poder governamental e que assegurava áreas de autonomia à vida privada. Com um programa tão amplo e ambicioso, seu conteúdo, seus métodos e propósitos caracterizaram o ensino e a formação dos jovens, conformados à imagem do homem culto, cujo exemplo mais expressivo é, talvez, a figura de Rui Barbosa (1849-1923).

Durante mais de um século, as Faculdades de Direito foram o ambiente natural de investigações e dos debates intelectuais. De toda parte do país vinham os jovens, que passavam a viver junto as Escolas. Dentro delas, a formação curricular tinha uma importância se não secundária, ao menos paralela à formação cultural, em que se lia, se doutrinava e se discutia História, Filosofia, Economia, traçando-se as linhas básicas do estilo nacional. Daí surgiu um tipo de profissional, muitas vezes pejorativamente denominado de "bacharel", empenhado em desenvolver e propagar o conceito de Estado Liberal constitucional, predominante nos países europeus mais adiantados e nos Estados Unidos.

Os ideais do "bacharelismo", que marcaram profundamente a intelectualidade e a cultura brasileira, representaram, contudo, apenas um polo de um processo conflitivo. Durante 150 anos, a estrutura tradicional da organização social manteve traços que limitaram a expansão dos sistemas legais. Sendo basicamente uma sociedade tradicional num sentido Weberiano, os critérios de lealdade, respeito, obediência do povo voltavam-se sempre para este núcleo. Isto gerava e gerou um compromisso inerente do direito em formação mais com sistemas pessoais e de relações concretas de lealdades familiares do que com normas abstratas como virtude, outras como motivo de chacota, para o "direito do jeitinho", onde o aparato legal era e é visto antes de tudo como um instrumento manipulável, através do qual se compunham os arranjos que beneficiavam este e aquele indivíduo. Com isso, a pregação doutrinária da obediência às leis e do sistema legal como fundamento da vida civil, correspondia, na prática, a uma visão desvinculada entre o Direito (dos bacharéis) e a convivência diária, que produzia uma certa desconfiança nos procedimentos legais, substituídos por uma rede de favores e de boas relações, que, a longo prazo, concorreriam para enfraquecer o crédito na seriedade das leis, não só ao nível dos seus endereçados, mas também dos seus ministros.

As constantes crises do ensino jurídico em nosso país, como nos mostra o debate de 150 anos, são em parte o reflexo desta defasagem. A critica a uma educação "desligada das necessidades reais da prática jurídica", ao "ensino bacharelesco e meramente acadêmico", à "falta de disciplinas práticas", à insistência em ensinar teorias cuja repercussão na convivência concreta deixava muito a desejar, nada mais é do que um espelho deste gigantesco processo de formação da nacionalidade e de sua consciência jurídica.

É claro que esta defasagem existente entre o direito, discutido, proposto e realizado pela cultura universitária, e o comportamento social efetivo não é algo peculiar ao Brasil, mas um problema comum a muitos países em vias de modernização. Esta modernização, caracterizada pela importação de instrumentos legais vigentes e doutrinas nascidas no seio de nações economicamente mais desenvolvidas, foi um sério problema com o qual se defrontaram muitos países surgidos durante e após a era colonial. Sobre muitos, entretanto, o Brasil teve uma grande vantagem. Com uma população predominante de origem europeia, o país pôde, desde cedo assistir à transferência dos modelos jurídicos da metrópole portuguesa, com instituições típicas como o contrato e a propriedade, que logo se localizaram no centro da vida econômica e social do país, o que evitou que o sistema legal se tornasse peça de museu. Pois, ao contrário, de algum modo, com todas as dificuldades, reforçou os valores sociais básicos. Isto produziu, no plano da reflexão filosófica sobre o direito, obras que refletiam um inconformismo, que, embora refletisse o pensamento jurídico mais avançado de sua época, acabou por marcar e influenciar o desenvolvimento de uma cultura jurídica e jusfilosófica brasileira.

Pode-se dizer, neste sentido, que primeiras manifestações do pensamento filosófico no Brasil independente, ainda que de modo incipiente, datam da Independência, por volta de 1822. Num ambiente filosófico marcado pelo Iluminismo francês, alguns brasileiros de nomeada, como o Padre Diogo Antônio Feijó e Martim Francisco foram os primeiros a assinalar nitidamente a presença de um pensador revolucionário nas ideias entre nós. Sabe-se, assim, que Martim Francisco, na primeira década do século XIX, provavelmente entre 1804 a 1810, dirigiu e professou um curso sobre a filosofia de Kant. Chegou mesmo a elaborar um livro, que desapareceu. Parte de seus. manuscritos, intitulados: "Exposição da Filosifía de Cant" (sic) e "Filosofia de Kant" ou "Princípios Fundamentais da Filosofia Transcendental foram publicados no vol. XXXI da "Revista do Instituto Histórico Geográfico de São Paulo" de 1933-34. Não resta dúvida de que estes trabalhos representavam um dado surpreendente para uma cultura colonial, sobretudo quando se sabe que Victor Cousin, apenas em 1830, expunha a filosofia kantiana em Paris, pela primeira vez, de uma cátedra universitária (c.g. Miguel Reale, Filosofia Alemã no Brasil, in Rev. Brasil. de Fil. vol. XXIV - fasc. 93, São Paulo, pág. 5).

Pouco se sabe do que disse Martim Francisco, mas é um dado histórico importante a influência que seu curso exerceu sobre o padre Feijó, que possivelmente ouviu as aulas, entusiasmando-se com as idéias kantianas que figuram em manuscritos por ele deixados. Feijó ensinava Filosofia, no início do século XIX, distinguindo três enfoques básicos que ele dominava: dogmático, cético e crítico. Era, dos três, o aspecto crítico que ele mais acentuava para os seus alunos do Colégio do Patrocínio, em ltú, pequena cidade da Província de São Paulo, embora, a bem da verdade, muito pouco do criticismo revolucionário de Kant estivesse ali presente.

Na verdade, Kant é recebido mais como filósofo da Ilustração, aberto ao liberalismo, do que como o grande transformador do pensamento filosófico. A ideia que Feijó tem do criticismo é antes a de um ponto intermediário entre atitudes dogmáticas e céticas, criando-lhe possibilidades de conciliar a tradição escolástica com os valores emergentes da Revolução Francesa. A presumida atitude liberal de Kant foi, portanto, o motivo pelo qual seu nome aparece no incipiente mero filosófico da então colônia portuguesa.

Quando a Faculdade de Direito de São Paulo é criada, em 1827, a doutrina de Kant já era, pois, de algum modo conhecida, tanto que um clérigo chamado Padre Mimi, que dava aulas no curso preparatório, costumava expor a seus alunos a teoria Kantiana do espaço ° do tempo como formas a priori da sensibilidade. Embora incipiente, a presença de Kant no pensamento filosófico das primeiras décadas em São Paulo chegou a merecer na obra de Wilhelm Gottlieb Tennemann - Grundriss der Philosophie fúr den akademischen Unterricht -, na terceira edição revista por A. Wendt uma explícita menção, onde se fala no "Kantismo paulista'(Op. cit. 1.829, § 419, págs. 565-66).

Foi, entretanto, a partir de 1835/38 que uma reflexão jusfilosófica, aliás nos moldes do idealismo alemão, começou a entrar mais diretamente na cultura brasileira. Por esta época aparece em São Paulo uma figura envolta em mistério. Trata-se de Julius Frank, um judeu foragido da Alemanha, jornalista e publicista, que se instalou em São Paulo, e foi professor do Curso Preparatório da Faculdade de Direito. Frank, além de trazer consigo a cultura alemã, ensinou a língua aos jovens estudantes, tendo sido através do seu magistério que alguns juristas puderam ler e citar do original obras jurídicas e filosóficas do pensamento alemão.

A filosofia kantiana, contudo, deve sua continuidade no pensamento jurídico brasileiro sobretudo a um de seus seguidores menores: Krause, de quem Frank tivera notícia por via direta, provavelmente.

Karl Christian Friedrich Krause (1781-1832) estudou em Jena. Obteve uma habilitação na sua universidade de origem, depois outra em Berlim e afinal mais uma em Gõttingen. Apesar disso, jamais obteve um reconhecimento universitário, nem mesmo em München, para onde se dirigiu em 1831. Colheu, assim, em sua carreira, uma série de fracassos, o que não evitou, porém, que suas ideias conhecessem uma repercussão fora de seu país, sobretudo na Espanha, Portugal e ex-colônias. Usando uma terminologia complicada, Krause se dizia um autêntico continuador de Kant, opondo-se aos papas da filosofia de seu tempo, principalmente Fichte, Schelling e Hegel.

Krause, ao aplicar suas concepções básicas à Ética e à Filosofia do Direito, rechaçava decididamente a teoria absolutista do Estado sustentada pelos hegelianos, acentuando, em contraposição, a importância fundamental das associações ditas de finalidade universal como a família, a nação, em detrimento das associações limitadas, como a Igreja e o Estado. Estas são vistas como instrumentos realização do Direito, da Moral, da Verdade, mas não como seu fundamento, que repousa nas primeiras. Por isso, o ideal da Humanidade não é o domínio de um Estado sobre as demais, mas uma federação das associações universais sem sacrifício das suas peculiaridades.

Em São Paulo, foi João Teodoro Xavier de Mattos (1828-1878) o primeiro grande divulgador deste jusnaturalismo Krausista. Em sua "Theoria Transcendental do Direito" (1876), João Teodoro compilou as lições do curso que ministrava anualmente. Sua obra sofre influência de Krause e de seu discípulo Ahrens, também bastante divulgado em nosso meio. Para João Teodoro, o "direito em geral é o conjunto harmonioso e científico dos princípios de justiça", sendo esta, "em toda a sua generalidade", "o nosso supremo bem", fazendo eco da identificação Krausista entre moral e direito. Detalhando sua definição, João Teodoro manifesta um pensamento de harmonia e otimismo, onde o direito aparece como "a capacidade imperativa, que tem por objeto o bem, e por sujeito o titular dum destino, ou de perfeição própria" (pág. 36 e 98). Como bom Krausista, para quem a filosofia jurídica devia tripartir-se em História do Direito, Direito Positivo e Política, João Teodoro propugnava por um socialismo, visto como "coadjuvação efetiva e positiva de meios imprescindíveis à vida e ao trabalho", assinalando ao Estado, como seu fim, o fornecimento obrigatório e rigoroso de condições positivas à vida e trabalho de seus membros, organizando nele "instituições societárias, ou de outra natureza segundo as quais constante - e sistematicamente essas condições ou cooperações positivas devem ser prestadas". Com isto pretendia João Teodoro evitar certos exageros do racionalismo puro, conforme uma orientação que ele mesmo descreveu do seguinte modo: "Nunca apartamos os princípios e os factos, as doutrinas e a pratica, as leis abstratas formais e os elementos concretos e materiais. As regras e os exemplos históricos correspondem em toda obra a duas linhas distintas, porém, paralelas".

Não foi, contudo, apenas Krause o pensador Kantiano a ditar influências no pensamento jusfilosófico brasileiro. Outra fonte de longa penetração foi um discípulo longínquo de Kant chamado Ludwig Noire. Noire, uma figura apagada no historiografia filosófica, teve sua repercussão na obra de Tobias Barreto, professor na Faculdade de Direito do Recife e considerado o germanista mais ferrenho entre autores brasileiros do século passado.

A presença de Kant em Tobias Barreto, via Noire e através do neokantismo nascente de Lange, é bastante contraditória. Isto porque sua condição de pensador, era bastante delicada. De um lado, como observa Antônio Paim (in História das Ideias Filosóficas no Brasil, São Paulo, 1.967, pág. 155), necessitava ele apoiar-se no evolucionismo para combater as doutrinas ensinadas em seu tempo e que afirmavam a origem divina do homem e do direito; de outro, queria subtrair a realidade humana do império do puro mecanicismo, mas sem destruir a força e a importância do cientificismo.

O evolucionismo mecanicista recebeu-o Tobias Barreto de Ernst Haeckel (1834 - 1919), autor em grande voga no fim do século entre nós, cuja obra repercutiu inclusive na literatura realista daquele tempo. Haeckel, partindo do Darwinismo, desenvolveu uma espécie de um monoteísmo panteísta, onde só a natureza conta. Dotando-a de um movimento próprio, Haeckel considerava a matéria e a energia como atributos de uma substância única, que excluía a possibilidade de qualquer outra substância espiritual. Daí sua luta ingente contra os dualistas, que admitiam a distinção, entre realidade material e espiritual.

Tobias Barreto assimilou, a princípio, a filosofia de Haeckel, que ele, contudo, foi superado, pouco a pouco, graças ao monismo teológico de Noiré e o influxo mais direto de Kant, cujo criticismo não chegou a apreender com profundidade.

A ideia diretora do pensamento de Noiré era a de que o universo era composto de átomos, inteiramente iguais, dotados de duas propriedades, uma interna - o sentimento - e outra externa - o movimento, ambos também originariamente iguais. Destas duas propriedades resultaria o desenvolvimento, visto como o produto delas. Assim, todo e qualquer desenvolvimento seria redutível a uma modificação de movimento e, ao mesmo tempo, redutível a uma modificação do sentimento. Passa Tobias Barreto daí a uma interpretação sui generis de Kant e de sua "Ding an sich". Em relação à forma dos organismos, dizia ele, há sempre um resto que a mecânica não explica. E quando se chega às formações superiores como o Homem, a Família, a Sociedade, o Estado, este resto já é quase tudo. Com isto seu pensamento acabou por se encaminhar para um humanismo, em oposição ao positivismo e ao mecanicismo de seu tempo. Tobias Barreto reconhece, assim, o mundo da cultura, gerado a partir de fenômenos sociais irredutíveis, como o trabalho e a linguagem. Nele, o elemento definidor do homem consiste então na possibilidade de o ser humano conceber um fim e dirigir para ele as próprias ações, sujeitando-as a uma norma de procedimento.

Com base neste pensamento filosófico, Tobias Barreto desenvolveu suas ideias jusfilosóficas, onde desponta a influência de Jhering e Hermann Post que refletiam, no Direito, as teorias evolucionistas de Darwin e Haeckel.

Assim, quanto ao jusnaturalismo, Tobias Barreto nega a universalidade do Direito, alegando a historicidade do homem, quase no sentido de uma teoria da ideologia ou, pelo menos, de uma sociologia do Direito Natural. Nestes termos, o Direito só pode ser entendido como um produto da cultura humana. Neste conceito de cultura, onde está implícito o monismo teológico de Noiré, está presente a noção de finalidade e de valor, que Tobias tenta, curiosamente conciliar com o darwinismo. Daí que fosse pedir a Jhering a sua definição de Direito, adaptando-se para os seus propósitos como: o conjunto das condições existenciais da sociedade coativamente asseguradas, em que por existenciais deve-se entender evolucionais, "pois que a sociedade não que somente existir, mas também desenvolver-se". (Tobias Barreto: introdução ao Estudo do Direito, in Estudos de Filosofia, publicação da Revista Brasileira de Filosofia, n° 59, São Paulo, 1965, pág. 143).

As influências do pensamento jurídico de Tobias Barreto ficam claramente explicitadas em Clóvis Beviláqua (1859 -1944), que foi seu discípulo e seguidor. Combinando Jhering e Hermann Post, mas aproveitando-se do evolucionismo crítico de seu mestre, Clóvis é conduzido a uma visão ampliada da teoria do direito que ele distribui conforme três ordens de preocupação: a primeira é a arte jurídica, ou seja, o conhecimento prático das normas do direito positivo e em sua aplicação aos casos ocorrentes; a segunda é a ciência geral do direito, uma indagação que visa ao direito constituído, examinado sob o ponto de vista das razões especiais que o determinaram, da história, da comparação, da vida econômica e social, por fim, a filosofia jurídica, que deve estudar as condições de aparecimento e evolução dos fenômenos jurídicos, determinando as relações entre eles a e vida em sociedade, propiciando uma visão de conjunto (Clóvis Beviláqua: Criminologia e Direito, Bahia, 1896, pág. 124-125 e 130).

Desta visão de conjunto, Beviláqua extrai uma concepção evolucionista e sociológica do direito, concebido como um produto das necessidades sociais que reflete, em sua origem, sua organização e sua vida, as divergências que distanciam, entre si, os diversos núcleos associativos que os criaram, uma vez que estas divergências não sejam puramente superficiais e secundárias. Conclui-se daí que, sendo a civilização polimorfa, o direito que a reflete e a estimula deva ser também necessariamente polimorfo (pág. 134). Na base da formação do direito estaria, conforme Jhering, a luta. Para que dela surgissem os conteúdos determinados das instituições jurídicas, seria preciso recorrer à noção de conformidade com os interesses dominantes, que vem a decidir a sorte das várias tendências sociais em pugna. Isto conduziria a sociedade a uma progressiva centralização de sua aparelhagem coatora, até o aparecimento do Estado (pág. 145 ss.).

Retornando à Academia de São Paulo, assinale-se que, já por volta de 1854, na cadeira de Direito Romano, João Chrispiniano Soares, deixava clara a influência de Savigny. Num ambiente onde o kantismo de Krause começava a dominar, as concepções da Escola Histórica representava a possibilidade de se entender o direito não como pura ideia abstraia emanada da razão, conforme faziam crer os jusnaturalistas, mas como expressão do espírito do povo (Volksgeist). O historicismo obrigava Chrispiniano a desdenhar princípios racionais absolutos e deduções rigorosas de natureza lógica, substituindo-os por processos fecundos de comparação e analogia no espaço e no tempo, para entrar no senso de realidade e sentir o direito como produto de necessidades historicamente definidas (Reynaldo Porchat, cit. Pág. 35).

Ao lado de Savigny, o pandectismo marca grandemente a elaboração do direito na segunda metade do século XIX (c.f Irineu Strenger: Da Dogmática Jurídica, São Paulo, 1964, pág. 88 ss.). A ordenação sistemática das Pandectas alemãs, que serviu de inspiração a Heise, constituiu modelo das formulações exegéticas no Brasil, com destaque de Heise, uma Parte Geral, à qual se seguem cinco Partes Especiais, representa para o pensamento jurídico brasileiro um esforço de organização do nosso direito civil. Ribas, no seu Curso de Direito Civil (1865), além de Savigny e Hugo, cita e usa autores alemães como Arndts, Buchardi, Cramer, Disksen, Glück, Puchta, Zachariae, etc., reconhecendo que as dificuldades de acesso à língua tenham diminuído o aproveitamento maior da literatura alemã, que ele, ao contrário, pôde ler no original, graças às lições recebidas de Júlio Frank.

Ribas entendia que, do ponto de vista, metódico, a autêntica compreensão de um instituto jurídico se dava quando o jurista é capaz de remontar à sua origem primitiva, acompanhando as formas de que ele se revestiu, até chegar ao seu estado atual penetrando nas razões mesmas de suas sucessivas modificações. Nota-se aí, evidentemente, as influências da metódica da Escola Histórica. Sua posição, contudo, não era a do puro historicista, pois se negava a ver no direito apenas fórmulas historicamente transitórias. Reconhecia, ao contrário, a presença, no direito, da razão humana como tipo inalterável, um princípio geral e abstraio que vai se realizando historicamente segundo o grau de desenvolvimento e as condições peculiares de cada sociedade, observa-se, neste sentido, a sua preocupação em assimilar criticamente o historicismo, o que ele fez invocando, dentre outros, a obra de Ahrens. Nesta ordem de ideias de enquadra justamente a sua preocupação sistemática, fundada sobretudo em Thibaut e Heise.

Esta linha de pensamento, aliás, remontava, na cultura jurídica do século XIX brasileiro, ao ensinamento de Teixeira de Freitas (1817-1883), autor de uma célebre Consolidação das Leis Civis e de um Esboço de Código Civil, precursor do Código Civil Brasileiro de 1916 c de grande influência em países sul-americanos. Em 1860 dizia ele que "a vida real não existe para os sistemas, e pelo contrário os sistemas devem ser feitos para a vida real". Reconhecia, assim, a importância das codificações, mas assinala a necessidade de sua adequação histórica.

Em suma, pode-se dizer que a tentativa, nem sempre bem sucedida, de autoafirmação, por meio de paradigmas nem sempre conciliáveis e, no limite, até contraditórios, denota, de certo modo, no dizer de Miguel Reale, uma "admiração incondicional" ou uma "passividade de tipo colonial", que marca profundamente a reflexão jusfilosófica do século XIX brasileiro.

Na verdade, no começo do século XX, ela ensaia uma força nova, um vigor diferente, não mais distante e antitético em face do direito vivido e construído doutrinariamente, mas procurando uma repercussão imediata na práxis dogmática. Aparecem, pois, obras importantes que sustentam exigências de ordem metodológica e que repercutem no trabalho de juristas filósofos.

É interessante que João Mendes Júnior, jurista preocupado com os fundamentos filosóficos das instituições e dos sistemas jurídicos, de algum modo vem a traçar um papel para a filosofia do direito como uma espécie de doutrina de base da ciência jurídica.

Isto fica muito claro no pensamento de Francisco Campos (Introdução Crítica à Filosophia do Direito, 1918), que a coloca como uma ciência situada entre a ética e a economia política, assinalando-lhe como objetivo a elaboração formal dos princípios mais gerais do direito e o estabelecimento dos modos de formação do fenômeno jurídico.

Em sentido semelhante, a obra de Pedro Lessa preocupa-se com o processo lógico que poderia conduzir o estudo científico do direito e que, nos quadros de uma concepção positivista, deveria submeter-se aos métodos indutivos e dedutivos, no que é acompanhado por seu sucessor na cátedra de Filosofia do Direito em São Paulo, João Arruda.

No mesmo sentido, mas de uma forma a superar em muito as limitações do positivismo naturalista, podemos alinhar Pontes de Miranda.

Pontes de Miranda é uma cultura polimorfa, cujo fundamento está na importância que ele atribuiu à sociologia. Esta, diz ele, supõe a matemática, a física, a biologia, sendo a flor da cultura. Nestes termos, a própria ciência jurídica é considerada como ciência causal e não finalista, sendo o seu objetivo as relações sociais, que não podem ser alteradas ou destruídas pela vontade de ninguém, senão mediante outras forças. Nestes termos, o direito é para ele fenômeno de adaptação ou corretivo dos defeitos de adaptação social (c.f. Pontes de Miranda: Systema de Sciencía Positiva do Direito", Rio de Janeiro, 1922, dois volumes).

Algumas posições de Pontes de Miranda lembram Jhering. Mas ultrapassa-o, na linha de Somló, Wenzel, Bicrling, Jellinek, Ehrlich. Ao contrário de Jhering, pois para ele o elemento coercitivo representa um dado, despótico, que deverá ser expungido, o direito, como expressão do equilíbrio social, é indicativo, desenvolve-se de Sein para o Sollen, do que é nas relações sociais para o que deve ser nos ditames normativos.

Ora, é nos quadros desta mentalidade fortemente positivista, evolucionista e naturalista que, em 1940, Miguel Reale publica o seu Fundamentos do Direito, provocando uma grande mudança no panorama jusfilosófico brasileiro que se fará sentir sobretudo após a 2ª Guerra.

Esta mudança é nítida na passagem da obra de 1940 para a primeira edição, 13 anos mais tarde, de sua Filosofia do Direito, cujas edições sucessivas começam a esboçar, talvez pela primeira vez no Brasil, um imenso esforço de síntese e superação, na direção de um sistema jusfilosófico elaborado a partir de premissas universais, das quais se extraem consequências próprias.

Em sua obra inicial, já há, sem dúvida, um esforço de articulação de ideias que remontam a Kant, Hegel, Marx, nos quadros de um historicismo e de um culturalismo jurídicos. Nota-se, contudo, ainda um neokantismo acentuado, permeado mais largamente pela Escola de Baden, mas que, a partir de 1950, vai sendo substituído por um diálogo fecundo com as reflexões de Nicolai Hartmann, Max Scheler, Husserl, que culminaria no estabelecimento da "experiência" como um centro nuclear de toda uma jusfilosofia.

Assim, na relação entre o normativo e o fática, ao contrário do neokantismo, o "fato" não é jamais tomado como "um pretenso fato puro originário", como um dado bruto recebido "ab extra", mas significa "aquilo que já existe num dado contexto histórico"; o "fato", de um modo geral, é, "uma porção do real à qual se refere um conjunto de qualificações", ou, expresso numa linguagem fenomenológica, "a base de um complexo convergente de significações, que pressupõem um eidos, isto é, uma "essência", inconfundível com o "fato", como tal". Nestes termos, sob o prisma da norma (em elaboração), "fato" quer dizer "tanto dado de natureza ou um acontecimento independente da vontade humana, como os eventos e realizações resultantes dela (os objetos histórico-culturais) inclusive os modelos jurídicos enquanto já positivados, isto é, já feitos pelo homem". Há um conceito de "fato" uma "nota de tipicidade", embrionária e de natureza axiológica, não sendo, portanto, algo que, em dado momento, passa a fazer parte do mundo jurídico, mas sim algo já dotado de sentido.

Esta concepção de fato permite, assim, a Miguel Reale, uma reinterpretação da estrutura da norma na sua referência à "realidade". A norma deixa de ser aí um a priori, dado antes do caso concreto, um "esquema" ou "medida" de validez da "realidade", para ser um "modelo funcional" que contém em si mesmo o "fato", em outras palavras, que envolve em si, como componente integrante, intrínseco e necessário, o momento situacional. Deste modo enquanto no normativismo abstraio, a norma se contrapõe ao caso concreto em termos de ajuste ou desajuste, isto é, a norma, confundida com o seu texto, é um tipo geral oposto à individualidade concreta, à qual ela tem de ser adaptada, no normativismo concreto de Reale, a norma se conexiona intimamente com a sua "realizabilidade". Por conseguinte, se é possível afirmar-se que a norma jurídica, enquanto texto, é um "juízo lógico" ou "posição normativa" onde este é visto como simples "suporte ideal", graças ao qual -"uma dada porção da experiência humana é qualificada especificamente como "'experiência jurídica"', é preciso, por outro lado, dizer-se que a norma albergam na sua estrutura, um campo que lhe é próprio e um programa que constitui o seu sentido (prospectivo). Em outras palavras, a concepção de Reale coloca dentro da norma mesma a problemática da relação "direito" e "realidade". Com isto se elimina a oposição que se observa entre o "direito" como "norma" e o "direito" como "conduta". O direito é, para Reale, "a norma e mais a situação normada", isto é, a "situação normada" não é um terceiro, em relação à própria norma e a realidade concreta, mas constitui, com a norma, in concreto, uma totalidade significativa. Com esta compreensão de norma, o campo de seu repertório - o "complexo fático" - não pode ser analisado separadamente, por uma sociologia cega para um momento normativo, nem o programa que lhe é imanente e que lhe confirma e lhe garante o sentido — o "complexo axiológico"- pode ser objeto de uma consideração desligada do próprio repertório, nem, finalmente, a própria norma, enquanto texto, pode ser entendida, se reduzida a um mero "suporte ideal", sob pena de incorrermos num formalismo abstraio.

Não basta, entretanto, para Reale mostrar, topologicamente, que a norma constitui, por si, uma estrutura complexa, onde diferentes elementos se contrapõem e se implicam numa totalidade. É preciso uma demonstração de qualidade experimencial desta estrutura, para que não se incorra nos defeitos que apresentava, por exemplo, a concepção dialética de Schindler ou a teoria do "vale-para" de Lask. Reale parte, assim, para uma verdadeira fenomenologia da experiência jurídica.

A interpretação, diz Reale, é sempre "um momento de intersubjetividade": "o meu ato interpretativo procurando captar e trazer para mim o ato de outrem, não para que eu mesmo signifique, mas para que eu me apodere de um significado objetivamente válido". O ato de interpretação, portanto, implica uma duplicidade inicial, onde dois elementos polares - sujeito e objeto — estão postos um diante do outro. Esta polaridade, entretanto, não significa um abismo irredutível, donde a constatação de uma unidade precária, de natureza meramente lógica, mas sim uma integração aberta, em que os elementos constituem uma síntese: para o intérprete, aquilo que se interpreta consiste em "algo objetivo", mas aquele não se limita a reproduzi-lo, mas contribui, de certa maneira, para "constituí-lo em seus valores expressivos". Num segundo momento, contudo, esta duplicidade inicial se esclarece como "intersubjetividade", na medida em que o "algo objetivado" a que se dirige o ato interpretativo não é uma coisa mas um outro ato: as "intencionalidades" "objetivadas" constituem o domínio próprio da interpretação. "Intersubjetividade "significa, pois, uma vinculação entre dois elementos que se põem distintamente, mas ao mesmo tempo se interpretam e se limitam.

A consequência disto, para a hermenêutica, é a correlação assinalada por Reale entre o ato interpretativo e o ato normativo, "não se podendo, senão por abstração e como linha de orientação da pesquisa, separar a regra e a situação regrada". O instante de encontro de ambos se dá propriamente na norma jurídica, entendida não como atualização de um valor prévio e absoluto, mas como momento de uma experiência específica, em que o complexo fático e o complexo axiológico se sintetizam, graças à interferência decisória do Poder. Ora, dada a natureza peculiar da participação do Poder na "normogênese jurídica", a imperatividade da norma passa a distinguir-se tanto do querer psicológico do legislador quanto de uma validez absoluta que se especifica, resultando, ao contrário, do "processo de objetivação de valores", que se realiza, por sua vez, através de "manifestações concretas da vontade". A norma não é, assim, um "comando de ordem volitiva", mas uma prescrição em caráter axiológico, que não obriga em virtude do puro querer de que emana a norma, mas sim em virtude de pressão objetiva que os valores exercem no meio social. Desta concepção do ato normativo, segue-se a impossibilidade, para o jurista, de fazer abstração da "nota de prescritividade valorativa ínsita na estrutura da fórmula objetivada". Ou seja, o jurista, ao compreender a norma, refaz o caminho da "fórmula normativa "ao "ato normativo": tendo presentes os "fatos" e os "valores" supervenientes, ele compreende, a fim de aplicar em sua plenitude o "significado nela objetivado".

A dimensão hermenêutica da estrutura da norma torna-se, pois, evidente. De um lado, a "realidade", ou melhor, o "complexo fático", inseparável da norma nos quadros da sua normatividade, revela-se hermeneuticamente como componente constitutivo — da própria norma. De outro, o "complexo axiológico" evidencia, igualmente, a sua qualidade constitutiva no plano hermenêutico. A dimensão hermenêutica da norma é, na verdade, um aspecto particular da correlação sujeito-objeto, toda interpretação implicando uma — compreensão da estrutura da norma e vice-versa. Isto é, não só o ato interpretativo se correlaciona a uma tomada de posição perante o "ser mesmo do direito", mas também a análise estrutural da norma exige a dimensão hermenêutica: "toda norma, por ser sempre representação de um valor e objeto de volição, jamais pode deixar de ser interpretada, não podendo haver norma que dispense interpretação (essencialidade do ato interpretativo)". A norma se clarifica, neste sentido, como "modelo jurídico" enquanto" estruturação - volitiva do sentido normativo dos fatos sociais", referido a "modelos dogmáticos", enquanto "estruturas teoréticas" que procuram captar e atualizar o valor da norma na sua plenitude.

Este correlacionamento, ademais, não se dá na forma de um recorte isolado no fluxo da experiência jurídica. Ele não é estático, o que o tornaria abstrato, em que pese o caráter — concreto operacional dos elementos postos em relação. Ao contrário, o próprio movimento entre ambos, submetidos ao que Reale denomina de "dialética de implicação-polaridade", é dinâmico. Esta dinamicidade peculiar localiza-se na sua natureza essencialmente axiológico. Os valores, para ele, não podem ser concebidos sem a sua permanente referibilidade histórica, na medida em que transcendem cada forma de objetivação normativa, no ato mesmo em que se tornam possíveis. Assim, se de um lado, a norma jurídica assinala um "momento conclusivo", mas não isolado e abstrato, visto achar-se inserida num "processus" sempre aberto à superveniência de novos fatos e novas valorações, isto exige, por outro, por parte do intérprete uma atitude "histórico-cultural" que vai, por assim dizer, para além de uma semântica ingênua, no sentido de que as palavras da norma podem assumir um significado não previsto pelo legislador. A temporalidade própria do direito, afirma Reale, não é, pois necessariamente sucessiva e linear, "podendo comportar tanto a interpenetração como a simultaneidade das formas e fases. O próprio ato interpretativo, por isso, significa, ao mesmo tempo, a sobrevivência de formas temporais passadas e a projeção das significações passadas no futuro, no sentido da sua atualização prospectiva.

Esta concepção permite, afinal, a Miguel Reale, conceber um relacionamento novo dos componentes do processo de comunicação do direito, na medida, por exemplo, em que se supera a visão abstrata da dogmática jurídica como mero receptor passivo que simplesmente aplica a norma "emitida" pelo legislador lalo sensu. Mas, sobretudo a ideia de que a regra jurídica é inerente a informação da — "exigência de uma opção axiológica havida como essencial a uma conduta típica", nos remete necessariamente ao sentido operacional do direito.

Este sentido operacional implica que as regras de comportamento e seus objetivos não são fixados a priori (isto é, o Direito não é um a priori formal da vida social, à maneira neokantiana) mas são resultado de um processo. A palavra resultado não nos deve confundir. Ela deve ser entendida no sentido de "opção axiológica", pois para Reale, todo valor, inerente á norma, é escolhida, não pertencendo a ela por natureza. Assim, valores, uma vez escolhidos na positivação normativa, podem mudar, ou porque os fatos que eles iluminavam são outros ou porque os objetivos que eles prescreviam se transformaram. Ora isto explica a possibilidade de proliferação de objetivos e o consequente aparecimento de conflitos em larga escala. Ora, no sentido operacional do modelo jurídico está justamente na inversão desta possibilidade, na medida em que, na solução normativa, o número de objetivos se reduz, tornando-se possível o controle dos conflitos.

Concluindo, ressalto que não foi minha intenção, neste apanhado geral, nem fazer um levantamento exaustivo dos autores e das correntes que influíram no pensamento jusfilosófico brasileiro, nem apontar todos os autores brasileiros que elaboraram suas reflexões a partir daquelas influências. O objetivo foi apenas alinhavar aspectos e momentos decisivos na formação jusfilosófica no Brasil, ressaltando, a título de exemplo, este ou aquele pensador, esta ou aquela tendência. Nos limites desta apresentação, as relevâncias apontadas não tiveram nenhum sentido avaliativo, não significam um juízo de valor sobre o mérito dos autores mas uma seleção que pretendeu mostrar qual a representatividade do pensamento jurídico na filosofia do direito no Brasil mas também para a formação da cultura brasileira.

Fonte: Revista Brasileira de Filosofia, Vol. XLV, Fasc. 197 – Janeiro-Fevereiro-Março de 2000, São Paulo: 2000, pp. 12-30.

Revisado por: Antônio Jerônimo Rodrigues de Lima.