A concentração econômica e fiscalização administrativa

Tercio Sampaio Ferraz Jr

1. Concentração de empresas

A concentração de empresas é um fato típico da economia de mercado. A busca do lucro, enquanto condiciona e possibilita a acumulação de capitais, explica a possibi­lidade de aumento da dimensão da empresa. Nos quadros da livre concorrência, este aumento pode exigir, entre empresas, ajustes ou coalizões, fusões, incorporações ou integrações, vistos como instrumentos de competição entre elas. Em consequência, o fenômeno da concentração não é uma exceção no jogo do mercado, mas um dado virtual­mente constante das relações econômicas. Em outras palavras, faz parte da economia de mercado alguma forma de concentração enquanto instrumento estratégico resultante da situação na qual cada agente, ao adotar uma decisão, não pode deixar de levar em conta as possíveis decisões de seus concorrentes, atuais ou potenciais. Ou seja, quando se fala em concentração é preciso, de um lado, considerá-la como um dado praticamen­te inevitável da estrutura do mercado, e, de outro, dada a possibilidade de sua utilização como instrumento estratégico na obtenção de posições de predominância no inte­rior daquela estrutura, como um fator de poder econômico.

Estes dois aspectos - dado inevitável da estrutura e instrumento estratégico de poder - são distintos. Mas as primeiras expressões de regulação do mercado, parti­cularmente nos Estados Unidos, os puseram numa relação confusa. Partia-se, é ver­dade, do mercado concorrencial oitocentista, supondo-o ordenado por uma estrutu­ra atomística e fluida, isto é, pela pluralidade de agentes e pela influência isolada e dominadora de uns sobre os outros. Por isso mesmo, porém, admitia-se que, mantendo-se alto o número dos agentes econômicos, a massa daí formada seria ho­mogênea, sendo negligenciável a ação de uns sobre os outros. A fluidez, por seu la­do, exigia liberdade ou, mais exatamente, disponibilidade, isto é, possibilidade de os agentes determinarem, sem ser obstados, as quantidades e as qualidades de bens e serviços desejados, bem como entrar e sair do sistema a seu talante. Em consequência, as diferentes formas de concentração econômica, sobretudo os monopólios e os oligopólios apareciam como verdadeiras formas distorcidas da estrutura mercadoló­gica. E como não se ignorava a possibilidade de choque entre forças econômicas (a luta como elemento de ativação das trocas), aos primeiros sinais de proliferação das formas concentracionistas, a reação jurídica foi, prima facie, vê-Ias como patentes ilicitudes.

No tratamento da matéria, o direito brasileiro principiou por considerar a con­centração como prática abusiva em si. O Decreto-lei n.º' 869/38 a tomava, visivelmen­te, como distúrbio estrutural, identificando-a genericamente com monopólio. Mas, a partir de 1946, essa tendência sofre uma primeira correção, passando a legislação a exprimir-se no que Shieber (Abusos do Poder Econômico, RT, São Paulo, 1966, p. 22 ss.) chamou de "linguagem de finalidade": ao falar das diferentes, formas de concentração, apenas as considerava abusivas se constituídas PARA dominar merca­dos, eliminar concorrentes, explorar consumidores etc. Por exclusão deveriam ser con­sentidas as que não tivessem aqueles objetivos.

Este tratamento trouxe para o Direito Econômico brasileiro a distinção entre con­centração como fenômeno estrutural do mercado e como estratégia de poder, locali­zando a possibilidade de ilicitude no segundo, mas não no primeiro aspecto. Ou seja, não a concentração, mas o seu uso estratégico pode conduzir a formas ilícitas de po­der econômico.

Isto, no entanto, não foi claro desde o princípio. Tanto que o art. 74 da Lei n.º 4137/62 chegou a ser visto como um instrumento normativo por meio do qual se apli­cava, no Brasil, o princípio da "rule of reason", usado na interpretação do Sherman Act norte-americano, que, em oposição ao princípio da "per se condemnationem", permitia punir certos comportamentos concorrenciais, como as várias formas de con­centração, apenas enquanto desarrazoadas em determinado contexto. Presumia-se, destarte, que práticas concentracionistas traziam consigo, em princípio, a marca da abusividade, podendo, assim, gerar processos de denúncia, apuração e punição "a posteriori", salvo se submetidas ao CADE para exame prévio e registro. A presunção de abuso virtual era tal que, mesmo quando o CADE extrapolava o prazo de sessenta dias, a ele assinalado para pronunciamento, atribuía-se às práticas uma validade PRO­VISÓRIA até que, afinal, o CADE sobre elas decidisse (art. 74, & 3.).

No correr do tempo, porém, o que era instrumento meramente corretivo passa a ser usado decididamente para legitimar certas práticas que a economia nacional, por força da política econômica da Revolução de 64, começava a incentivar. Assim, no início da década de 70, podia-se ler em voto num processo administrativo no CADE: "A lei antitruste não incrimina a formação de grupo econômico por agregação de empresas, per se, mas, tão-só e unicamente, quando o grupo se tenha formado e se venha mantendo por meio de qualquer das práticas abusivas taxativamente enu­meradas" (cf. Franceschini: Poder Econômico: exercício e abuso - direito antitruste brasileiro, São Paulo, 1985, p. 160). O fato é que o projeto desenvolvimentista formu­lado nos anos 50 e que, após o período Kubitscheck, entrara em crise, conheceu com a Revolução de 64 uma reformulação em termos de industrialização forçada. Uma reforma no sistema financeiro, aliada a um abundante crédito externo, permitiu um aprofundamento da política de substituição de importações. Esta industrialização forçada foi em parte liderada pelos investimentos diretos do Estado, em parte por este induzida por estímulos que culminaram numa franca política de agregação empresarial, como se pode ver, do ângulo jurídico, pelos dispositivos concentracionistas das leis n.º 5727/71 (Io PND) e 6151/74 (IIo. PND) e, neste último, com a criação do COFIE - estímulos fiscais - e do FMRI e PMRC, no âmbito do BNDE, todos destinados a incentivar a política de fusão e incorporação nos setores em que "a excessi­va disseminação de empresas nacionais lhes retire o poder de competição e as colo­que em posição frágil, perante o concorrente estrangeiro" (IIo. PND, item I, 3).

Estas transformações, como não podia deixar de ser, alteraram profundamente o modo de encarar juridicamente as práticas concentracionistas. Assim, se até o final da década de 60 podia-se perceber uma relativa indecisão na correta apreciação das formas de concentração econômica, vistas como nocivas ao equilíbrio do mercado, mas, não obstante, podendo contribuir para um melhor aparelhamento técnico da economia, já agora se intuía claramente que as sociedades mercantis e industriais, ao assumirem as formas burocratizadas dos entes políticos, o poder por elas exercido multiplicava sua potencialidade econômica e tendia à concentração. E se isto ERA assim, então uma simplista concepção das formas de concentração econômica como ilicitude teria de perder densidade.

2. As práticas concentracionistas no art. 74 da Lei n.' 4137162 e na redação que lhe deu o art. 13 da Lei n.° 8158/91.

A distinção entre a concentração como fato e como instrumento estratégico não significa, obviamente, ignorar que os dois aspectos estão imbricados um no outro. Na verdade a própria evolução da vida empresarial mostra que o fenômeno da con­centração acompanha as alterações no seu uso estratégico. É o caso, por exemplo, das fusões que, no início do século, eram ofensivas e, entre os anos dez e vinte, defen­sivas. No primeiro caso apontavam para uma estratégia de conquista de mercado, no segundo apareciam como uma reação dos grupos menores, para sobreviverem em face dos grandes trustes. O objetivo da distinção, portanto, não é isolar os aspectos distinguidos, mas alcançar um patamar que torne mais visível a questão do poder.

A questão é relevante quando se procura interpretar o art. 74 da Lei n.º 4137/62, na redação que lhe deu o art. 13 da Lei n.º 8158/91. O texto antigo aparecia, nitidamen­te, num contexto em que o abuso do poder econômico vinha ligado à natureza do ato. Assim, as práticas de concentração, em meio a trustes, cartéis, entendimentos, ajustes, seriam sempre, em princípio, puníveis, pois permanecia a possibilidade da ação dolosa ainda que o intento de limitar ou reduzir a concorrência não se concretizasse efetivamente. Ou seja, a eventual antijuridicidade estava no comprometimento a priori da con­corrência a que a prática poderia conduzir. Daí o art. 74 ter sido considerado por Shie­ber uma aplicação da RULE OF REASON na legislação antitruste brasileira de então e, na jurisprudência do CADE, encontrarem-se pronunciamentos no sentido de que a exigência do registro de atos ou acordos que resultassem em fusão econômica ou integração vertical que tivessem por efeito a) equilibrar a produção com o consumo, b) re­gular o mercado, c) padronizar a produção, d) estabilizar os preços, e) especializar a pro­dução ou distribuição, f) estabelecer uma restrição de distribuição em detrimento de ou­tras mercadorias do mesmo gênero ou destinadas à satisfação de necessidades conexas, deveria limitar-se, vinculadamente, a estes tipos, em si considerados abusivos, mas que poderiam deixar de sê-lo se o CADE reconhecesse tratar-se, no caso, de formas razoá­veis de conduta econômica. Verifica-se, deste modo, que o CADE ficava investido de poderes bastante amplos para definir em que condições os instrumentos de concentração deixavam de ser abusivos para tornarem-se uso autorizado. Na verdade, a experiência foi demonstrando que as práticas mencionadas no caput abrangiam de fato todo os ex­pedientes concentracionistas habituais, enquanto os efeitos apontados nas alíneas a) até f) não exauriam, por si só, as técnicas econômicas capazes de efetivá-los. Daí resultou um alto grau de discricionariedade que implicava uma verdadeira permissão para o CADE intervir na política econômica dos entes privados. Se, de um lado, o Decreto 52025/63, art. 96, excluía da obrigatoriedade de registro as "operações normais" con­forme usos e praxes comerciais quando delas estivessem ausentes quaisquer dos efeitos previstos nas alíneas a) até f), de outro, a variedade de circunstâncias sob as quais os fatos a serem apreciados e os atos a serem autorizados era tal que os registros acabavam por submeter-se a um verdadeiro julgamento em termos de uma discricionariedade de­liberante, de cuja apreciação, em tese, nenhuma prática escapava.

Com o advento da Lei n.º 8158/91, o art. 74 da Lei 4137/62 ganha uma nova redação, que se insere ademais em um cenário econômica e juridicamente diferente. De um lado, observa-se uma franca liberalização da economia; de outro, uma Constituição (de 1988) que permite muito mais claramente a separação entre processos con­centracionistas como fato econômico e seu uso estratégico, sujeito este último à even­tual vigilância do Estado. Saliente-se, neste sentido, que o princípio da livre concorrência, inserido no artigo 170 do texto constitucional, como um dos balizadores da ordem econômica, autoriza a ver a concentração de empresas como um fato normal da economia de mercado, em que o aumento da dimensão da empresa decorre da busca do lucro, condicionadora e possibilitados da acumulação de capitais. Tal aumento pode exigir, entre as empresas, ajustes, coalizões, fusões, incorporações, inte­grações que passam a ser recebidos como dados virtualmente constantes no jogo de mercado. De outro ângulo, porém, as concentrações ocorrem em uma situação na qual qualquer agente não pode deixar de levar em conta as possíveis decisões dos demais agentes, atuais ou potenciais. Assim, a concentração aparece como um fato ine­vitável da estrutura de mercado, mas também como instrumento estratégico de poder que um agente usa a fim de obter uma posição de vantagem no interior daquela es­trutura. Nesse contexto, a Constituição, que declara o mercado interno como patri­mônio nacional (art. 219), trata do mercado concorrencial como um processo com­portamental de competitividade. Esta exige a descentralização de coordenação como base da formação dos preços, o que supõe a livre iniciativa e a apropriação privada dos bens de produção, incorporando à estrutura de mercado as correspondentes prá­ticas estratégicas. Isto faz com que a luta, no interior do mercado, receba um novo peso estrutural. Ela não é apenas ativadora do processo, mas um elemento que o re­gula e, no limite, altera a própria estrutura. Assim, não a concentração mas os con­flitos gerados pelo seu abuso estratégico e a eventual lesividade para o mercado é que passam a constituir o objeto da função fiscalizadora do Estado (art. 174, caput, da CF).

Nesse contexto, a nova redação dada ao art. 74 da Lei n.º 4137/62 pelo art. 13 da Lei n.º 8158/91 ganha uma configuração hermenêutica inteiramente diferente. Note-se, inicialmente, que o novo texto, ao contrário do antigo, vê não nos ajustes, acordos ou convenções em si, mas nas consequências possivelmente prejudiciais à concorrên­cia a razão para a exigência de registro. Assim, enquanto o texto antigo ligava as prá­ticas à produção de certos efeitos que nada mais eram do que expedientes estratégicos, o novo texto ligava aquelas práticas à possibilidade de limitar ou reduzir a con­corrência. No texto primitivo, porque aquelas práticas produtoras daqueles efeitos eram per se abusivas, o registro era obrigatório, por força do que o abusivo se torna­va legitimado. No texto atual, as práticas não são, em si, abusivas, nem mesmo quan­do limitem ou reduzam a concorrência, pois ainda assim podem estar preenchendo os requisitos a) até b) do novo art. 74. Em consequência, não há legitimação de qual­quer abusividade por força de uma regra de razão, nem qualquer forma de discricio­nariedade por parte da autoridade registradora.

Ora, essa diferença entre a antiga e a nova redação é importante. Como pela an­tiga, em tese, nenhuma prática se excluía da apreciação e os casos legitimáveis admitiam ampla análise e interpretação, podia-se falar em discricionariedade na aprova­ção do CADE. Pela redação atual, a aprovação cabe à Secretaria de Direito Econômico, que deve examinar apenas as práticas que possam limitar ou reduzir a concorrência, o que deve ser tratado como um conceito indeterminado mas não discricioná­rio. A distinção entre ambos está em que, nos conceitos discricionários, admite o le­gislador a opção da autoridade entre várias possibilidades de decisão, enquanto nos conceitos indeterminados (mas não indetermináveis) supõe-se uma zona de impreci­são que deve ser preenchida uniformemente pela autoridade. Na prática, enquanto uma decisão discricionária não pode ser apreciada por uma autoridade superior, em grau de recurso, salvo por defeitos formais no exercício do poder discricionário (inclusive desvio de finalidade), a autoridade pode e deve corrigir o indevido entendimento material do conceito indeterminado. Ou seja, o discricionário admite diferen­tes decisões dentro dos marcos da discricionariedade. Já o indeterminado supõe que UMA decisão, inobstante a indeterminação, seja a desejada pelo legislador (cf. Lud­wig Froehler: Das Wirtschaftsrecht als Instrument der Wirtschaftspolitik, Springerverlag, Wien, Nova York, 1969, p. 197).

Disto resulta uma conclusão importante. Tratando-se de um conceito indeterminado, o ato administrativo da SDE de aprovação das práticas a ela encaminhadas para apreciação é ato vinculado. O texto do caput do art. 74 é expresso nesse sentido, ao exigir o preenchimento cumulativo dos requisitos a) até d) ou, em caso negativo, das condições expressas no par. 1º. PARA as práticas que possam limitar ou reduzir a concorrência. Mas a norma ali contida traz diferentes dispositivos. O da aprova­ção, dirigido à SDE, o do encaminhamento de ajustes, convenções ou acordos, diri­gido às empresas. Para estas, a lei impõe uma restrição na validade daqueles atos. Mas não a todos. Somente àqueles "que possam limitar ou reduzir a concorrência entre empresas". O juízo a priori sobre esta qualificação não é da SDE, mas da em­presa ou empresas. Tanto que, em dúvida, estas poderão consultar a SDE antes de realizá-los (par. 5º do art. 74). Pelo par. 6º a SDE deve abrir processo para providên­cias, caso os atos previstos para registro e aprovação não sejam apresentados. Esta consequência vale, porém, para os atos limitados ou redutores da concorrência. Se ESTES não forem apresentados, então, a posteriori, cabe a ação da SDE.

Podemos dizer, em síntese, que o legislador busca, no novo art. 74, controlar um dano potencial, sem, contudo, eleger como potencialmente danosa toda e qual­quer das práticas enumeradas, cabendo às partes dos ajustes, acordos ou convenções avaliar sua própria conduta antes de apresentá-la para apreciação da SDE.

Na verdade, é preciso ler o art. 74 em conformidade com o parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal, que reza: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos pú­blicos, salvo nos casos previstos em lei”. A Constituição, que tem na livre iniciativa um de seus fundamentos e na livre concorrência um de seus princípios, estatui que cabe aos entes privados a definição de sua própria política econômica. Donde se se­gue que a ressalva ao final do texto citado não deve ser entendida como um aval ao legislador para submeter não importa qual atividade econômica ao seu poder de po­lícia (cf. Celso Bastos: Comentário à Constituição de 1988, vol. VII. p. 39). Entende­mos, pois, que, como a iniciativa livre é FUNDAMENTO da ordem econômica, ela não pode ser restringida, mas apenas salvaguardada: sua única “restrição" é a liberdade de iniciativa dos outros, que lhe dá o limite e o alcance. Ou seja, a mencionada ressalva só pode ser praticada pelo legislador com o objetivo de criar condições para o pleno exercício da livre iniciativa, limitando-se, destarte, a estabelecer providências no sentido de que os abusos constantes do art. 173 par. 4º sejam evitados ou reprimidos. Faz sentido, portanto, o controle prévio e a exigência de exame e anuência para práticas potencialmente danosas à concorrência, mas não para toda e qualquer prática.

A obrigatoriedade de encaminhamento de ajustes, acordos ou convenções à SDE limita-se, pois, às práticas que possam limitar ou reduzir a concorrência entre empre­sas. O objetivo do art. 74 é prevenir o risco de um dano potencial. Limitar significa pôr fronteiras, estreitar o campo de possibilidades. Reduzir significa diminuir o número de concorrentes. Mas, se o exercício de uma prática pode provocar esta limita­ção ou redução, cabe ao agente empresarial avaliar. Doutro modo seria inexplicável o dispositivo do art. 3º da Lei n.º 8158/91 que estabelece como infração à ordem eco­nômica qualquer prática que tenha por objeto (dolo específico e direto) ou que pro­duza o efeito de dominar mercado de bens e serviços ou de prejudicar a livre concor­rência ou de aumentar arbitrariamente os lucros, ainda que os fins visados não sejam alcançados (dolo eventual). A possibilidade do dolo eventual exige do agente avalia­ção e previsibilidade, presumindo a lei que o agente, ao praticar os atos negociais, assumiu, como possíveis, eventuais consequências lesivas para o mercado. Ou seja, supor a compulsoriedade de encaminhamento de todo e qualquer ajuste, acordo ou convenção à SDE é transferir a esta a responsabilidade de avaliação das consequências da prática, o que tornaria impossível o dolo eventual. Levado ao extremo, tería­mos um regime de controle total dos atos privados, limitando-se a responsabilidade dos agentes ao encaminhamento ou à falta de encaminhamento deles.

Uma segunda diferença importante entre a antiga e a nova redação do art. 74 está em que naquela, as práticas concentracionistas como as fusões, coalizões, incor­porações, integrações estavam assimiladas, genericamente, a atos, ajustes, acordos ou convenções entre empresas, enquanto nessa, elas ocupam o dispositivo de um pará­grafo específico. Na verdade, mesmo esta assimilação, no art. 74 era duvidosa. Fábio Comparato, por exemplo, fazia notar que, conquanto houvesse para atos, ajustes, acordos ou convenções entre empresas a exigência de prévia aprovação pelo CADE, não havia regra semelhante para os atos de concentração empresarial, o que causava vá­rias distorções na aplicação do direito (cf. O Poder de Controle na Sociedade Anôni­ma, RT, São Paulo, 1976, p. 407). Isto muda com a Lei no 8158/91. O art. 74, par. 2º, manda incluir nos atos de que trata o caput, "aqueles que visem a qualquer forma de concentração econômica, seja através de fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer outra forma de agrupamento societário ou concentração econômica, cuja conseqüência implique a participação da empresa ou grupo de empresas resultante, em vinte por cen­to de um mercado relevante de bens e serviços". Aqui há, de início, três, observações importantes a fazer. Em primeiro lugar, há de se explicitar o conteúdo dos atos que visem à concentração econômica, mencionados no par. 2º, em contraste com os mencionados no caput do art. 74. Em segundo lugar, tratando-se de um parágrafo, deve ser lido em consonância com o caput. Destarte, a linguagem de finalidade ("aqueles que visem") coloca o dispositivo no campo da potencialidade de prejuízo à concor­rência e de risco de dolo eventual. Ou seja, está-se falando de práticas (fusões, incorporações etc.) enquanto possam limitar ou reduzir a concorrência. Por isso, em terceiro lugar, ao limitar o interesse por tais práticas a uma consequência (participação em vinte por cento de um mercado relevante) não está estabelecendo uma automaticidade (SE a participação é em vinte por cento, ENTÃO deve ser a apresentação à SDE para exame e anuência).

Quanto ao primeiro ponto, o próprio texto legal faz algumas menções impor­tantes: fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer outra forma de agrupamento societário ou con­centração econômica. Fusão e incorporação são exemplos clássicos de concentração empresarial desde a Revolução Industrial. A constituição de sociedade para contro­lar empresas se refere à formação de HOLDINGS. E a fórmula final - qualquer outra forma de agrupamento - está se referindo, entre outras possibilidades, à for­mação de grupos, no sentido formal, ou mesmo de "grupos" de fato, por meio de propriedade de ações, mas também de usufruto, caução, convenção de voto, captação de procurações, consórcios etc. De modo geral, abstraindo dos detalhes, pode­mos distinguir três modalidades de vinculação de sociedades (cf. Egberto Lacerda Teixeira e José Alexandre Tavares Guerreiro. Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro, São Paulo, 1979, vol. 2. p. 653): as subordinações contratuais, por meio das quais uma sociedade se vincula a outra por laços de dependência jurídica e eco­nômica, mantendo ambas sua individualidade; as participações intersocietárias (so­ciedades coligadas, controladas, grupos) que também manifestam dependência eco­nômica e jurídica sem perda da individualidade e as incorporações e fusões, que afe­tam a personalidade jurídica das sociedades. É importante assinalar que o par. 2º do art. 74 exige que, da prática negocial, RESULTE alguma forma de concentração no sentido do direito econômico. Isto é, faz mister que a concentração ocorra entre empresas que, de algum modo, concorram entre si. Assim, a simples aquisição de quotas ou ações unicamente por razões de investimento, sem exercício de direito de voto, ou o aumento de participação no controle de uma empresa já controlada, ou seja, aqueles casos em que não se suprime nem se ameaça o que não havia antes, a concorrência, não implica ato de concentração para efeitos do art. 74, par. 2º.

Quanto aos pontos seguintes, é preciso explicitar a conexão entre a participação em vinte por cento de um mercado relevante com a possibilidade de limitação ou re­dução da concorrência. Para isso faz mister um esclarecimento sobre o sentido da expressão MERCADO RELEVANTE. A definição de mercado relevante exige sua consideração em termos de produto e em termos geográficos. Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que os preços crescem razoavelmente ou o volume é razoavelmente limitado para um PRODUTO dentro de uma ÁREA, enquanto a demanda permane­ce constante, não cabendo, pois, esperar que uma oferta proveniente de outras fontes entre com RAPIDEZ e em quantidade suficiente para restabelecer os antigos preços ou volumes, então estamos diante de um mercado definido geograficamente e pelo produto. Com base neste pressuposto define-se MERCADO RELEVANTE como o mercado mais estreito possível, que é suficientemente amplo para que os produtos de áreas adjacentes ou de outros produtores que atuem na mesma área não possam competir com paridade bastante com aqueles incluídos dentro da área (cf. A. Sullivan: Antitrust, West Publishing Co. 1977, p. 41).

Resulta disto que o conceito de mercado relevante possui dupla dimensão: terri­torial, relativa à área geográfica por ele compreendida, e qualitativa, que diz respeito aos bens e serviços nela abarcados. Na dimensão territorial como na qualitativa há ademais, como se percebe, outros fatores a ser mencionados, como os custo de trans­porte (tipo, velocidade) ou restrições legais, como as existentes no caso de fronteiras federais ou internacionais e mesmo no caso de exigências locais (licenças, taxas). Ou seja, a MOBILIDADE de compradores e vendedores, sujeita aos fatores menciona­dos, também desempenha importante papel na definição de mercado relevante. Por estes fatores é, então, possível falar em mercado relevante LOCAL, REGIONAL, NA­CIONAL. E aqui entra a questão da dimensão internacional, cujo caso paradigmático, nos Estados Unidos da América, é o da empresa ALCOA à qual foi atribuída uma participação de 90% no mercado em face da possibilidade de importações, ainda que, no país, ela tivesse o monopólio do produto (cf. Sullivan, op. cit. p. 70).

Há, porém, um terceiro elemento, que incide sobre os outros dois: o tempo. Quan­to maior seja o período considerado para avaliar a reação da oferta e da demanda frente à conduta de um produto cujo mercado relevante se pretende determinar, tanto maior será sua amplitude (Sullivan, p. 42). Veja-se, por exemplo, o caso do petróleo, cujo aumento de preço incide, em princípio, de forma direta sobre os demandantes, sem que estes tenham possibilidades de reorientar suas compras na direção de produ­tos sucedâneos. Com o passar dos anos, porém, produz-se um processo de substituição crescente (novas instalações, que se valem de outras fontes combustíveis, desen­volvimento de técnicas alternativas, novos produtos como matéria combustível etc.). Dependendo do tempo considerado, altera-se, pois, o limite do mercado relevante em termos de produto. Por sua vez, quanto ao território, pode-se dizer que, num dado momento, o aumento de preços no setor pode ser, numa localidade, fruto de uma decisão irreversível a curto prazo, mas que, com o passar do tempo, se altera, por exemplo, pelo deslocamento de outros polos industriais para a região. Segue daí que quanto maior é o horizonte temporal, maior tende a ser a amplitude das dimensões geográficas do mercado relevante (cf. Cabanellas: Derecho Antimonopolico y de la Defensa de la Competencia, Buenos Aires, 1983, p. 307). Assim, ainda que a dimensão territorial e a qualitativa pareçam primordiais na definição de mercado relevante, o fator tempo acaba sendo um critério importante para a avaliação estrutural. Ou, dito de outra maneira, a mera concepção geográfica e por produto resulta num con­ceito estrutural estreito e limitado, incapaz de dar conta da dimensão temporal, don­de a necessidade de uma concepção dinâmica de mercado relevante para o correto entendimento do dispositivo constante da Lei n.º 8158/91. Disto decorre, porém, que a questão sobre de qual mercado relevante fala a lei depende da análise realista do mercado em discussão. Ou, como diz Sullivan (op. cit., p. 42), "power is always a matter of degree, and market definition always is a matter of judgement", o que, ob­viamente, reforça o entendimento de que, também nesse caso, a lei exige da empresa uma consideração prévia das consequências (os vinte por cento de um mercado rele­vante) da prática concentracionista antes de apresentá-la para exame e anuência da autoridade.

Na discussão do mercado relevante, como vimos, a lei está preocupada com a concentração econômica e uma eventual limitação ou redução da concorrência dela resultante. Ou seja, a questão está no uso estratégico da concentração pelo poder eco­nômico. De fato, existe uma concepção mais antiga de dominação de mercados que, partindo de um estado dado do mercado, assimila à situação de ausência de concorrência a chamada posição dominante. Uma outra concepção, que nos parece mais adequada, prefere, no entanto, definir tal posição não diretamente da situação do mercado, mas como poder econômico ou capacidade de ação. A mais antiga tem o defeito de ser estática.. A outra, a vantagem de ser dinâmica (cf. Louis Vogel: Droit de la Concurrence et Concentration Économique, Paris, 1988, p. 95). Embora as di­ferenças entre ambas nem sempre sejam muito nítidas, a prática legislativa e jurisprudencial encarregou-se de estabelecer uma orientação. Assim, a legislação alemã (GWB Par. 22) determina que, para identificar a posição dominante de uma empresa em face das concorrentes, é preciso ter em conta não somente sua participação no mercado, mas, em particular, sua força financeira, suas possibilidades de acesso aos mercados fornecedores e de escoamento, suas ligações com outras empresas, bem co­mo as barreiras, de fato e de direito, à penetração de outras empresas no mercado. Daí decorre que a chamada concepção estática nada mais é do que a descrição de um dos meios aptos a gerar uma posição dominante, não sendo a configuração do poder econômico consequência necessária de uma situação preponderante.

Para o entendimento do art. 74 da nossa lei, pode-se, pois, dizer que a concorrência é afetada (limitada, reduzida) pela posição dominante, no caso de práticas con­centracionistas, em função de três espécies de critérios: estruturais, comportamentais e de performance (Vogel, op. cit., p. 112). Critérios estruturais referem-se a características estáveis do mercado, as quais não dependem, estritamente, das condutas da empresa. Os critérios comportamentais tendem a estabelecer o poder de dominação a partir da estratégia de mercado da empresa. Os critérios de performance se ocupam do mau funcionamento do mercado, manifestado mormente pela alta de preços ou aumento dos lucros da empresa dominante. A partir desses critérios é possível dizer, no entanto, que a concentração não é, necessariamente, causa da dominação, mas uma espécie de condição indiferente. Destarte, a análise das situações exige uma "bilateralização" (Vogel, op. cit., p. 123) das relações: a posição dominante não é esta­belecida a partir dos índices que demonstram a realidade do poder de ação positiva de uma empresa, mas é inferida do estado de dependência no qual se encontram seus clientes ou fornecedores. Assim, do ângulo estrutural, não basta uma participação alta ou média, pela empresa dominante, no mercado em geral, mas em uma parte do mercado extremamente importante. Por exemplo, é preciso que as empresas de­pendentes de um certo tipo de produto ou serviço não tenham suficientes possibilida­des de procurar concorrentes, ainda que sua produção não dependa apenas daquele produto ou seu serviço, podendo ocorrer, nesse caso, não um dolo específico, mas o que se chamou, após o caso ALCOA, de "abuso de estrutura”. Os atos e as práticas abusivas não são, nesse caso, fruto de intenção predatória contra os concorrentes (abuso de comportamento), mas atos e práticas que trazem consigo consequências que atingem a concorrência (dolo eventual). E este é, ao que nos parece, o sentido do limite de vinte por cento. Ou seja, como a concentração é, em si, condição indife­rente, a ocorrência dos vinte por cento não implica uma consequência automática, pois é preciso fazer a ligação entre eles e a posição dominante para chegar ao risco de prejuízo à concorrência, para então exigir-se a apresentação dos atos à SDE. Afi­nal, o disposto no par. 2º prescreve "Incluem-se nos atos de que trata o CAPUT" e não "Entendem-se como atos que possam limitar ou reduzir a concorrência, nos termos do CAPUT". Ou seja, a lei não cria uma presunção de risco à concorrência, mas determina, do mesmo modo como faz para os ajustes, acordos ou convenções, que práticas concentracionistas sejam levadas ao conhecimento da Secretaria de Di­reito Econômico DESDE QUE possam limitar ou reduzir a concorrência. E isto por uma razão óbvia. Pois, como se observa, o critério determinante para a comunicação à SDE é, em última análise, o comportamental, isto é, o efeito da estratégia de mercado sobre fornecedores e compradores. Este entendimento é coerente com o dispos­to no art. 5º da Lei N' 4137/62, quando define condições monopolísticas: "Entendem-se por condições monopolísticas aquelas em que uma empresa ou grupo de empresas controla em tal grau a produção, distribuição, prestação ou venda de determinado bem ou serviço, que passa a exercer influência preponderante sobre os respectivos pre­ços". Note-se que a lei fala claramente em "exercer influência preponderante", o que nos conduz ao critério comportamental e, em consequência, à mencionada bilateralização. Ou, como vinha reiterando a jurisprudência do antigo CADE, a dominação de mercado não deve ser entendida no sentido meramente quantitativo, mas sim no de existirem empresas ou grupo de empresas que impeçam outros empresários, na­cionais ou estrangeiros, de instalar novos empreendimentos, ainda que disponham de matéria-prima, recursos e know-how ou os condicionem à admissão, sob forma acionária, dos empresários já existentes (cf. Franceschini, op. cit., p. 147).

3. Sobre a limitação da validade dos atos e o disposto no art. 54 do Decreto n.° 724 de 19 de janeiro de 1993.

O art. 74 determina de uma forma até certo ponto ambígua que os atos "somente serão considerados válidos desde que, dentro do prazo de trinta dias após sua realização, sejam apresentados para exame e anuência da SNDE.." (hoje SDF), F no Par. 3º diz que "a validade dos atos de que trata este artigo, desde que aprovados pela SNDE, retroagirá à data de sua realização..." Ora, pelo caput e pelo parágrafo, os atos, até a sua aprovação, não seriam válidos, tanto que a lei confere à aprovação o efeito de conceder-lhes retroativamente a validade, supondo-se, a contrario sensu, que a sua desaprovação os deixaria sem validade desde a sua realização. Não obstan­te, no Par. 4º prescreve-se que, em face de uma desaprovação (e na hipótese de os atos não terem sido realizados sob condição suspensiva ou deles já não terem decor­rido efeitos perante terceiros), a SDE determine às partes providências "no sentido de que sejam desconstituídos, total ou parcialmente". Ora, se, pelo caput e pelo Par. 3º em caso de desaprovação, os atos não seriam válidos desde a sua realização, então não faz sentido exigir que se determine a sua desconstituição, pois não se desconsti­tui o que nunca foi constituído. Ademais, ao teor do Par. 6º a não apresentação dos atos "implicará a abertura de processo na SNDE, para as providências de sua com­petência". Estas providências (o Decreto n. 36/91, que regulamenta a Lei ri' 8158/91 é omisso) só podem ser as prescritas nos artigos 4º 5º 6º 7º e 12 da Lei, as quais pressupõem a existência (validade) de acordo ou deliberação conjunta de empresas, ato, conduta ou prática, conforme expressa o art. 3º e não a sua invalidade presumi­da.

Por tudo isso, embora a lei fale em validade, certamente o que se quer significar é a eficácia dos atos. Ou seja, quer-se dizer que os atos constituidores do negócio jurídico, não realizada a condição legal (exame e aprovação pela SDE), são conside­rados nulos, isto é, ineficazes ex tunc. Propriamente, os atos que possam limitar ou reduzir a concorrência (e só estes, nunca é pouco repetir) são celebrados, juris et de jure, sob condição suspensiva. Mas a presunção é apenas para a produção de efeitos, não para a existência jurídica (validade) dos atos. Sendo negócios jurídicos, sua vali­dade depende antes e mais propriamente da autonomia da vontade e da licitude do objeto. Só assim cobra sentido a determinação de que, em caso de desaprovação pela SDE, o órgão tome providências para que "sejam eliminados os efeitos nocivos à concorrência", mediante a sua desconstituição por meio de distrato, cisão, venda de ativos etc. (Par. 4º).

Em face destas considerações, há de se perguntar do significado do disposto no art. 54 do Decreto n.º 724/93 que altera e consolida a regulamentação da Lei n.º 8031/90, o que reza: "Os adquirentes de ações representativas do controle acionário da empresa privatizada obrigar-se-ão a fazer com que a sociedade privatizada preste à Secretaria Nacional de Direito Econômico — SNDE, após a liquidação financeira da operação de compra, as informações que possibilitem aferir a aplicabilidade do disposto no artigo 74 da Lei n.º 4137, de 10 de setembro de 1962, na redação dada pelo artigo 13 da Lei n.º 8158 de 8 de janeiro de 1991.

Há um certo contorcionismo no texto. O Decreto estabelece uma obrigação de fazer para os adquirentes, os quais farão com que a sociedade privatizada preste as informações, pressupondo que os adquirentes, no conjunto, detenham a maioria do capital votante. O ato de prestar a informação, pelo disposto, ("obrigar-se-á a fazer com que a sociedade... preste..."), é da sociedade adquirida, não dos adquirentes. Há aqui no mínimo uma redação confusa. É óbvio que os adquirentes, sócios da em­presa adquirida, não se confundem, por isso, com ela. E, ao adquiri-Ia por meio de leilão, ao adquirente é imposta unia obrigação de fazer que redunda, na verdade, na obrigação de fazer com que os demais sócios (que podem ser adquirentes mas podem ser sócios remanescentes em caso de alienação parcial) atuem com ele para que um terceiro, a empresa adquirida, preste informações. Ora, obrigar a fazer com que ou­tros façam é ir além dos limites possíveis de uma obrigação de fazer, cujas prestações, sabidamente, somente podem ir até onde o homem física ou psiquicamente pode che­gar, isto é, conforme os meios de que dispõe atualmente pode chegar. Vale o princí­pio ULTRA POSSE NEMO OBLEGATUR (cf. Pontes de Miranda, Tratado de Di­reito Privado, São Paulo, 1984, vol. XXII, p. 75).

Além disso, o objetivo da prestação das informações é possibilitar que a SDE afira a aplicabilidade do disposto no art. 74. Ora, o art. 74, no núcleo essencial de seus dispositivos, contém normas de competência, não normas de conduta (cf. Alf Ross: Logica de Ias Normas, 1968). A diferença fundamental entre ambas está na re­lação jurídica que delas deflui e nas consequências de sua violação. Normas de con­duta estatuem relações de coordenação e sua violação implica responsabilidade. Nor­mas de competência estatuem relações de subordinação e sua violação afeta-lhes a eficácia. Ou seja, quem viola uma norma de conduta não atenta contra a eficácia do ato jurídico que ela agasalha (o efeito produzido permanece), apenas vê imputada uma sanção. Já o descumprimento da norma de competência provoca a nulidade ou a anulação dos atos. Destarte, a expressão "aferir a aplicabilidade do disposto no artigo 74", sendo de competência as suas normas, só poderia significar realizar a con­dição de eficácia da aquisição, aprovando-a, ou torná-la nula, desaprovando-a. Mas isto significa também atribuir à SDE uma competência que ela, no processo de priva­tização, legalmente não tem. E, por Decreto, que não está regulamentando a Lei n.º 8158/91, criar uma obrigação para as partes negociais que, como vimos, pressupõe delas uma avaliação do eventual risco para a concorrência, é ir muito além do possí­vel legalmente. Pode-se também entender o dispositivo no sentido de que, sendo o efeito concentracionista uma decorrência da aquisição para os adquirentes, não para a adquirida, mas sendo esta quem informa, então o objetivo de aferição da aplicabi­lidade do art. 74 nada tem a ver com a validade e eficácia do ato de concentração: trata-se apenas de um meio indireto de a SDE receber dados do mercado, o que tam­bém não está nem na lei de defesa da concorrência nem na lei que criou o Programa Nacional de Desestatização. Ou seja, falta-lhe base legal.

De um modo ou de outro, porém, falece ao art. 54 do Decreto, em termos de estrita legalidade, o devido fundamento. Contara a exigência das referidas informa­ções por parte da autoridade com base nele cabe, assim, mandado de segurança.

4. Dos requisitos para a aprovação de atos potencialmente prejudiciais à concorrência.

Admita-se, ad argumentandum, que estejamos diante de atos potencialmente ca­pazes de limitar ou reduzir a concorrência, nomeadamente atos de concentração que impliquem uma participação de em vinte por cento de um mercado relevante. Nesse caso, feita a avaliação pela empresa ou grupo de empresas interessadas, ou se procede a uma consulta à SDE, antes de realizar-se o ato, ou, realizado o ato, deve-se encaminhá-lo à Secretaria para as providências.

Na primeira hipótese, sendo, o objetivo da consulta saber se o encaminhamento para exame e anuência é necessário, o órgão tem um prazo preclusivo de sessenta dias para responder. Da ausência de resposta decorre a presunção legal de plena eficácia do ato.

Na segunda hipótese, o juízo da SDE deve guiar-se pelos requisitos estabelecidos nas alíneas a) até d) do caput do art. 74. O preenchimento cumulativo desses requisi­tos implica a aprovação do ato submetido a exame. O ato de aprovação é, pois, ato vinculado.

O primeiro requisito, alínea a), exige que os atos tenham por objetivo aumentar a produção ou melhorar a distribuição de bens ou o fornecimento de serviços ou pro­piciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico ou incrementar as exportações. Merece destaque o disjuntivo OU que separa cada um desses objetivos. Obviamente não há necessidade, para o preenchimento do primeiro requisito, que to­dos os objetivos sejam cumulativamente satisfeitos. Basta um deles. Com qualquer deles, o valor-fim almejado - a eficiência empresarial - é satisfeito, cumprindo-se o requisito. Fala-se no valor-fim porque estamos diante de conceitos sujeitos a uma unidade valorativa, que deve guiar o intérprete.

O segundo requisito, alínea b), exige que os benefícios decorrentes do ato sub­metido a exame sejam distribuídos equitativamente entre os participantes, do lado dos que o celebram, e os consumidores ou usuários finais, do lado dos terceiros afe­tados. Distribuição equitativa, na melhor tradição aristotélica (Ética a Nicômaco, cap. V), não é distribuição idêntica, mas proporcional e, ademais, sujeita a variações em face dos casos concretos. E o valor-fim almejado diz respeito à justiça distributiva, isto é, à proporcional distribuição de benefícios que leve em consideração a diferença entre beneficiários. Os beneficiários são celebrantes do ato e os usuários finais que, na legislação vigente, estão definidos na Lei de Defesa do Consumidor. Não entram em conta, portanto, no sentido de beneficiários da distribuição, os demais agentes do mercado que não sejam usuários finais. Afinal, a lei não manda que a distribui­ção equitativa o seja para todo o mercado, ainda que mercado setorial.

O terceiro requisito, alínea e), exige que não sejam ultrapassados os limites estri­tamente necessários para que sejam atingidos os objetivos visados. Objetivos visados não são os objetivos subjetivos das partes celebrantes do ato, mas aqueles (um ou mais dentre eles) mencionados na alínea a). O requisito diz com uma regra de pro­porcionalidade entre meios e fins: sendo o fim pré-fixado, os meios devem ser a ele adequados. Proíbe-se, pois, o excesso na determinação dos meios. O valor-fim, para efeitos hermenêuticos, é o equilíbrio na relação meio/fim.

O quarto requisito, alínea d), exige que o ato não implique a eliminação da con­corrência de uma parte substancial do mercado de bens e serviços. O que se pede, nesse requisito, é que a prática submetida a exame, a qual, por suposto, pode limitar ou reduzir a concorrência, não chegue a ponto de eliminá-la de uma parte substan­cial do mercado. Admite-se, para essa parte substancial, uma redução, mas não a eli­minação. A expressão." "parte substancial" é conceito indeterminado. Refere-se ao mer­cado de bens e serviços PERTINENTES, portanto, ao mercado relevante. A palavra "substancial" é um lugar comum de essência (cf. Perelman/Tyteca, Traité de l'Argu­mentation, Bruxelas, 1970, e sua discussão jurídica em Ferraz Jr.: Introdução ao Es­tudo do Direito, São Paulo, 1990, p. 300). Valora a superioridade do núcleo sobre o periférico, do real sobre o aparente. No caso, refere-se à concorrência que efetiva­mente tem condições de competir. O valor visado pelo requisito é, pois, dentro de uma normalidade de funcionamento do mercado, a manutenção de um limite de fle­xibilidade que impeça o rompimento.

Por fim, a exigência de que todos os requisitos sejam preenchidos cumulativa­mente é atenuada pelo Par. 1º do art. 74. Assim, quando a restrição à concorrência, contida nos atos submetidos a exame, "for necessária por motivos preponderantes da economia nacional e do bem comum" (ambos, e não um ou outro) "e desde que a restrição tenha duração pré-fixada" (portanto, um prazo limitado e expresso no próprio ato) "e ao mesmo tempo, se comprove que, sem a sua prática, poderia ocor­rer prejuízo ao consumidor ou usuário final", então a aprovação pela SDE deve dis­pensar a exigência do atendimento cumulativo dos requisitos do caput. Essas condi­ções atenuantes são cumulativas, envolvendo diversos conceitos indeterminados. A primeira delas fala em "Motivos preponderantes da economia nacional e do bem co­mum". Não se trata de conceito discricionário, mas indeterminado. Além disso alia objetivos de governo com exigências do bem comum. Ou seja, não se trata de não importar qual política econômica, mas políticas que atendam ao bem comum. Por isso não podem ser invocadas pela autoridade para promover ou interpretadas para favorecer uma política de governo e, com isso, realizar, de forma indireta, uma inter­venção no domínio econômico. A fórmula legal, portanto, não se reporta a planos econômicos do governo, mas a situações que afetem a economia e o bem dos cida­dãos. Além disso, a restrição deve ter duração pré-fixada, exigindo, pois, uma ade­quação a uma situação emergencial ou excepcional. Por fim, determina-se que a prá­tica venha a evitar um prejuízo ao consumidor ou usuário final, o que reforça a ideia da emergência e da excepcionalidade, posto que, presumidamente, a concorrência li­vre favorece o consumidor; a restrição vai contra essa presunção, donde não é regra mas exceção. Todas essas condições, por último, devem ser comprovadas pela empre­sa ou grupo de empresas (o texto da lei fala em "se comprove que").

Fonte: Revista de Direito Administrativo, volume 193 I-IV, I-464, Rio de Janeiro, julho/setembro 1993, A concentração econômica e fiscalização administrativa (entendimento do art. 74 da Lei 4137/62, segundo a redação do art. 13 da Lei 8158/91).

Digitação corrigido por Sonia Silva Barros Dias.