Vigência dos Decretos-Leis sobre o Salário

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Está em marcha um processo nunca antes ocorrido. Ao menos no que diz respeito ao sucesso e ao bom êxito. Referimo-nos à possibilidade constitucionalmente conferida ao Congresso Nacional de rejeitar os decretos-leis do presidente da República, emanados com base no Art. 55 da Lei Maior. Como até o momento a composição majoritária do partido governista era tranquila, os decretos-leis emanados tinham a expectativa de aprovação automática.

Após as últimas eleições, no entanto, a distribuição partidária do Congresso não mais permite a inferência de aprovação automática, criando-se, com isso, um fato político novo.

Este fato político tem repercussões jurídicas importantes e é sobre elas que nos detemos neste momento. A hipótese da rejeição destaca um problema técnico relevante. Ocorrendo ela, pergunta-se, qual a norma que estará regendo a política salarial?

Existem pelo menos as seguintes hipóteses teóricas a conferir: rejeitado um decreto-lei que revoga disposições em contrário, a) estando revogadas normas anteriores, ficaríamos momentaneamente sem norma aplicável; b) ficariam restauradas as normas anteriores, as quais, então, passariam, de novo, a reger a matéria salarial.

Doutrinariamente, a primeira hipótese parece, à primeira vista, a mais sedutora. O parágrafo 1.° do art. 55 da Constituição diz que, publicado o texto do decreto-lei presidencial, este terá vigência imediata, devendo, no entanto, ser submetido ao Congresso Nacional que o aprovará ou rejeitará dentro de sessenta dias. Ora, pelo art. 2.° da Lei de Introdução ao Código Civil, "não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que a modifique ou revogue" e, pelo parágrafo 3.° do mesmo artigo, "salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência". A Lei de Introdução, assim, veda a chamada repristinação1. Em conseqüência, por exemplo, o Decreto-lei 2.024, rejeitado, não tem mais vigência, e o ato do Congresso não restaura nenhuma das normas por ele revogadas.

A segunda hipótese, contudo, merece mais detida reflexão em face do disposto no Art. 55 da Constituição. A nosso ver, este texto constitucional pode ser encarado como abrindo uma exceção à regra que veda a repristinação.

Não há dúvida de que o mencionado texto do Art. 55 confere ao Congresso uma competência indiscutível: a de aprovar ou rejeitar o decreto-lei presidencial. Ora, uma interpretação estrita do texto constitucional em consonância com uma interpretação estrita do artigo 2.°, parágrafo 3.° da Lei de Introdução, que veda a repristinação, conduziria a uma anulação, de fato, da mencionada competência do Congresso. Isto se torna claro se pensarmos num exemplo possível de acontecer, que, por hipótese, seria o seguinte: imaginemos que o presidente, com base no Art. 55, emanasse um decreto-lei apenas revogando uma lei anterior. Ou seja, a revogação da lei anterior seria seu único efeito. Ora, se se aplicasse a Lei de Introdução estritamente, isto significaria que a) se o Congresso aprovasse o decreto-lei, a lei anterior estaria revogada, mas b) se o Congresso rejeitasse o decreto-lei, este não seria mais vigente e, pela vedação da repristinação, a lei revogada não estaria, automaticamente, restaurada, donde ficaria igualmente revogada. Em outras palavras, não importaria qual fosse a decisão do Congresso, prevaleceria o disposto pelo decreto-lei presidencial. Com isto, se esvaziaria a competência do Congresso.

É verdade que, na hipótese da rejeição, a lei revogada ficaria revogada não por força do Art. 55, mas do art. 2.°, parágrafo 3.° da Lei de Introdução; contudo, a consequência prática é a de que o sistema normativo estaria tornando inócua a competência que ele mesmo outorga ao Congresso. Teríamos uma indesejável antinomia teleológica e intra-sistemática no ordenamento brasileiro. Esta antinomia só poderia ser contornada pelo princípio da lex superior: a lei superior hierarquicamente prevalece sobre a inferior. Isto significaria que a competência garantida pelo Art. 55 da Constituição prevaleceria sobre a vedação da repristinação, estabelecida na Lei de Introdução, por exceção.

Tratando-se, entanto, de uma exceção à regra, esta só deve ser aceita em última instância. O argumento da exceção tem a fragilidade de inserir, no ordenamento, uma quebra na sis-tematicidade. Por isso vale a pena examinar um segundo argumento. O Artigo 55 fala que, "publicado o texto, que terá vigência imediata, o decreto-lei será submetido pelo presidente da República ao Congresso Nacional, que o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias a contar do seu recebimento, não podendo emendá-lo; (grifamos) aqui há algumas curiosidades redacionais. O Artigo 55 diz que o texto terá vigência imediata e que o decreto-lei será submetido ao Congresso. A lógica jurídica tem reiterado que a norma não se confunde com o seu texto. O texto é parte da norma, mas a norma não se reduz a ele. Assim, a norma encerra um comando (cometimento da norma) que pode permanecer inalterado mesmo que se modifique o seu texto (relato). Ou seja, é preciso distinguir entre uma alteração do texto e a revogação do comando. O cerne constitutivo da norma está no comando e não no texto. Não fora assim, toda vez que, por interpretação analógica, o juiz ampliasse o texto de uma norma, ele estaria alterando o próprio comando, isto é, a relação de autoridade/sujeito que caracteriza qualquer prescrição jurídica 2.

Admitido isto, é de se reconhecer que o Art. 55 determina, talvez de maneira imprópria, a imediata vigência do texto, mas não do decreto-lei enquanto comando (ou cometimento prescritivo), o qual está sujeito a condição futura, tendo, quando muito, uma expectativa de vigência plena. Trata-se de uma vigência temporária, de que nos fala o art. 2.° da Lei de Introdução ao Código Civil.

A Constituição ressalva impropriamente que o texto tem vigência imediata3. Isto, a nosso ver, deve ser lido em consonância com o que reza o parágrafo 2.° do Art. 55: "a rejeição do decreto-lei não implicará a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência". A vigência do decreto-lei é, assim, reconhecida como temporária. E a Constituição, por isso, está garantindo a permanência dos seus efeitos (eficácia). Quais? Distingamos dois principais: o efeito revogatório e o efeito relativo aos atos que serão praticados conforme as suas disposições. Ora, quer-nos parecer que o efeito revogatório decorre diretamente do comando ou cometimento, pois a revogação significa que a relação autoridade/sujeito não suporta duplicidade de autoridade. Já o efeito relativo aos atos decorre do texto ou do relato da norma, pois dependem do dispositivo e de sua significação. Assim, quando o parágrafo 2.° do Art. 55 garante os efeitos, está se referindo ao texto que tem vigência imediata, ou melhor entra em vigor (produz efeitos) imediatamente. O efeito revogatório (que, conforme a teoria jurídica nem precisa constar do texto), porém, só será pleno se a vigência do decreto se tornar definitiva. Durante a vigência temporária, as normas anteriores têm os seus efeitos suspensos (eficácia), mas ainda não perderam a sua vigência, o que só ocorrerá após a palavra do Congresso Nacional.

Isto fica mais claro se considerarmos, ao lado da nulidade e da anulabilidade, a chamada ineficácia simples4. Assim, nula é a norma vigente cujos efeitos são desconsiderados desde o momento em que passou a viger. Anulável é a norma cujos efeitos são desconsiderados desde o momento em que é revogada. Simplesmente ineficaz é a norma cujos efeitos não se produzem pela falta de uma condição não realizada (suspensiva ou resolutiva). Ora, uma norma, como o decreto-lei baixado com base no Art. 55 da Constituição, tendo vigência temporária, deve possuir, obviamente, uma ineficácia simples. Ou seja, a vigência temporária leva a considerar os efeitos igualmente como pendentes do fator tempo. E o constituinte, percebendo isto, ressalvou os efeitos produzidos pelos atos praticados durante a vigência temporária de decreto-lei baixado com base no Art. 55, tornando-os definitivos, em que pese uma eventual rejeição. Não se referiu, porém, ao efeito revogatório e nem poderia fazê-lo, pois este é um atributo direto do comando e do caráter prescritivo da norma que nele repousa. Destarte, a vigência temporária significa um comando temporário e deste decorre a ineficácia simples de certos efeitos, como é o caso da revogação, a qual fica sujeita a condição futura (aprovação do Congresso). Trata-se, a nosso ver, de uma condição suspensiva e não resolutiva, pois é o caso de uma circunstância futura (a aprovação pelo Congresso) cuja falta impede o efeito revogatório e não de uma circunstância futura, cuja ocorrência destrua os efeitos já produzidos. Este é o caso da rejeição no que se refere aos atos que são praticados durante a vigência do decreto-lei e por isso ressalvados pelo constituinte no parágrafo 2.° do Art. 55 mas não ern relação ao efeito revogatório. Não fora assim, cairíamos no argumento da antinomia antes apresentado, pois se a rejeição destruísse o efeito revogatório, isto nos conduziria ao problema levantado pela vedação da repristinação e teríamos uma contradição teleológica no ordenamento. Aliás, em atenção aos comentários de Carvalho Santos, em caso de decretos versando matéria de competência do Poder Legislativo, se a aulorização (no caso constitucional) em favor do Executivo foi dada em termos amplos, a obrigatoriedade se conta a partir da data da publicação do decreto; se foi dada com restrições (exigência de aprovação do Legislativo), a data da manifestação do Congresso é que decide sobre o prazo da obrigatoriedade5.

Assim, em síntese, diríamos que os decretos-leis baixados com base no Art. 55 da Constituição têm vigência temporária, podendo ter vigência definitiva se aprovados pelo Congresso. Em consequência, seus efeitos estão sujeitos a uma ineficácia simples, dependentes que são de condição futura (suspensiva e resolutiva). Distinguimos entre o efeito revogatório e o efeito dos atos baixados sob a vigência (temporária) do decreto-lei. O primeiro, que decorre diretamente do comando, depende de condição suspensiva (aprovação do Congresso). O segundo depende de condição resolutiva (rejeição do Congresso), mas por disposição expressa do Art. 55, parágrafo 2.°, passa a ser produzido plenamente.

Quanto, pois, ao efeito revogatório, não estando revogadas as disposições em contrário mas apenas suspensos os seus efeitos durante a vigência do decreto-lei, ocorrendo a rejeição pelo Congresso, os dispositivos anteriores voltam a ser eficazes, ressalvados os casos do parágrafo 2.° do Art. 55.

Isto posto, examinando concretamente os recentes decretos-leis da política salarial, teríamos o seguinte a observar:

1. O Decreto-lei 2.045, de 13 de julho de 1983, está vigorando no momento; em sua vigência temporária, até a aprovação ou rejeição do Congresso, ele produz efeitos plenos e definitivos no que diz respeito aos atos baixados sob sua vigência e suspende, neste interim, a eficácia das disposições em contrário que estarão suspensas plenamente até 31 de julho de 1985 (caso dos artigos 1.° e 2.°) e 30 de junho de 1983 (caso do art. 3.°) desde que ocorra a aprovação do Congresso; havendo rejeição,

2. o Decreto-lei 2.024, de 25 de maio de 1983, se aprovado pelo Congresso, estaria então em vigor com vigência definitiva, revogadas as disposições em contrário; como este foi, contudo, rejeitado, os atos praticados durante sua vigência temporária (de 25 de maio até a data de rejeição, salvo o período após 13 de julho de 1983 em que sua eficácia foi suspensa pelo Decreto-lei 2.045) tiveram eficácia plena, exceto o efeito revogatório que em virtude da rejeição não chegou a ocorrer; assim rejeitado ele,

3. o Decreto-lei 2.012, de 25 de janeiro de 1983, passaria a vigorar caso tivesse sido aprovado por decurso de prazo, em não ocorrendo a apreciação do Congresso; como isto de fato sucedeu, os efeitos dos atos baixados sob sua vigência são definitivos, e o efeito revogatório, por ter sido rejeitado pelo Congresso, não se aperfeiçoou;

4. assim, a Lei 6.708, de 30 de outubro de 1979, continua vigente, com sua eficácia suspensa, até que um decreto posterior adquira vigência definitiva, quando então ocorrerá o efeito revogador;

5. por fim, rejeitados o Decreto-lei 2.024 e o 2.012, mas aprovado o 2.045, a Lei 6.708 estaria definitivamente revogada, devendo, ao final do prazo de vigência do referido decreto, ser substituída por outra, como ocorre, por exemplo, com a lei orçamentária6.

São estas as observações que tínhamos a fazer sobre o tema, s.m.j.

Trabalho elaborado pelo autor como chefe do Departamento Jurídico da Fiesp

NOTAS:

1 - Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, Decreto-Lei n.º 4.657 de 04/09/1942.

2 - Cf. Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Teoria da Norma Jurídica, Forense, Rio de Janeiro, 1978, pág. 47 e segs. Ver também Kelsen, Reine Rechtslehre, 2.ª edição, Viena, 1960, n.º4, b, pég. 6; n.º4,c, pág.12.

3 - Pontes de Miranda, em seus Comentários à Constituição de 1967, tomo III, pág. 161, fala com acerto que a eficácia do decreto-lei é imediata, sem que isso afaste determinação de data de incidência entre a publicação e a expiração do prazo ou a aprovação.

4 - Ver Francisco Pereira de Bulhões Carvalho, Sistema de Nulidades dos Atos Jurídicos, Forense, Rio de Janeiro, pág. 154 e segs.; pág. 159.

5 - Cf. Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, Rio de Janeiro, 1980, Vol. I, pág.35.

6 - Cf. Cravalho Santos, op. Cit., Vol. I, pág. 32.

Texto digitado e organizado por: Gabriela Faggin Mastro Andréa.