Um livro muito além das modestas intenções do autor

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

Comércio e Relações Internacionais não é, como pode parecer a princípio, um simples mapeamento da situa­ção atual do contexto mundial. Na verdade, este pequeno livro é ca­paz de oferecer ao leitor muito mais do que linhas e coordenadas, desta­ques e relevos. O que, nesse sentido, ultrapassa até mesmo as modestas intenções de seu autor, pois este consegue reve­lar alguns dos mais im­portantes traços teóricos que marcam a preocupação da moderna análise Jurídica do Direito.

O livro de Celso Lafer contém, formalmente, três ensaios. O primeiro, "Comércio Internacio­nal: fórmulas Jurídicas e realidades político-econômicas", representa um exame dos principais modelos de cooperação econômica internacio­nal, com o objetivo de auferir em que medida estes modelos contribuem para a persistência ou a superação de pautas de conduta, responsáveis pela distribuição dos custos e benefícios da transferência internacio­nal de recursos.

O segundo ensaio, "A redefinição da ordem mundial e a aliança latino-americana", examina a viabilidade de uma aliança sul-americana como hipótese para a or­ganização de reivindica­ções no sistema interna­cional. Finalmente, o úl­timo texto, "Ordem Po­der e Consenso: os cami­nhos da constitucionalização do Direito Interna­cional", é uma análise das atuais tendências no contexto mundial, tendo em vista uma possível re­visão de sua ordem insti­tucional.

A visão de Lafer, que sempre informa teorica­mente suas afirmações, está centrada na possibi­lidade de compreender os instrumentos jurídi­cos como mecanismos sociais de controle de comportamentos e viabilização não violenta de conflitos. Deste modo, o fenômeno jurídico é visto como um complexo sis­tema que incorpora nor­mas, atores normativos, comportamentos norma­tivos e mais toda uma gama de fórmulas com­pensadoras, transforma­doras e revitalizadoras de situações de fato.

No contexto interna­cional, as normas são ora regras consensualmente estabelecidas, ora recep­táculos de informações, que resumem tendências de decisões anteriores que se constituíram em leis, pela convergência de perspectivas de auto­ridade com expectativas de controle. Os atores normativos são, primor­dialmente, os Estados (embora eles também possam ser vistos como produtores e consumido­res) e as empresas multi­nacionais. Os comporta­mentos normativos são contratações, elabora­ção de tratados e conven­ções.

Nesse sentido, as fór­mulas são princípios ge­rais, regras de hermenêu­tica, lugares comuns de aceitação quase univer­sal, etc. E, justamente, é do relacionamento des­tes elementos que emerge o complexo nor­mativo do sistema inter­nacional. A grande preo­cupação de Lafer, nestes termos, concentra-se em descobrir — e propor — as regras que presidem ou devem presidir a es­trutura deste sistema.

Este livro revela, por­tanto, que esta estrutura está vinculada a dois po­los básicos: de um lado, as exigências da reciprocidade na composição de interesses e de outro, as exigências dos interesses na manipulação da reci­procidade. Com finura e elegância, Lafer pouco a pouco vai mostrando como estes dois pólos se exigem e se referem sem, contudo, obter-se entre eles uma síntese.

Suas análises em torno da divisão do mundo em dois segmen­tos, um desenvolvido, e outro subdesenvolvido, mostram como neles se alinham as exigências da reciprocidade da distri­buição dos custos e bene­fícios do processo de cria­ção e transferência inter­nacional de recursos, com as exigências dos in­teresses capazes de man­ter a resistência des paí­ses industrializados em face das reivindicações dos países subdesenvol­vidos. O levantamento da estrutura que daí re­sulta permite ao autor não apenas uma descri­ção da situação interna­cional mas, sobretudo, uma análise crítica dos mecanismos jurídico-políticos que ali atuam, quer de modo ativo, quer por mera omissão, no sentido de uma proposição concreta de solução para determinados im­passes.

Celso Lafer procura, deste modo, enfrentar a complexidade de um tema importante, atual e delicado sem recuar diante dele seja pelo re­curso a abstrações, seja pela perda da visão glo­bal no exame de certos detalhes. Ele consegue, assim, manejar com rara felicidade os diferentes instrumentos analíticos da ciência Jurídica, da economia internacional e da política, sem trans­formar o livro num agregado eclético de concep­ções.

Fonte: Jornal da Tarde de 27.05.77.