Propostas para a Constituinte

Tercio Sampaio Ferraz Jr. 

Gostaria de ser bastante breve, mesmo porque o tema já foi apresentado de uma maneira, me parece, suficiente, sendo difícil acrescentar alguma coisa, mormente porque além do mais, é um tema que vem recebendo da doutrina e também da experiência política um tratamento bastante alargado, de tal maneira que muito do que se diz, sobretudo para um auditório como este, é provavelmente, ou certamente, já do conhecimento geral e faz até parte do senso comum jurídico. De modo que não vou entrar em nenhum detalhe a respeito de classificações ou de posições a respeito de parlamentarismo e presidencialismo; vou apenas fixar alguns aspectos que me parecem não foram apresentados até agora, e colocar-me à disposição para uma eventual discussão. Em primeiro lugar, tenho a impressão de que, talvez um pouco na sequência do que dizia o Professor Nelson Saldanha a respeito da formação da Constituinte, tal como a estamos vivendo hoje, o tema está um pouco desfocado, no debate. Isto pode parecer estra­ nho, porque a opção por um regime é primordial na elaboração de uma Constituição. Mas todo o processo político que estamos vivendo me faz, às vezes, pensar se de fato estamos passando por um processo genuinamente constituinte. Explico-me. Não obstante a sua impor­tância, a questão do parlamentarismo e presidencialismo me parece uma questão que às vezes chega a ter um cunho quase meramente académico, mesmo porque a oposição presidencialismo x parlamenta­rismo não me parece uma oposição histórica; é muito difícil trabalhar com a contraposição entre esses dois termos como se ela tivesse um enraizamento histórico nítido; na verdade, na origem, são experiências históricas de povos diferentes, apropriados depois por uma elaboração teórica, e apresentadas na forma de oposições que depois, quando as examinarmos, os casos particulares se revelam como for­ mas difíceis de serem estritamente delineadas.

Quando nós falamos de presidencialismo, ou quando falamos de parlamentarismo e vamos aos casos concretos, vamos observar que há várias experiências e que elas se mesclam na realidade histórica dos povos, inclusive na nossa; no século passado, um parlamentarismo dentro de uma Constituição que não era propriamente parlamentarista, e um presidencialismo que evolui, toma formas diferentes em três momentos da República, com uma experiência parlamentarista bas­tante fugaz no segundo período da República. Mas as experiências não são propriamente, ou não mostram propriamente contraposições. As experiências enraizadas em nossa realidade mostram uma gama de situações que apenas teoricamente são nitidamente contrapostas. A experiência política não é, pois, uma experiência de oposições, e o te­ma é colocado hoje, no processo constituinte, como se nós tivéssemos dois modelos a encarar, parlamentarismo e presidencialismo, e ti­véssemos que fazer uma opção radical diante deles. Isto quanto a um primeiro aspecto.

Num segundo aspecto, se refletirmos um pouco sobre o problema, e nos perguntarmos das questões que estão por detrás do próprio parlamentarismo, e do próprio presidencialismo, me parece inevitável que cheguemos ao princípio da divisão dos poderes; ou seja, histórica e teoricamente, a questão da oposição dos dois regimes tem por base todo o problema da divisão dos poderes e aí me parece que há algo que poderíamos enfocar, para efeito de uma discussão. Tenho a impressão de que na formulação teórica de Montesquieu, por exemplo, ou em outros autores também, mas fiquemos com Montesquieu, a questão da tripartição dos poderes, pode ter dois enfoques diferentes. O princípio da triparticão dos poderes, ou da divisão dos poderes, teve, a manter duas funções diferentes. A primeira, que é a mais realçada e a mais evidente, faz com que a divisão dos poderes tivesse sido vista e seja vista até hoje como um sistema através do qual protegemos a liberdade. Ou seja, a divisão dos poderes esta ligada à problemática da liberdade e à proteção da liberdade. Na medida em que o poder se biparte, ou se triparte, ou se quadriparte, é mais segura a defesa da liberdade individual. Este é um encaminhamento da questão da triparticão, ou da divisão dos poderes.

Outro encaminhamento da divisão dos poderes é que o principio, na verdade, teve uma segunda função que foi a repartição política dos poderes, da seguinte forma: a triparticão dos poderes é um princípio através do qual se obtém uma neutralização política do Poder Judiciá­rio, uma neutralização parcial do Poder Executivo, e uma afirmação da qualidade política do Poder Legislativo. Essa distinção é importante, estando ligada também à questão da liberdade, mas de modo diferente. Ou seja, esse segundo enfoque me leva a considerar o princípio da divisão dos poderes como princípio ligado a questões de eficiência técnica no exercício do poder. Portanto, na análise da questão, dois aspectos funcionais: um aspecto político, no sentido de proteção da liberdade – e um da eficiência, posto que, nesse caso, o exercício político do poder exige tomadas de posição e, no contexto do exercício do poder, algumas formas desse exercício têm que ficar neutralizadas politicamente, para que o poder público possa funcionar, enfim, o Go­ verno como um todo possa atuar. Sede da atividade política, o Legis­lativo é mais lento e mais abrangente nas suas decisões. Lá o Executivo é mais rápido e atua no geral e no particular. O Judiciário se ocupa do concreto e age apenas por solicitação. Assim se punha a questão do ângulo tradicional. Ora se olharmos para função eficiência, em face do que assistimos hoje no Brasil e, praticamente, no mundo inteiro, vemos que a própria divisão, o princípio da divisão dos poderes, é um princípio que vem sendo sistematicamente esvaziado. O problema do exercício do poder tomou uma tal configuração que a chamada hipertrofia do Executivo ao assumir funções políticas, por assim dizer, transformou a problemática dos regimes; hoje a hipertrofia do Executivo é de tal ordem em qualquer situação, em qualquer país, que o problema da eficiência e, por conseguinte, simultaneamente, o problema de proteção do indivíduo, e da liberdade, desloca-se da divisão dos poderes para o modo como nós tratamos a burocracia administrativa. Ou seja, a questão política por assim dizer, cada vez mais se torna uma questão do exercício eficiente do poder, e o problema da liberdade do indivíduo se transporta para dentro da própria administração.

O que quero dizer, nesse sentido, é que, seja num regime parla­mentarista, seja num regime presidencialista, ainda que tornados os termos como opostos para digmáticos, mais importante numa discussão constituinte é a questão do controle político da burocracia, é a questão daquelas normas que nos conduzam a colocar com clareza como se fará esse tipo de controle. É aqui, me parece, que está o grande problema que estamos vivendo, mormente quando saímos de um regime de vinte ou vinte e um anos extremamente autoritários, quando essa burocracia cresceu descontrolada, e dentro da qual o problema do regime propriamente era até secundário num certo senti­ do. Houve momento em que tínhamos a impressão de ter um "primei­ ro ministro", todos sabemos disso, não obstante o fato de que o Par­ lamento se apagou totalmente, de uma forma impressionante. Houve outros momentos, como esse que acabou conduzindo à eleição de Tancredo Neves, em que, de repente, o Parlamento cresceu, e hoje até parece que começa a falar na sua competência originária, ou pelo menos toma as devidas atitudes. Quer dizer, o problema do regime me parece uma função de um outro problema, qual seja, como controlar a burocracia. O que temos a enfrentar é esse problema, o de uma admi­nistração politicamente hipertrofiada, em nome das exigências da efi­ ciência, como se fosse inevitável que ela seja hipertrofiada, ou inevitá­vel que ela seja o grande elemento na condução das questões gover­namentais políticas. O problema é, pois, como se fará o controle disto. O fortalecimento do Poder Legislativo, através de um regime parlamentar, pode ser um caminho, mas, especificamente, a questão estará, a meu ver, muito mais no modo como vamos encarar o poder burocrático. Bom, não quero me alongar demasiadamente, apenas coloco as questões para eventualmente debatermos posteriormente.

Fonte: FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Propostas para a constituinte. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, n.° 24, p. 379-382, dezembro de 1985.

Texto digitado e organizado por: Rafael Foelkel.