Princípio da Igualdade no Sistema Tributário

Tercio Sampaio Ferraz Jr

 

Prof. Tercio Sampaio Ferraz Jr. — Sr. Presidente desta Mesa, Sr. Presidente do Tribunal Regional Federal, Sr. Vice-Presidente, meus prezados colegas, minhas senhoras e meus senhores. Pela gentileza do meu prezado amigo Prof. Geraldo Ataliba, tenho o privilégio de discutir com os senhores assuntos relativos ao Direito Tributário. O tema dessa sessão, contudo, me deixa de um lado um pouquinho mais à vontade, na medida que toca em questões particularmente caras ao meu tipo de estudo, a Teoria Geral de Direito e a Filosofia do Direito.

IGUALDADE

A Prof.a Diva Malerbi acentuou, a meu ver com razão, um dos lados desse tema, a questão da legalidade. Eu gostaria de fazê-lo ao inverso e com isso, quem sabe, me tornar complementar à exposição que ela brilhantemente acabou de realizar. Ou seja, eu gostaria de discorrer e dizer algumas coisas, neste espaço de tempo de 15 minutos, a respeito da igualdade e de seu reflexo no sistema tributário, como ele está colocado na Constituição.

A minha observação é relativamente simples e se resume a um único dado, como verão em seguida, isto é, a um posicionamento a respeito da igualdade na Constituição, mas para isso eu precisaria construir algumas ideias.

A igualdade é enumerada na Constituição entre o elenco daquilo que nós poderíamos chamar de valores constitucionais básicos, e isso ocorre já no preâmbulo da Constituição, ali se fala na igualdade. Nós sabemos que o valor igualdade tem sentidos não necessariamente unívocos, os sentidos variam inclusive no tempo. Na tradição constitucional liberal inicialmente ela é igualdade jurídica, é isonomia, isto é, igualdade perante a lei, o que postula, na verdade, uma espécie de desigualdade de fato decorrente das diferentes aptidões pessoais. Isto é, quando falamos em isonomia, a igualdade em termos normativos, estamos afirmando que igualdade é nomos, é norma, ela é ditada pela norma e ela é perante a norma, mas ela não é igualdade de fato, as pessoas são de fato diferentes.

A força valorativa, axiológica da igualdade na esteira das revoluções modernas, no entanto, aponta para uma espécie de neutralização das desigualdades de fato; das desigualdades de fato; das desigualdades culturais, por exemplo, como aquelas fundadas em outros aspectos da vida humana em termos fáticos como a vida religiosa, a vida política. Ou seja, o valor atua como elemento neutralizador de discriminações religiosas ou de discriminações religiosas ou de discriminações políticas. No correr do século XIX o valor igualdade é usado para neutralizar as desigualdades quanto ao trabalho. Já no correr do século XX os movimentos em favor da liberação da mulher ultimamente exigem a neutralização das desigualdades decorrentes do sexo. A derrocada do nazismo, por exemplo, revelou a importância da neutralização das chamadas desigualdades raciais.

O texto da Constituição de 88, pelo conjunto das normas que proscrevem qualquer tipo de discriminação pelo enunciado até superlativo do caput do art.5º (reparem que ali se diz que todos são iguais perante a lei, garantindo-se entre outros o direito a igualdade, quer dizer, aparece duas vezes a palavra), generaliza uma aspiração, eu diria bem mais ampla, alcança até mesmo as desigualdades de fato. Na medida em que desvaloriza a existência de condições empíricas discriminantes e exige, pelo menos, a equalização de possibilidades.

Deste modo eu diria que o valor igualdade, como ele aparece no preâmbulo, tomado não apenas como condição para o exercício das liberdades fundamentais, a igualdade perante a lei, mas como conteúdo autônomo de um dos direitos básicos, direito à igualdade – é bom lembrar que as Constituições anteriores não enunciam a igualdade como um dos direitos, apenas afirmam a igualdade perante a lei – a meu ver isto repercute imediatamente no impedimento dos direitos constantes da Constituição, sobretudo, obviamente, nos direitos sociais. Numa aproximação eu diria negativa, isto é, uma tentativa de uma definição pela negação, o valor igualdade significaria, portanto, exigência de não-discriminação política, não-discriminação jurídica, não-discriminação religiosa, não-discriminação sexual, não-discriminação racial. Trata-se, nesse sentido de um valor individual que pressupõe de fato que os homens são diferentes política, jurídica, religiosa, sexual, racialmente. Mas numa aproximação então positiva o valor igualdade aponta para a igualdade dos pontos de partida enquanto equalização de possibilidades, equalização de oportunidades e de participação econômica e social. Nesse sentido significa um valor social que pressupõe que de fato os homens são, mas podem ser menos diferentes pelo menos.

Conforme essa colocação, nós teríamos que aceitar que a noção de igualdade na Constituição tem dois usos fundamentais e por meio desses dois usos nós poderíamos chegar a critérios interpretativos diferentes das diversas questões que são atravessadas pelo chamado princípio da igualdade. Eu distinguiria aqui entre um uso de bloqueio e um uso de realização legitimante, um uso de bloqueio e um uso de finalidade. O uso de bloqueio na interpretação afirma a igualdade e daí decorre uma série de vedações: não se pode fazer isso, não se pode fazer aquilo, é vedado discriminar aqui, é vedado discriminar tributos neste e naquele sentido, etc. Este é o uso de bloqueio agasalhado por um dos sentidos da igualdade que é o primeiro sentido, o sentido negativo, o sentido propriamente da isonomia, o mais tradicional, o sentido liberal que a igualdade tem na tradição constitucional. O outro sentido, que é o sentido legitimante e que olha para o futuro, que exige do Estado, mas sobretudo da sociedade, um movimento na direção de uma menor diferenciação, na direção de senão uma igualitarizacão, mas pelo menos de uma equalização de oportunidades, de menos diferenças sociais, este é um outro sentido, eu diria é o sentido positivo e não negativo da noção de igualdade, esse nos aponta então para o segundo uso interpretativo da expressão que não é de bloqueio, não é vedar, não é proibir, mas é exigir que se realize, exigir que se faça, exigir que se atinja certas finalidades.

Se temos esses dois sentidos na expressão igualdade na Constituição — e eu acho que eles estão fundados no texto constitucional — seria o caso então de vermos a repercussão disso em alguns textos, relativos ao sistema tributário como ele está na Constituição. Não vou descer aos detalhes e nem pretendo fazer qualquer análise exaustiva; apenas chamar a atenção para os dois usos aqui e ali, sem analisar exaustivamente a questão, tomando um tanto ou quanto aleatoriamente, por exemplo, o art. 150. No art. 150 o inciso II fala numa vedação — o caput diz que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situações equivalentes, proibida qualquer distinção, etc., etc., os senhores conhecem este texto, acredito que muitos o têm à sua frente. Este texto, a meu ver, é tipicamente um texto em que se faz uso do princípio da igualdade e do valor igualdade em termos do preâmbulo, em termos de bloqueio. Este é tipicamente um texto em que o uso de bloqueio aparece, a igualdade como bloqueio está no seu sentido negativo. Aqui percebemos claramente que o texto fala em igualdade, como nomos, como norma; ou seja, para que se exija esta vedação de tratamento desigual pressupomos que de fato existe uma desigualdade, ou seja, existe uma desigualdade entre contribuintes que de fato não se encontram em situações equivalentes, de fato não se encontram na mesma situação. Não obstante, o princípio da igualdade atua como um bloqueio e diz que nós não podemos instituir tratamento desigual, só que aqui se faz uma pequena restrição dizendo que se encontra em situação equivalente, não em situação igual, é aqui que aparece claramente que a ideologia constitucional admite as diferenças, as situações mencionadas são equivalentes mas não são iguais. O que significa isso? Aqui poderia surgir uma discussão a respeito de se essa situação equivalente se refere a situações de fato ou a situações normativamente qualificadas, isto é, conteúdos de normas, isto é, contribuintes que estivessem em situações normativamente equivalentes e não situações de fato equivalentes.

Eu tenho para mim que sempre, ainda que não queiramos, a igualdade humana é sempre fruto de norma, ela não é um fato. O fato nos mostra o reverso, os homens são desiguais nos mínimos detalhes; o que é igual em todos é sempre fruto de norma, é fruto cultural. Portanto, eu veria aqui a situação equivalente como a situação em que alguém se encontra por força não de uma norma mas do conjunto normativo em situação que pode ter uma validade de aproximação, equivalidade.

Um outro artigo. O 151 no inciso I : "instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional, ou que implique distinção ou preferência em relação a Estado, etc." — eu não vou ler o texto até o fim. De novo aqui uma vedação. A vedação agora se refere a qualquer discriminação ou distinção entre os Estados, de novo a igualdade no sentido negativo, de novo a igualdade no uso de bloqueio. Agora, aqui abre-se uma exceção: "admitida a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do país". Aqui aparece um outro sentido da igualdade, aqui não é mais bloqueio. Quando se diz "admitido", aqui nós estamos dizendo também em conformidade com a Constituição que diz que um de seus princípios é diminuir as diferenças regionais, aqui vem um outro sentido da igualdade, é a igualdade colocada como fim, como meta; portanto, exigindo do Estado não de Direito, mas do Estado Social a realização de alguma coisa — e da própria sociedade também, ou seja, alguma ação que provoque a diminuição, o desequilíbrio, que diminua o desequilíbrio. Portanto, num mesmo texto os dois usos diferentes do valor de igualdade em termos de seus usos interpretativos.

Ainda aleatoriamente o art. 152, na sequência, traz nitidamente um uso de bloqueio: "é vedado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens de serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino." Aqui também o sentido de bloqueio aparece claramente.

No art. 153, § 2.°, em relação ao imposto de renda, "o imposto previsto no inciso III será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei". Aqui também está presente um valor igualdade. Eu diria que quando a Constituição fala em princípios da generalidade e da universalidade que ela está agasalhando, esses dois princípios estão sob influxo da noção ou do valor da igualdade no seu sentido de bloqueio. Aqui atua o sentido de bloqueio, isto é, a igualdade como base, a generalidade, a universalidade no sentido de igualdade tem uma função de bloqueio, mas não necessariamente na progressividade. Na progressividade aparece um outro sentido. Na progressividade aparece o sentido legitimante, isto é, de meta, porque a progressividade é um modo de nós minorarmos as diferenças reconhecidas. Aqui neste texto, portanto, percebemos os dois sentidos e no mesmo texto do art. 153 no seu inciso II: "não incidirá nos termos e limites fixados em lei, sobre rendimentos provenientes da aposentadoria e pensão etc." Essa proibição, embora tenha o sentido de uma vedação e aparentemente de um bloqueio, não deixa de ser uma atuação do constituinte de usar a igualdade no sentido legitimante, no bentido positivo; não é bloqueio, é sentido legitimante. Embora, reparem bem, na prática como o Estado é de Direito e Estado Social a tendência é, para efeito global, usar sempre os dois sentidos complementarmente. Mas eu estou apenas aqui chamando a atenção para a relevância de um sobre outro, em determinadas circunstâncias, o que não quer dizer que no mesmo texto às vezes não possamos encontrar complementarmente os dois usos. É o caso desse inciso II em que o sentido positivo chama a atenção, isto é, "não incidirá sobre aposentadoria, pensão etc." há o sentido de diminuir a desigualdade proporcionada pela situação em que se encontra o contribuinte depois de uma certa idade ou quando pensionista etc., embora evidentemente complementarmente possamos sempre falar "uma vedação", porque aqui se fala em "não incidirá"; portanto, pensar em termos da outra igualdade, da igualdade no sentido de bloqueio.

O art. 156, § l.º, fala de novo num problema, toca num assunto de novo referente à questão da igualdade quando diz que o imposto previsto no inciso I "Propriedade Predial e Territorial Urbana" poderá ser progressivo nos termos da lei municipal. A noção de progressividade, a meu ver, tem a ver com a noção de igualdade no segundo sentido, no sentido legitimante, no sentido de finalidade. Portanto, aqui neste caso o uso é o uso de finalidade e não necessariamente o uso de bloqueio; o uso de bloqueio é secundário e é complementar, ele vem apenas para garantir esta finalidade.

Finalmente, sem querer de novo ser exaustivo, uma menção rápida ao art. 145, § 1.°, onde aparece o princípio da capacidade contributiva. O princípio da capacidade contributiva, a meu ver, tem a ver com o sentido da igualdade e, em tese, ele pode ter tanto o sentido da igualdade como bloqueio, como o sentido da igualdade como finalidade, como instrumento de alteração, de mudança, de equalização, portanto, exigindo a atuação do Estado chamado Social.

Muito obrigado. (PALMAS)

Fonte: Revista de Direito Tributário – Outubro-Dezembro de 1991, nº 58, ano 15, São Paulo, pp. 204-208.

Texto digitado e organizado por: Gabriela Faggin Mastro Andréa.