Prefácio à obra Tópica e Jurisprudência, de Theodor Viehweg

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

PREFÁCIO DO TRADUTOR

Esta obra de Theodor Viehweg que apresentamos ao leitor brasileiro constitui um dos marcos importantes na Filosofia do Direito na segunda metade deste século. O autor, professor emérito da Universidade Gutenberg de Mainz, Alemanha, provocou, nos últimos vinte e cinco anos, uma acentuada renovação no que ele próprio chama de pesquisa de base da ciência jurídica. Seu livro, cuja primeira edição é de 1953 e que foi sua tese de livre-docência na Universidade de München, chamou, pouco a pouco, a atenção de juristas e de filósofos para aspectos do pensamento jurídico que, durante anos, para não dizer séculos, haviam ficado na sombra dos modelos científicos desenvolvidos, desde a Era Moderna, sob a predominância dos padrões matematizantes das ciências naturais.

A velha polêmica sobre a cientificidade da ciência jurídica, que remonta ao início do século XIX, se esterilizara na controvérsia em torno da metodologia das ciências humanas ou do espírito, em oposição às exatas e naturais. Viehweg retomou o tema à luz da experiência grega e romana, iluminando-a com as descobertas de Vico e atualizando-a com os instrumentos contemporâneos da lógica, da teoria da comunicação, da linguística etc..

O tema de seu livro é a Ciência do Direito que ele, significativamente e atendendo ao uso alemão da palavra, chama de jurisprudência. Para entendermos as suas propostas e investigações é preciso colocar, inicialmente, as suas discussões em torno da concepção restritiva de ciência em oposição à noção de prudência, que ele foi buscar na antiguidade. (que, bem ou mal, domina o modo de pensar do cientista da natureza e que atua como padrão mais ou menos acatado pela concepção vulgar de ciência) costumam ver, corno tarefa científica básica, a descrição do comportamento dos objetos em determinado campo objetivo, a explicação deste comportamento e a criação de possibilidades de sua previsão. Pois um sistema de enunciados que seja capaz de descrever e explicar rigorosamente este comportamento deve ser capaz de prevê-lo. As ciências constroem, assim, teorias, isto é, sistemas axiomáticos que constituem hipóteses genéricas que se confirmam pelos experimentos empíricos, podendo, então, servir de prognósticos para a ocorrência de fenômenos que obedecem às mesmas condições descritas teoricamente.

Ora, diante da análise do comportamento humano, com sua enorme gama de possibilidades, de regularidade duvidosa, o estabelecimento de prognósticos alternativos, fundados cientificamente, revela dificuldades. As teorias das ciências humanas não só se prendem a determinadas épocas ou culturas, como também têm de levar em conta uma variabilidade que acaba por afastá-las do modelo científico das demais ciências.

Viehweg nota, diante deste problema, que o pensamento teórico do jurista elabora também enunciados que se relacionam à práxis jurídica, mas que têm uma natureza peculiar. É verdade que, observa ele, a teoria jurídica aceitou, sobretudo em consequência das intenções dos séculos XVII e XVIII, durante muito tempo, que a estrutura formal do direito podia ser entendida, grosso modo, como uma conexão dedutiva, explicável, principalmente, pela lógica dedutiva. Esta concepção seria própria de uma época que considerou o papel da interpretação não como principal, mas como secundário. Pois, sem dúvida, é evidente que a interpretação tende a perturbar sensivelmente o rigor do sistema dedutivo. (Vieweg: Rechts-philosophie als Grundlagenforschung, in ARPS, vol. 47/4 Neuwied - Berlin, 1961, pág. 527).

Assim, se pensamos na correlação que existe entre as doutrinas jurídicas e a práxis a que elas se referem, devemos lembrar inicialmente que aquelas doutrinas, enquanto teoria, constituem parte do ethos social, o qual resulta do costume, da tradição, da moralidade (Viehweg, op. cit. pág. 524). Esta ligação, que levanta a hipótese de que a doutrina seja, ela própria, fonte do direito, já revela a composição ambígua das teorias jurídicas. De um lado, elas têm elementos cognoscitivos (descrição e explicação dos fenômenos jurídicos), mas, de outro, sua função primordial é «não cognoscitiva» (Viehweg: Ideologie und Rechtsdogmatik in Ideologie und Recht, ed. por W. Maihofer, Frankfurt a. M. 1968, pág. 86). Ou seja, elas contêm proposições ideológicas (em sentido funcional), de natureza cripto-normativa, das quais decorreriam consequências pragmáticas, no sentido político e social. Deveriam prever, em todo caso, que, com sua ajuda, uma problemática social determinada, regulada juridicamente, seria solucionável sem exceções perturbadoras (op. cit. pág. 87). Viehweg fala, neste sentido, das teorias do direito como «teorias com função social» (op. cit. pág. 86).

Para exercer e por exercer esta função, as teorias jurídicas utilizam-se de um estilo de pensamento denominado tópico. A tópica não é propriamente um método, mas um estilo. Isto é, não é um conjunto de princípios de avaliação da evidência, cânones para julgar a adequação de explicações propostas, critérios para selecionar hipóteses, mas um modo de pensar por problemas, a partir deles e em direção deles. Assim, num campo teórico como o jurídico, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais perdem sua qualidade de tentativa. Como tentativa, as figuras doutrinárias do Direito são abertas, delimitadas sem maior rigor lógico, assumindo significações em função dos problemas a resolver, constituindo verdadeiras «fórmulas de procura» de solução de conflito. Noções-chaves como «interesse público», «vontade contratual», «autonomia da vontade», bem como princípios básicos como «não tirar proveito da própria ilicitude», «dar a cada um o que é seu», «in dubio pro reo» guardam um sentido vago que se determina em função de problemas como a relação entre sociedade e indivíduo, proteção do indivíduo em face do Estado, do indivíduo de boa fé, distribuição dos bens numa situação de escassez etc., problemas estes que se reduzem, de certo modo, a uma aposta nuclear, isto é, a uma questão sempre posta e renovadamente discutida e que anima toda a jurisprudência: a aporia da justiça.

Estes conceitos e proposições básicas do pensamento jurídico não são formalmente rigorosos nem podem ser formulados na forma de axiomas lógicos, mas são topoi da argumentação. A expressão topos significa lugar (comum). Trata-se de fórmulas, variáveis no tempo e no espaço, de reconhecida força persuasiva, e que usamos, com frequência, mesmo nas argumentações não técnicas das discussões cotidianas. Por exemplo, fórmulas do tipo «a maioria decide» indicam, num contexto dado, que a idéia que obtenha um maior número de adesões é avaliada, pelo grupo social, como mais importante do que a ideia, por melhor que seja, que tenha apoio de uns poucos ou de um único. A maioria é, assim, um topos ou lugar comum de argumentação, ao qual se contrapõe, por outro lado, o topos do mais sábio, do técnico, do especialista, quando dizemos, então, que uma decisão qualquer deve caber a quem entenda do assunto e não a um conjunto de opinantes que se impõem pelo número.

No Direito, são topoi, neste sentido, noções como interesse, interesse público, boa fé, autonomia da vontade, soberania, direitos individuais, legalidade, legitimidade. Viehweg assinala que os topoi, numa determinada cultura, constituem repertórios mais ou menos organizados conforme outros topoi, o que permite séries de topoi. Assim, por exemplo, a noção de interesse permite construir uma série do tipo interesse público, privado, legítimo, protegido etc. Os topoi, tomados isoladamente, constituem, para a argumentação, o que ele chama de tópica de primeiro grau. Quando organizados, formam uma tópica de segundo grau.

Esta organização, contudo, é sempre limitada, não surgindo nem na forma rigorosa de deduções lógicas, nem como sistemas unitários, abarcantes, como grandes hierarquias conceituais que alcancem toda a realidade em questão. O raciocínio tópico, que se vale dos repertórios de topoi, vale, portanto, em certos limites e toda vez que se tenta dar-lhes alcance maior, percebemos, de imediato, que ele se vê envolvido por contradições lógicas. Assim, na base de um princípio como o da supremacia do interesse público é possível fazerem-se várias inferências, mas, embora assim pareça, o princípio não pode valer incondicionalmente, pois isto leva a incongruências. Mesmo princípios universais como «dar a cada um o que é seu» encontram limitações argumentativas na própria tessitura social, em que os interesses e as intenções do indivíduo nem sempre coincidem com os interesses e intenções das interações em que se veem envolvidos.

Para fazer um levantamento do papel da tópica e do uso dos topoi na argumentação jurídica, Viehweg realiza, neste livro, uma investigação histórica, bastante abrangente, com o fito de demonstrar a sua importância na formação jurídica ocidental. Seu trabalho, embora realize esta investigação histórica, não é um texto de história do pensamento jurídico. Sua intenção principal está em mostrar que a Ciência do Direito que ele prefere chamar de Jurisprudência (em oposição a Jurisciência) é constituída por um estilo de pensamento, o pensamento problemático.

Nas origens, Viehweg remonta a Aristóteles, para quem se coloca uma diferença entre demonstrações apodíticas e dialéticas. O grego tinha um conceito bastante estrito de ciência. A cientificidade é apenas atribuível ao conhecimento da coisa tal como ela é (An. Post. l, 2, 7lb). Ou seja, ao conhecimento da causalidade, da relação e da necessidade da coisa. Nestes termos nos falava ele em conhecimento universal. A lógica deste conhecimento é a analítica, que constrói suas demonstrações a partir de premissas verdadeiras, por meio de um procedimento silogístico estrito. Neste sentido, as demonstrações da ciência são apodíticas, em oposição às argumentações retóricas, que são dialéticas. Dialéticos são os argumentos que concluem a partir de premissas, aceitas pela comunidade como parecendo verdadeiras (Ref. Sof. 165 b 3). A dialética é, então, uma espécie de arte de trabalhar com opiniões opostas, que instaura entre elas um diálogo, confrontando-as, no sentido de um procedimento crítico. Enquanto a analítica está na base da ciência, a dialética está na base da prudência.

É esta prudência, enquanto sabedoria, virtude de saber sopesar os argumentos, confrontar opiniões e decidir com equilíbrio, que Viehweg investiga em seu livro, desde a jurisprudência romana, passando pelo mos itálicos e pela Era Moderna, até a civilística contemporânea. E o faz com real maestria, num estilo conciso e sintético que obriga o leitor, numa obra curta, a uma leitura pausada e meditada.

Desde o lançamento da obra, que já mereceu várias edições e duas traduções (italiano e espanhol), a investigação da tópica, como estilo de pensar do jurista, progrediu. No último capítulo, acrescido à última edição, Viegweg nos dá conta deste progresso e de como as pesquisas vêm-se enriquecendo pelas contribuições da linguística, da teoria da comunicação etc.. Trata-se, pois, de um campo aberto, que seu livro, aliás, não tem intenção de esgotar.

A tradução que apresentamos foi feita do original alemão, tendo sido confrontada com a tradução espanhola. Este confronto, feito pelo sociólogo Flávio Coutinho do Nascimento, que ressaltou e assinalou os pontos divergentes entre a versão em português e a em espanhol, contribuiu decisivamente para o aperfeiçoamento da intrincada tessitura terminológica do original.

Este prefácio, que não pretende ter sido nem um resumo nem uma prévia nem mesmo uma explicação do pensamento do autor, deve antes de mais nada ser entendido como uma singela homenagem que fazemos ao mestre alemão, de quem tivemos a honra de ter sido aluno nos anos de 1965 a 1968 e com quem mantemos uma sólida e estimulante amizade desde essa época. Por isso, para encerrar, seja-nos permitido contar algo que o próprio autor nos revelou certa vez. Viehweg, que estudara Direito em Leipzig e frequentara os seminários de filosofia de Nikolai Hartmann em Berlim, antes da Segunda Guerra, e que fora juiz por profissão, encontrava-se desempregado, após o fim do conflito mundial. Para sobreviver, mudou-se para uma localidade perto de Munchen, onde vivia entre campônios. Perto de sua casa havia um claustro, onde o autor, para sua surpresa, descobriu uma fabulosa biblioteca, conservada intacta. Com a licença dos monges, começou ali a sua pesquisa, cujas linhas mestras já formara desde o tempo de estudante. E, com paciência, silêncio e reflexão, dedicou-se por anos a um levantamento, do qual, anos depois, redundou este livro, - que ele pôde, então, apresentar à recém reaberta Universidade de Munchem como tese de livre-docência. Uma obra, como se vê, que combinou, com sabedoria, as experiências do juiz que ele fora, o espírito científico dos seus mestres, sobretudo Hartmann e Emge, e as virtudes monacais que ele assumiu, num momento de sua vida, com enorme senso de oportunidade.

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

São Paulo, junho de 1979.

Fonte: Prefácio à obra Tópica e Jurisprudência, de Theodor Viehweg, Imprensa Nacional, Brasília, 1979, pp. 1-7. O Professor Tércio Sampaio Ferraz Jr. é, também, o tradutor da obra.

(Digitalizado e conferido por Gabriela Faggin Mastro Andréa)