O legado da Revolução

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Legado é uma expressão jurídica. O direito sofreu, com a Revolução Francesa de 1789, uma ruptura e una subseqüente transformação. Como em muitos outro aspectos, tanto a ruptura quanto a transformação vinha sendo preparadas. O importante, no entanto, é o símbolo histórico do momento, que marca a vocação do tempo para o intervalo. e para o contínuo.

Na passagem do século XVIII para o século XIX, há urna mudança no quadro das teorizações científicas, já preparada na .ciência renascentista, na dúvida cartesiana e na necessidade de fundar o conhecer a partir de si próprio. A dicotomia entre contemplação e ação, bem como a idéia platônica de que a verdade era percebida apenas no ato solitário da visão, começara a ser abalada quando a ciência se toma atividade que faz, que constrói os objetos que conhece. Com isso, a velha noção de teoria como contemplação e como conjunto de verdades concatenadas e dadas vira hipótese de trabalho que pode ser mudada conforme os resultados que produz, fazendo depender sua validade não daquilo que desvenda (alétheia), mas pelo fato de funcionar (produção científica).

Por outro lado, com a progressiva prioridade do agir sobre o contemplar, as idéias, no sentido platônico, deixam de ser medida transcendente para tornarem-se valores, cuja validade se explicita na sociedade com suas mutáveis necessidade funcionais.

Tais modificações não ficariam sem reflexo no mundo do direito. A teoria jurídica, sobretudo no século XVIII, passara a ser um construído sistemático da razão e, em nome da própria razão, um instrumento de crítica da realidade. Estas duas tendências vão convergir na Revolução de 1789: de um lado, a aspiração sistemática do pensar jurídico, conforme o rigor lógico da dedução, de outro, o sentido crítico-avaliativo do direito racionalmente construído. O Iluminismo jurídico que prepara a Revolução passa, assim, a reelaborar o direito natural chamado direito racional, cujos princípios são, na verdade, os seus propósitos: a teoria jurídica se instaura para o estabelecimento da paz, a paz do bem estar social, a qual consiste não apenas na manutenção da vida, mas da vida mais agradável possível.

A ligação entre as teorias do Direito Natural Racional com a teoria e a praxis da Revolução fez do teórico do direito uma espécie de reprodutor, no "laboratório" da razão, do fenômeno jurídico, o qual assume a forma de um sistema de enunciados cabais, capazes de funcionar politicamente para fins revolucionários. Isto é, a reconstrução racional do direito põe-se a serviço de um processo de conexão entre dominium e societas, a unidade de Estado e Sociedade e que vai desembocar na organização administrativa e na burocratização do poder das nações pós-revolucionárias.

Pode-se dizer, a nosso ver, que ao findar do século XVIII, as categorias máximas do Direito Natural Racional, o pactum e a majestas, uniam-se para fundar a obrigatoriedade da obediência. O domínio, legitimado jusnaturalisticamente, deve organizar a ameaça e o risco da violência e, em conseqüência, o uso do poder, em favor da sociedade política futura, ou seja, da fundação revolucionária. Este novo Direito Natural, que está na base das transformações jurídicas trazidas pela Revolução, substitui, porém, o fundamento ético e bíblico do Direito Natural medieval pela noção naturalista de "Estado de Natureza", enquanto uma situação hipotética do homem antes da organização social e que serve de padrão para analisar e compreender o homem civilizado. Com isso, elimina-se, na verdade, o velho pensamento prudencial romano — jurisprudentia —, quer como busca de orientação para o certo e para o justo, quer como sua forma de manifestação, para estabelecer em seu lugar o pensamento sistemático como uma espécie de "técnica racional de convivência", no dizer de Habermas (1), concebida a partir de considerações sobre o homem no Estado de Natureza, projetadas sobre a condição do homem na civilização.

Nesta linha de argumentação, deve-se enfatizar que a Revolução marcou o apogeu da ruptura com a antiga prudência. Enquanto esta se voltava para a formação do caráter, conferindo à teoria jurídica um caráter eminentemente pedagógico, a partir do século XIX nascerá uma ciência jurídica com sentido mais técnico, preocupada com a feitura de obras (códigos, leis), e com a domínio de tarefas (aplicar o direito e obter decisões objetivas).

A teoria jurídica jusnaturalista, que assiste à Revolução no seu alvorecer, construía uma relação entre a teoria e a práxis, segundo o modelo da mecânica clássica: a reconstrução racional do fenômeno jurídico, como irá acontecer no célebre Código Napoleônico de 1804, pode ser considerada uma espécie de física geral da socialização. Assim, a teoria, pelo conhecimento das essencialidades da natureza humana (no "Estado de Natureza"), supunha-se capaz de fornecer as implicações institucionais a partir das quais era possível uma expectativa controlável das reações humanas e a instauração ab ovo (no sentido revolucionário) de uma convivência ordenada.

O direito que nasce com a Revolução vai, porém, levar as últimas conseqüências um conflito que vinha subjacente às teorias jurídicas iluministas. Estas não estavam presas a nenhuma fonte positiva (histórica) do direito, aparecendo, assim, de um lado como uma espécie de filosofia social da liberdade e, de outro, atribuindo à liberdade um valor moral que se manifestaria expressamente numa teoria dos direitos subjetivos. Com isso, criava-se a base para as concepções jurídicas do século XIX que iriam entender o Direito Privado, estaticamente, como um conjunto de direitos subjetivos e, dinamicamente, como atos humanos que modificam e até criam aqueles direitos.

Assinale-se que o direito, no século XVIII, tomara-se sobremaneira um direito escrito. O desenvolvimento do Estado absolutista manifestara um progressivo crescimento na concentração do poder de legislar, o que iria propiciar uma agilização na produção de normas e um enfraquecimento do direito costumeiro em confronto com o legislado. Ora, a Revolução, na rota desta mudança, trouxe para o direito duas alterações significativas: a noção de soberania nacional e o caráter privilegiado da forma legal dentre as fontes jurídicas.

A Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos de 1789, no seu art. 3°, proclamava: "O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação". Os séculos anteriores haviam feito residir a soberania no senhor territorial ou no rei. Estas formas bastante personalistas e concretas de simbolizar o centro único de normatividade colocavam complicados problemas de jurisdição. Assim, Loyseau, no século XVIII, assinalava que o rei, não podendo saber tudo nem estar presente em toda parte, permitia às cortes soberanas fazer os regulamentos que eram, porém, provisórios e feitos sob sua condescendência (2). Ora, a substituição do rei pela nação, conceito mais abstrato e de maleabilidade maior, iria permitir uma nova forma de organização jurídica do Estado, latente nas propostas iluministas: a manutenção do caráter uno, indivisível, inalienável e imprescritível da soberania (Constituição francesa de 1791), em perfeito acordo com a divisão dos poderes que, por sua vez, daria origem, no direito continental, a uma concepção do poder judiciário com caracteres próprios e autônomos ("o poder judiciário não pode em nenhum caso ser exercido pelo corpo legislativo, nem pelo rei" — art. 1°, Cap. V) e com a possibilidade de atuação limitada ("os tribunais não podem se imiscuir no exercício do poder legislativo, nem suspender a execução das leis", art. 3º, Cap. V).

A neutralização política do judiciário e o lugar privilegiado da lei como fonte do direito são duas heranças importantes da Revolução. A primeira irá provocar uma desvinculação progressiva da teoria jurídica de suas bases políticas, sociais e econômicas, cuja expressão mais conhecida, no século XX, é a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. A segunda, com a substituição da unidade hierárquica, concretamente simbolizada pelo rex, por uma estrutura complexa de comunicação e controles escondida sob o nome de nação, proporcionará a canalização eficiente de todas as projeções normativas para o endereço político, cuja conseqüência será o gigantismo do direito estatal.

A neutralização política do Judiciário estava ligada, como se sabe, às necessidades de segurança da sociedade burguesa(3). O Antigo Regime caracterizava-se pelo enfraquecimento da Justiça, cuja dependência política se projetava no arbítrio das decisões. A crítica dos pensadores iluministas passou, então, a exigir a valorização dos preceitos legais no julgamento dos fatos. Daí se originou um respeito quase mítico pela lei, base, no século XIX, para o desenvolvimento da poderosa École de l’Exegèse, de grande influência nos países em que dominou o espírito napoleônico.

A redução do jurídico ao legal fez crescer a disponibilidade temporal sobre o direito, cuja validade foi sendo percebida como algo maleável e, ao fim, manipulável, podendo ser tecnicamente limitada no tempo, adaptada a prováveis necessidades futuras de revisão, possibilitando, assim, em alto grau, em detalhamento dos comportamentos conto jurisdicizáveis, não dependendo mais o caráter jurídico das condutas de algo que tivesse sido sempre direito (como acontecia com a predominância do direito consuetudinário). O direito, como a Revolução, toma-se uma criação ab ovo. Com isso ele se instrumentaliza, marcando-se mais uma vez a passagem de uma prudência prática para uma técnica poiética. Ou seja, a concepção dominante que vinha da Antigüidade, para usar uma distinção aristotélica, via o direito como uma praxis, uma ativídade que não tinha um adimplemento exterior a ela mesma e ao agente: ela não visava senão ao bem agir do próprio agente, a sua eupraxia. A partir da Revolução de 1789 esta tradição se rompe definitivamente. O direito passa a ser concebido como poiesis, uma atividade que se exterioriza nas coisas exteriores ao agente e que por isso exige técnica, isto é, uma espécie de know-how, um saber-fazer, para que um resultado seja obtido. Ora, aplicando ainda a dicotomia aristotélica (4), o direito transformado em poiesis tendo um fim exterior a ele mesmo, o produto obtido, longe de valer por si, torna-se relativo a outros fins, num processo infinito que torna tudo fútil e vão.

De certo modo, foi o que sucedeu com a promulgação constitucional dos direitos do homem e dos cidadãos. Esta promulgação de alguma forma "positivou" o direito natural racional que, funcionalmente, passou a exigir "positivações" progres-sivas e cada vez mais amplas, para cumprir os "objetivos" políticos a que passou a servir. Primeiro foram os direitos individuais, depois os sociais e econômicos e hoje já falamos em direitos ecológicos, das crianças, das mulheres, das minorias etc. Tais promulgações, inobstante o sentido de conquista política que lhes é inerente, trazem no seu seio um germe de perversão: a sua trivialização. Uma coisa se torna trivial quando perdemos a capacidade de diferenciá-la, quando passamos a conviver com ela com alta indiferença em face das diferenças. A generalização em escala das declarações de direitos universais, se de um lado, positivava um reconhecimento importante, de outro, implicaria uma perda da sua valia intrínseca pela regionalidade, circunstancialidade e mutabilidade das proclamações constitucionais dos Estados contemporâneos. A transformação do direito em poiesis, o fato que um direito, até para ser reconhecido, tem de ser posto e que, por ser posto ("promulgado") só existe em relação a outros direitos postos, traz como conseqüência uma perda de valor objetivo e independente da avaliação mutável dos interesses.

O direito pós-revolucionário adquiriu assim o caráter de mutabilidade. Por definição, altera-se e muda. Esta verdadeira legitimação da mudança inverteu radicalmente as concepções do passado, fundadas na idéia da permanência e da excepcionalidade das alterações. Neste sentido, como assinala Helmut Coing, o século XIX "representa ao mesmo tempo a destruição e o triunfo do pensamento sistemático legado pelo jusnaturalismo, o qual baseava toda sua força na crença ilimitada na razão humana"(5). Entenda-se, com isso, que o direito pós-revolução passou a ser assumido como um fenômeno histórico, não no sentido de que estava na história, isto é, de que era recolhido da temporalidade efêmera do acontecer das ações humanas, mas no sentido de que é história na sua essencialidade — um processo feito pelo homem. Entretanto, como este processo é análogo ao da fabricação — a história como um fazer e não como um agir, no dizer de Hannah Arendt(6) — ele também tem começo, meio e fim. Ora, o direito feito (proposto, votado, aprovado e promulgado), ao cabo do processo, é o direito vigente. Destarte, cancela-se a ação humana do passado, pois o processo, quando acaba, torna irrelevante tudo o que aconteceu. Para o direito vigente, usando uma imagem de Hannah Arendt, o passado adquire o mesmo significado que as tábuas e os pregos para uma mesa acabada. Entende-se assim o paradoxo do legado revolucionário: embora a legalização do sentido da mudança instaurasse a historicidade do fenômeno jurídico, o resultado do processo tornava-se, ao final, mais importante que o precedente: o direito vigente desliga-se de suas fontes e passa a submeter-se aos critérios de uma analítica intemporal e formal.

Isto significou, primeiramente, a consideração do direito como lex, isto é, identificação de jus com lex para, afinal, em nosso século, chegar-se a uma radical reestruturação em que o direito deixa de assentar sua congruência interna sobre a natureza, sobre o costume, sobre a razão, sobre a moral e passa a basear-se na uniformidade da vida social moderna, com sua imensa capacidade para a indiferença. Indiferença quanto ao que valia e passa a valer, isto é, aceita-se tranqüilamente qualquer mudança. Indiferença quanto à incompatibilidade de conteúdos, isto é, aceita-se tranqüilamente a inconsistência e convive-se com ela. Indiferença quanto às divergências, isto é, aceita-se uma forma pervertida de tolerância como a maior das virtudes.

Numa de suas cartas, escrita no princípio da Revolução Francesa, Benjamin Franklin exprimiu a esperança de que a idéia dos direitos invioláveis do homem operasse como o fogo opera sobre o ouro: "Purificação sem destruir"(7). E num panfleto das vésperas da Revolução se lia: "Possuímos guias seguros, mais velhos que os antigos monumentos; a razão para governar os nossos pensamentos, a moral para dirigir os nossos sentimentos e o direito natural"(8). No entanto, o que aconteceu depois inverteu estes princípios. Na Revolução Francesa culminaram muitas aspirações jurídicas do Iluminismo. Do legado revolucionário, contudo, restaram as transformações culturais do Romantismo, que fizeram do direito um instrumento de uso e um objeto de consumo.

Notas:

1 Cf. J. Habermas, Theorie und Praxis, Berlim 1972, p. 75

2 Apud Gillissen, "Les problèmes dês lacunes du droit dans l'évolution du droit medieval et moderne", in Perelman (org.), Les problèmes et lacunes en Droit, Bruxelas 1968, p. 230.

3 Cf. P. Barcellona, Diritto Privato e Processo Economico, Nápoles 1973, p 53.

4 Ver Ética a Nicômaco 1094 a 21.

5 Cf. Zur Geschichte des Privatreschtssystems, Frankfurt 1962, p. 25.

6 Cf. Entre o passado e o futuro. São Pauto 1972, p. 89.

7 Cf. E. Cassirer, O mito do Estado, Lisboa 1961, p. 223.

8 Id. Ibid., p. 226.

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Pirituba

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Fonte: Síntese nova fase nº 47, São Paulo: 1989, pp. 5-11