O Executivo e a Tecnocracia

Tercio Sampaio Ferraz Jr

 

As atuais manifestações em torno das propos­tas de institucionalização de um poder moderador representado pelas Forças Armadas, embora te­nham alcançado o nível de debates do Congresso Nacional, não parecem despertar muito entu­siasmo como solução ao chamado impasse institu­cional brasileiro. Já se falou, pejorativamente, em "soluções cerebrinas", tiradas de um colete jurí­dico qualquer. Já se disse também ser preferível um poder moderado a um moderador, numa evidente sugestão de que o poder moderador seria essencialmente uma espécie de superpoder. Sem entrar nos detalhes das propostas, a questão de perto o tema da chamada divisão dos poderes e é dele que trata este artigo.

A teoria clássica da divisão dos poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário foi contraída com um claro acento anti-hierárquico. Sua finalidade básica era explodir a concepção monobloco do poder político, que fazia residir a soberania na figura convergente una e suprema de um único soberano. Dividindo-se o poder, pensava-se, era possível garantir uma progressiva separação entre política e direito e, em consequência, estabelecer condições para a salvaguarda dos direitos fundamentais do cidadão. Em nome do equilíbrio entre os poderes divididos, regulava-se, no fundo, a influência da política na administração, vista como legítima no âmbito do Legislativo, parcialmente legítima no plano do Executivo e fortemente neutralizada no nível do Judiciário.

Nos quadros ideológicos do chamado Estado de Direito, a neutralização do Judiciário era uma peça chave na efetivação do princípio da divisão dos poderes. A relação de equilíbrio e reciproci­dade que devia existir entre eles exigia uma força capaz de controlá-los de um modo isento de paixões. Neste sentido falava Montesquieu do Judiciário como um poder de certo modo nulo, mas que constituía, não obstante, a mais alta autoridade nos governos constitucionais. É possível, contudo, reconhecer que, de todas as tentativas de fundar o . equilíbrio dos poderes numa neutralização deste tipo, somente uma — a Revolução Americana — foi bem sucedida. Com todos os percalços, ela conse­guiu até hoje o estabelecimento de um organismo político que, até certo ponto, prescindia da violên­cia e se instaurava mediante o auxílio de uma Constituição. Em que pese este reconhecimento, a clássica divisão dos poderes parece acompanhar os diversos regimes políticos até a atualidade, apa­recendo, com recuos e estratégias, nas suas dife­rentes constituições.

O mundo atual, contudo, mudou o sentido do princípio, pondo-o a serviço de uma mera diferen­ciação burocrática da administração. Mantém-se a divisão e a neutralização política do Judiciário, mas apenas como fachada formal de controle de decisões, transferindo-se o problema de como manter o equilíbrio e a reciprocidade dos poderes para outras esferas e instâncias da vida social. Nas complexas sociedades de hoje, o problema do equilíbrio passou a ser um problema de previsão, e não de controle do já sucedido. Num mundo que aposta corrida com o tempo, a questão é antecipar-se ao futuro. Daí o aparecimento e crescimento, na vida política, de novos mecanismos de controle, como a tecnologia econômica, e sociológica que fez com que o papel atribuído ao Judiciário passasse para o plano do Executivo. Este assume, assim um caráter politicamente neutro, ao pretender transfor­mar-se em órgão técnico, por exemplo através de seus órgãos de planejamento, erigindo a tecnolo­gia como critério máximo das suas decisões e do controle destas decisões.

Não é preciso ir multo longe para sentirmos a presença da tecnologia nos Executivos modernos. Basta ver entre nós, a hipertrofia política do Minis­tério da Fazenda e o desenvolvimento fantástico dos institutos de planejamento ligados nos Minis­térios, em comparação com a tímida atuação do legislativo através de Comissões técnicas nem sempre preparadas para o impacto tecnológico das decisões, ou do Judiciário, falando constante­mente na sua própria reforma, como uma saída, talvez, para o seu estrangulamento burocrático. O caso brasileiro é, assim, um exemplo típico de um Executivo que tenta ditar as regras do jogo político sem fazer política, respaldado na neutralidade téc­nica dos interesses que coordena e organiza.

Esta neutralização tecnológica do Executivo, porém, coloca novos problemas. A neutralização política do judiciário, chave para o equilíbrio e reciprocidade dos poderes, era fundada num evento do passado: na tradição, nos ideais de justiça, na cultura do povo, na dignidade e na gran­deza dos negócios humanos. Já a tecnologia é um processo sem passado, que só olha para frente. Por isso a neutralização tecnológica funda-se num evento do futuro, num fim proposto, a ser alcan­çado. O técnico é um homem preocupado com uma tarefa a executar. E para realizá-la, todos os meios são justificados, inclusive os de violência. O escândalo dos documentos secretos do Pentágono, nos EUA, sobre a guerra do Vietnã, bem nos mostra que a questão, para o Executivo americano, era fazer a todo custo o que tinha sido proposto: ganhar a guerra. E isto era executado em nome de um argumento lembrado por Hannah Arendt, comum a todas as tecnocracias: não se pode fazer uma omoleta sem quebrar ovos, nem uma nação sem matar gente. A fórmula tecnológica gera, contudo, um problema político que ela não consegue, neutralizar: o dilema entre a necessidade de tomar decisões ótimas e a presença fantasmagórica dos tota­litarismos, em suas diversas matizações, por de­trás delas.

A luz deste quadro, a chamada crise institucio­nal brasileira ganha mais um aspecto a ser consi­derado. De um lado, a situação de país em desen­volvimento, que nos é própria, parece exigir uma separação crescente entre atividade política e ad­ministrativa, justamente para aliviar a adminis­tração de cargas que ela não pode suportar, sob pena de perder sua eficiência técnica. Diante desta regra de eficiência, a manutenção de instrumen­tos como o AI-5 representa uma concentração ins­titucional de todas as ações e processos decisórios, dentro de um modelo fortemente hierarquizado, num único núcleo, capaz de realizar um corte pré­vio nas informações que os endereçados das deci­sões poderiam fornecer. Uma espécie de filtro político que garante o êxito técnico do Executivo. De outro lado, porém, as decisões administrativas, por exemplo, o aumento do salário mínimo, a regu­lamentação das cartas de recompra, a restrição do crédito e o controle da evasão turística de divisas dependem inevitavelmente da criação de consen­so e cooperação concreta entre os atingidos, o que acaba por ser conseguido através de arranjos e compensações políticas que desnaturalizam de novo a esfera executiva.

Assim, as recentes propostas de um Poder Moderador, ao lado dos tradicionais, parecem ser uma tentativa de contornar o dilema. Ele deveria assegurar a neutralização tecnológica do Execu­tivo, numa fórmula, talvez, mais estável justa­mente porque mais flexível que os atuais instru­mentos representados pelos Atos Institucionais. Não se pode esquecer, contudo, que a fórmula não suprime o dilema das modernas tecnocracias, apenas o institucionaliza. Daí, provavelmente, a reper­cussão esquiva que as propostas alcançam junto às classes políticas tradicionais e mesmo junto ao governo, incerto, ainda, sobre os rumos que deve dar ao chamado processo de distensão progres­siva.

Fonte: Quinta-feira, 1-4-76- O ESTADO DE S. PAULO.