Liberdade e responsabilidade penal.

Prof. Tercio Sampaio Ferraz Jr.

1. É característica dos sistemas penais modernos que a responsabilidade individual seja estabelecida como condição para a punição. E que esta responsabilidade esteja submetida a certas condições mentais.

1.1 - Via de regra, estas condições são mais bem percebidas através de sua forma negativa, isto é, pelos casos de exclusão de penalidade.

1.2 - De modo genérico, sem atender a este ou aquele ordenamento jurídico, costuma-se falar em ato inconsciente, erro sobre as consequências do seu movimento corporal, ou sobre a natureza ou qualidade das coisas e pessoas afetadas, ou formas de coerção, doenças mentais, etc.

1.3 - A contrário sensu diz-se, então, que, se o indivíduo age não submetido a nenhuma destas condições, ele o faz de livre vontade.

1.4 - A critica determinista a este raciocínio propõe duas objeções:

a) que a conduta humana, de fato, está submetida a leis no sentido da ciência e

b) que, em consequência, a distinção entre o ato sob condições excludentes e o ato dito livremente voluntário não é nem clara e por isso não tão importante como fazem crer os juristas.

1.5 - É verdade que os sistemas legais, na prática, costumam distinguir entre responsabilidade estrita, casos em que as várias formas de ignorância não excluem a ilegalidade do ato, e outros casos em que as condições excludentes desempenham importante papel.

1.6- Quanto a este segundo caso, há, primeiramente, divergência não só entre os juristas mas também entre cientistas, sobre a exata delimitação da capacidade de o indivíduo controlar seu comportamento. Há. além disso, admitidas como superáveis as dificuldades de delimitação, um outro problema no que se refere à provado autocontrole.

1.7 - Por estas razões, a doutrina jurídica nem sempre consegue uma identificação cabal dos elementos subjetivos mentais necessários para configurar a chamada vontade não livre. Por isso, no plano da dogmática, o que é relevante para determinar o caráter voluntário e livre da ação depende basicamente não tanto de constatações empíricas da ciência, mas da institucionalização de certos valores, através de técnicas apropriadas que possuem até mesmo finalidade distintas conforme os diferentes ramos do Direito, por exemplo, as mesmas condições que, no Direito Penal, visam a uma proteção do agente em face da punibilidade, do Direito Civil, visam a proteção do outro, isto é, não do agente, mas do endereçado da ação (invalidade de certos atos negociais, do casamento, etc.).

1.8 - A propósito do problema, desejamos, pois, distinguir, no Direito Penal duas questões que têm uma relevância diferente: 1º) é justo punir determinada pessoa? 2º) Pode-se eximir de punibilidade, por força de condições excludentes, determinada pessoa? A primeira questão tem relevância maior para o legislador. A segunda, para o juiz. As duas, embora referidas mutuamente, representam, contudo, um dilema que queremos analisar. Este dilema ocorre entre a normatividade dos atos punitivos, cujo sentido repousa em valores e a sua normalidade, cujo sentido repousa numa constatação empírica, ou seja, para o legislador, o problema da vontade livre é uma questão de como justificar a impossibilidade de uma conduta, caso se conclua que o homem não é um ser livre. Para o juiz, o problema é como saber se um homem, ao agir concretamente, é ou não é livre. O dilema surge da comparação de um juízo de valor com um juízo de fato, pois para o primeiro, os fatos não invalidam a norma, mas para o segundo eles são decisivos. O legislador pode punir certos atos, independentemente de o homem ser livre ou não, por julgar que os valores sociais, nos casos puníveis, são superiores aos individuais. Mas o juiz, diante do caso concreto, não pode ignorar os condicionamentos fáticos, pois ele não decide apenas com respeito aos valores em jogo, mas também sobre a existência de um fato: é razoável decidir normativamente se um homem é livre ou se trata de uma questão de normalidade, que cabe ao cientista resolver? Este é, a nosso ver, o cerne do dilema que se põe para a dogmática penal.

2. Para analisá-lo vale colocar certos pressupostos.

2.1 - Se atentarmos à nossa história, vamos observara grosso modo, que antes do século 12, a noção de dano se restringia ao que se tinha passado entre indivíduos. A relação era binária. O problema era saber se houve ofensa, quem a praticou e se aquele que sofreu o dano era capaz de suportar a prova que ele propõe ao seu adversário (seguimos, neste passo, Michel Foucault: A verdade e as formas jurídicas, Cadernos da PUC-RJ, Série Letras e Artes 06/74).

2.2 -A partir do século 12, surge, ao lado do dano, uma noção importante: a de inflação: Se antes o problema era interindividual (saber se houve dano a quem tinha razão), surge agora a idéia de inflação no sentido de que o dano não é somente uma ofensa de um indivíduo ao outro, mas uma ofensa de indivíduo ao soberano e à sua lei. Com isto a velha noção de dano se substitui pela de infração. A infração não é ao indivíduo, mas à ordem estabelecida. Assim, enquanto no Direito Germânico, o importante na reparação do dano é o restabelecimento de uma paz na estrutura binária, agora a reparação ganha outras proporções: surgem as penas como um mecanismo quase estatal.

2.3 - A noção de infração, para ter a força necessária, conjuga a ideia de lesão à lei com a ideia de falta, de pecado, Daí a noção religiosa de culpa, que se liga diretamente ao livre-arbítrio.

2.4 - O livre-arbítrio, a liberdade de escolha que arbitra e decide entre duas coisas dadas, uma boa e outra má, é um conceito tipicamente cristão. A antiguidade clássica conhecia, é verdade, a liberdade como fundamento da responsabilidade, mas esta liberdade nada tinha a ver com livre-arbítrio da vontade, A liberdade não era um dom do homem, mas uma qualidade do seu agir. (ver Hanna Arendt: Entre o Passado e o Futuro, São Paulo, 1972, págs. 188 ss). A noção de liberdade estava ligada ao relacionamento entre os homens e era um conceito eminentemente político. Correspondia à excelência com que o homem respondia às oportunidades que o mundo abria ante ele a guisa de fortuna (Maquiavel). Ora, a liberdade, identificada com livre-arbítrio. Tornou-se um dos grandes problemas filosóficos quando deixou de ser pública e começou a ser vivenciada em completa solidão (Agostinho), como o conflito mortal que tem lugar no interior do homem consigo mesmo.

2.5 - Esta solidão faz com que a liberdade se afaste da luta, (conforme as concepções da Antiguidade Clássica) entre razão e paixão, entre entendimento e thymos, entre duas faculdades humanas (Medeia, antes de assassinar os filhos, dizia: eu sei as maldades que estou prestes a cometer, mas thymos. O assalto do desejo, é mais forte que as minhas deliberações), para localizar-se numa só faculdade: a vontade. Com isto, o livre arbítrio torna a liberdade algo paradoxal: um querer a não querer ao mesmo tempo, que paralisa e encerra a vontade dentro de si mesma. Isto gera uma concepção em que o homem, tendo vontade, apareça sempre como se houvesse duas vontades no mesmo homem, lutando pelo poder da sua mente: portanto a vontade é poderosa e impotente, livre e não livre. Dizia Agostinho: “O espírito manda no corpo e o corpo obedece instantaneamente; o espírito manda em si mesmo e é desobedecido”. Descobre-se, assim, a vontade como um órgão de autoliberação e imediatamente a sua precariedade. E, no acirrado conflito entre os desejos e intenções mundanas dos quais o poder da vontade deveria liberar o eu, o mais provável ganhador era a opressão. E, consequência, a liberdade deixa de ser uma virtude pública para tornar-se um predicado do indivíduo autônomo, dotado do livre arbítrio, independentemente dos outros. Com isso, a liberdade de um homem só pode ser adquirida ao preço da liberdade do outro, a soberania de um homem só se sustenta contra a soberania dos outros. Assim, a infração é vista como um ato de livre-arbítrio na medida em que corresponde à destruição da liberdade dos outros. A infração à ofensa ao soberano. O livre arbítrio fundamenta o pecado e culpa como pecado, pois representa um atentado à soberania divina.

2.6 - No século 18, aparece uma ruptura entre infração e pecado. O pecado é infração à lei religiosa. O crime é infração civil, ruptura com a lei civil. Para que haja crime, é preciso que haja poder político, lei efetivamente formulada. Antes da lei existir, não há infração. A lei representa o útil à sociedade e o crime torna-se dano social. O criminoso passa a ser visto como um inimigo da sociedade civil. Ora, se crime e pecado são coisas diferentes, a lei penal não pode mais prescrever uma vingança que é a remissão de um pecado, mas deve permitir a reparação da perturbação causada à sociedade. Mas a noção de livre-arbítrio como condição de possibilidade de destruição da soberania permanece, apenas secularizada. Visto deste ângulo, a liberdade, como fundamento da responsabilidade, não encerra nenhum problema de determinismo, mas uma relação política de soberania contra soberania. O problema do determinismo como conhecemos modernamente, vai surgir num outro contexto.

2.7 – A partir do século 19, a legislação penal vai sofrer uma inflexão formidável com relação ao que estava estabelecido na teoria. Ela vai se desviar do que chamamos de utilidade social, não procurando mais visar ao que é socialmente útil, mas, pelo contrário, procurando ajustar-se ao indivíduo. Ao invés de desenvolver-se como uma definição abstrata e geral do nocivo à sociedade, a penalidade no século 19, de maneira cada vez mais insistente, tem em vista menos a defesa geral da sociedade do que o controle e a reforma psicológica e moral das atividades e do comportamento dos indivíduos.

2.8 - A inflexão teórica se realiza, pois, do seguinte modo: enquanto o grande princípio do século 18 era o de que não haveria punição sem lei explícita e sem um comportamento explícito violando esta lei, isto é, sem lei e infração não há punição, pouco a pouco a penalidade no século 19 passa a ser controle não tanto sobre o que fizeram os indivíduos em contraste com a lei, mas ao nível do que podem fazer, são capazes de fazer, estão sujeitos a fazer, estão na iminência de fazer (Foucault).

2.9 - Assim, a grande noção da criminalidade e da penologia nos fins do século 19 foi a de periculosidade que significa, praticamente, que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível das suas virtualidades e não ao nível dos seus atos, não ao nível de infração efetiva a uma lei efetiva, mas ao nível das virtualidades de comportamento que as infrações representam.

2.10 - Ora, a ideia de periculosidade é, a nosso ver, responsável por uma transformação na relação liberdade-responsabilidade-pena. A ideia da infração como ato de livre-arbítrio no sentido de destruição da liberdade dos outros não era incompatível comum determinismo. Kant foi talvez o filósofo que percebeu isto com mais clareza. Nos Fundamentos para uma Metafísica dos Costumes disse ele claramente que a vontade humana, do ponto de vista da razão teórica, está submetida às leis da natureza. Como todo fenômeno, a vontade está submetida às leis da causalidade. Mas isto não invalida a vontade livre como fundamento da responsabilidade. Pois, a liberdade não é um fato mas uma ideia da razão prática, cuja realidade objetiva é duvidosa. Mas como ideia, isto é, como princípio da ação, a liberdade,- que é teoricamente uma ficção, representas possibilidade de se conjugar a ação de alguém com a ação dos outros, isto é, a possibilidade de que a ação de alguém não destrua a possibilidade da ação dos outros. É portanto este princípio que confere a responsabilidade e, se as leis são feitas de acordo com este princípio, o fundamento da punibilidade decorre das leis. Ou seja, o homem é responsável por infração porque sua vontade é indeterminada, mas porque a vontade de um destrói a do outro, destruindo, assim o princípio da convivência: as leis não existem porque o homem é livre, mas o homem é livre porque existem as leis, vai dizer Kelsen mais tarde.

2.11 - Com a ideia de periculosidade, porém, a questão do determinismo entra em choque com o livre-arbítrio. Isto porque o controle sobre os indivíduos que dela decorre, acaba sendo exercido não pelo que o indivíduo faz (mundo da liberdade), mas por aquilo que ele é (mundo da natureza). A ideia de controle tende, pois, a naturalizar o ato do autor que, sob certo ponto de vista, passa a ter mais importância que a própria qualificação penal normativa do ato. De algum modo, a ideia de periculosidade se opõe veladamente ao princípio da legalidade. O princípio, é verdade. não desaparece e continua a subsistir ao nível do legislador, mas ao nível do juiz o fundamento da punibilidade toma outras características. Se o juiz passa a ser obrigado a considerar o ato naturalizado (como fenômeno do mundo da natureza), saber se o indivíduo é ou não livre no sentido de estar ou não sujeito a leis científicas cria um problema. A questão não se resolve pela legalidade no sentido de normatividade do ato, mas pela individualidade da conduta no sentido de normalidade do ato. Temos, assim, composto o dilemas que nos referimos no início transposto para uma opção entre normatividade que se apoia na liberdade sem conflito com o determinismo e entre normalidade que se apoia no determinismo do ato. 3 - Este dilema acende uma disputa entre o jurista e o homem de ciência já visível no século passado, em que o homem de ciência acusa o jurista de querer decidir sobre questões médicas ou científicas no que diz respeito à responsabilidade legal; juristas acusam cientistas de estar diluindo a responsabilidade legal, com a apresentação de critérios que não se coadunam com a licitude e a ilicitude.

3.1 - As dificuldades que este dilema propõe ao jurista atingem o cerne mesmo do seu pensamento. O pensamento dogmático é, caracterizadamente, um modo de pensar onde o horizonte do passado predomina sobre o do futuro. A dogmática tem de conciliar, assim, a pressão para decidir, inerente aos sistemas jurídicos na formada proibição do non líquet, com o princípio de inegabilidade dos pontos de partida de suas séries argumentativas, isto é, a proibição de se mudar as premissas de que parte, postas como dogmas. Neste sentido, diz Julius Kraft (Vorfragen der Rechtssozioiogie in Zeichrift für vergleichente Rechtswissnsechaft, 45, 1930, pág. 29), uma disciplina é dogmática na medida em que considera certas proposições, em si e por si arbitrárias, como estando acima da crítica, renunciando, assim, ao postulado da pesquisa independente. A dogmática se caracteriza, pois, por esta tendência em adaptar os fatos aos dogmas, interpretando-os de tal modo que a adequação seja possível dentro de um limite controlável.

Sucede, porém, que a sociedade moderna cresceu de tal modo, em nível de complexidade quer em termos quantitativos quer em termos qualitativos, já pelo aumento demográfico, já pelo aumento de possibilidades de ação, de explicação e de justificação de comportamento, propiciados pelo desenvolvimento técnico e científico, que um pensamento como o dogmático começa a sentir-se debilitado ao se ver impedido de renunciar aos dogmas, mas tendo que manter um controle sobre os conflitos que se apresentam aos sistemas jurídicos. Julgar o futuro com os horizontes do passado tornasse cada vez mais difícil. No caso que examinamos, a pressão crescente da psiquiatria, da psicanálise, da psicologia, da sociologia, etc. Para que se considere, na noção da responsabilidade penal, dados que têm uma relevância futura (são as virtualidades do criminoso que o fazem perigoso), e lançam sobre o conceito dogmático de responsabilidade projeções de alta incerteza.

A solução deste verdadeiro dilema, como nos ensinam os teóricos da decisão, não pode ser encontrada ao nível de suas alternativas, isto é, não esta. nem na própria dogmática nem na sua substituição pelas ciências empíricas do comportamento, Ela tem de ser buscada em outro nível. Não é nossa intenção desvendá-la. Mas não resta dúvida de que o dilema coloca em cheque o pensamento jurídico tradicional. Tomar consciência disto, é, contudo, já um passo dado. Para esta tomada de consciência é que pretendem contribuir as reflexões que apresentamos.

Fonte: Rev. Sequência - Estudos Jurídicos e Políticos, Ano I, nº 1, 1º Semestre de 1980, Florianópolis, pp. 99-105.

Texto organizado e corrigido por: Victor Alexandre El Khoury M. Pereira.