Liberdade de Opinião, Liberdade de Informação: Mídia e Privacidade

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Numa conferência realizada em Feldafing, em novembro de 1991 (Rechtsabteilungstagung da Siemens) o advogado Kenneth S. Russel concluiu de modo surpreendente sua interessante e informativa exposição.

Centro de sua apresentação foram decisões da Suprema Corte, nas quais a relação tensional entre o direito à honra pessoal e os direitos da First Amendment - liberdade de imprensa e de opinião - era examinada.

De um lado, estava o delito caracterizado por afirmações falsas e difamantes, que atingiam a reputação (delito de dano à reputação, do Common Law) e eram divulgadas em informações da imprensa; de outro, a liberdade de publicá-las. Um caso importante, no Estado de Alabama, decidido em 1964, trouxe para a questão uma regra que, durante muito tempo, passou a orientar a jurisprudência. A regra, conhecida como New York Times, tinha por base o Standard da actual malice, o que modificava sensivelmente a jurisprudência anterior. Segundo ela, um funcionário público, atingido em sua reputação pela publicação de falsas afirmações, só teria seu interesse protegido caso pudesse demonstrar que a afirmação fora feita com intenção maliciosa (actual malice), entendendo-se com isso conhecimento efetivo da falsidade da afirmação infamante ou, pelo menos, um desconhecimento culposo (negligente).

A decisão justificava o emprego desse novo standard com frases de efeito como "a vitalidade do debate público estaria abafada se alguém, que evitasse um comportamento público, fosse obrigado a responder pela verdade de todas as suas afirmações", pois afinal, "no debate livre, falsos enunciados são comuns".

A regra New York Times trazia, para a proteção de reputação, sério abalo, posto que a prova da actual malice era, e é muito difícil de ser feita. Não obstante, ela continuou sendo aplicada e, em 1974, no chamado caso Gertz, foi entendida também as pessoas que não estavam exercendo função na burocracia do Estado. Gertz era um advogado que atuara num processo criminal contra um policial de Chicago e que fora chamado de comunista e arquiteto de uma intriga. Embora não exercesse um ofício público stricto sensu, o tribunal entendeu que sua atividade, como advogado, tinha caráter público suficiente para aplicar-se o standard da actual malice, denegando a indenização pedida por Gertz por falta da correspondente demonstração.

Essa extensão da regra ganhou ainda mais espaço em 1984, num caso de uma firma fabricante de alto-falantes que teve seus produtos falsamente denunciados, numa revista especializada, por parte de uma tal Consumers Union, quando a actual malice voltou a ser exigida, agora num plano de relações estritamente privadas (empresa contra associação de consumidores).

Note-se ademais que, na fundamentação do caso Gertz, de 1974, admitia-se uma distinção entre afirmações factuais e opiniões, argumentando a defesa que opiniões não poderiam ser verdadeiras nem falsas, o que obrigou o tribunal, em sua sentença, a enfrentar um problema que se tornou, depois, bastante complexo, ou seja, saber se as afirmações factuais compunham ou não um conjunto referido como uma opinião. Esse problema, por ser considerado artificial e inútil, foi evitado a partir de um caso levado à Suprema Corte em 1990, que passou a exigir actual malice para cada afirmação factual, independentemente de compor ela um conjunto opinativo. Esta posição, sem dúvida favorecia a proteção da reputação atingida. Não obstante, o advogado americano, em sua exposição, concluía, com pesar, que nos EUA o conselho usual, em caso de danos provocados por publicações falsas, era de não recorrer aos tribunal. E justificava: em caso de um processo, primeiro o acusado teria a chance de repetir ad nauseam suas afirmações difamantes que poderiam até ganhar mais espaço público na imprensa; segundo, o autor teria de provar que as afirmações eram falsas e pronunciadas com actual malice, com risco de não consegui-lo, dando chance ao réu que fizesse novas afirmações eram falsas, correria o risco de vê-las tomadas, em público, por verdadeiras.

Diante disso, qualquer advogado recomendaria que se tratasse o assunto no departamento de “relações públicas”, usando-se, nesse caso, a própria imprensa como meio para estimular a concorrência das ideias.

Em outro interessante pronunciamento, o jornalista José Nêumanne, em mesa redonda sobre "A ética do Judiciário e a ética da imprensa", realizada em maio de 1995, no auditório do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, extraia do tema uma conclusão não menos contundente.

Nêumanne partia de alguns exemplos. Entre julho e agosto de 1994, o jornal Folha de S. Paulo praticamente dobrava a sua tiragem, passando de 650 mil para 1 milhão e 100 mil exemplares, enquanto seu concorrente O Estado de S. Paulo, no mesmo período, passara de 450 para 500 mil. Ou seja, a Folha tivera um aumento de 90%, enquanto o Estado chegara a 13%. Qual a razão? Nêumanne atribui o crescimento da Folha e a sua declarada adesão ao marketing, com a publicação semanal do Atlas Geográfico do New York Times.

Essa adesão ao marketing seria, porém, mais profunda. Pois ele significaria o tratamento da própria notícia como uma commodity, aliás, uma das mais poderosas de nosso tempo: a informação. E de novo a primeira página da Folha de domingo lhe serve de paradigma: nela se misturam produtos de marketing, serviços para o leitor e notícias, de preferência as revelações escabrosas, escândalos e denúncias, capazes de satisfazer a enorme curiosidade do público da sociedade de consumo.

Com isso, porém, a própria atividade de informar estaria alterada: é o advento do fast journalism, capaz, por exemplo, de num dia, notificar que um ex-funcionário da Força Sindical acusava seu presidente, Medeiros, de manipular ilicitamente recursos em contas no exterior e, no outro, publicar um desmentido de Medeiros, dando ao leitor a aparência de Justiça (ouvir os dois lados), mas, na verdade, sobre carregando-o de um encargo que ele não pediu: você decide! (quem está correto?). E conclui, citando Gaudêncio Torquato: "o excesso de informação não significa, necessariamente, acesso à verdade, pois a realidade está sendo banalizada e o grande público consome uma espécie de ficção disfarçada. Na verdade, existem duas realidades: a das ruas e a da mídia".

Mas o alvo de Nêumanne está mais longe. Sua intenção é chegar ao contraste entre a velha imprensa, definida por Albert Camus como uma "fraternidade de combate", e a nova imprensa a do marketing do escândalo, em que o repórter denuncia, julga e apena a personalidade escolhida para o pelourinho na feira livre da curiosidade popular, agindo, simultaneamente, como testemunha, juiz e carrasco. Quando se fala em liberdade de imprensa e o tema é colocado no campo dos Direitos fundamentais é na velha imprensa que estamos pensando. Quando pensamos na nova imprensa, de que Direito se trata?

Um exemplo elucidaria o problema: um repórter fotográfico da Folha flagrou Romário, então um homem casado, descendo de um carro, na porta de um hotel carioca, com uma moça que não era sua mulher. Romário tentou agredir o fotógrafo. A notícia provocou, celeuma e a informação vendeu bem. Nêumanne pondera que, para resolver o caso - quem tinha razão: o jornal, ao invocar a liberdade de expressão ou o craque, ao invocar o Direito à privacidade? - não há como recorrer aos direitos fundamentais: afinal nem é razoável, em nome da liberdade de informação, ir invadindo, sem mais razão, a privacidade de alguém, nem é possível exigir de alguém que optou por uma vida pública uma completa proteção à privacidade (se o craque a quisesse deveria pendurar as chuteiras). Por isso, para Nêumanne, a questão está mal enfocada, juridicamente. Não é problema de direito constitucional, mas comercial: se a fotografia de Romário ajudou a vender jornal, que se lhe dê a participação nos lucros e, se lhe prejudicou a carreira, a devida compensação.

O problema vai ainda mais fundo, pois, como diz Richard Sennet, citado por Nêumanne - ("O declínio do homem público", "As tiranias da intimidade") -: "A mídia elevou infinitamente o conhecimento que as pessoas tinham daquilo que transpira na sociedade e inibiu infinitamente a capacidade das pessoas converterem esse conhecimento em ação política".

Ora, se juntarmos as duas conclusões, do advogado norte-americano e do jornalista brasileiro, há em ambas um traço comum a sublinhar. Tanto um como outro assinalam que a relação mídia/ direito está, na prática, mudando de enfoque. Embora na teoria jurídica e na prática jurisprudencial ela se mantenha no campo constitucional, no dia-a-dia vai ganhando uma coloração muito mais pragmática, menos pautada por uma ética de convicção, mais por uma ética de finalidade ou de conveniência. Para o advogado americano, o problema até deixa de ser jurídico: é o public relations mesmo! Para o jornalista, passa a ter natureza empresarial e como tal deveria ser tratada!

Um exame mais aprofundado do tema nos conduz, entretanto, à algumas observações relevantes.

Em primeiro lugar, a antinomia liberdade de informação contra Direito à privacidade envolve o que se chama de paradoxo da consciência livre, enquanto conceito central das liberdades constitucionais. O princípio de liberdade de concorrência, enquanto manifestação de um eu eticamente autônomo, é essencial à antropologia moderna. Trata-se da ciência livre como julgamento humano, que no nível psicológico, gerando o problema da chamada boa consciência, quer no nível ético, gerando o problema das decisões por dever e do homem, legislador de sua própria conduta.

O paradoxo da consciência livre coloca-se assim, em termos da relação entre a decisão da consciência e as prescrições de normas heterônimas. Assim, ou se afirma a prevalência da liberdade de conduta conforme os ditames da própria consciência, o que nos leva a um subjetivismo que Max Scheler denominou de anarquia cívica, ou se afirma a liberdade de consciência como a obtenção da boa consciência pela incorporação de padrões objetivos, o que nos leva a um objetivismo em que a liberdade de consciência é vista como liberdade de conformação!

Esse paradoxo, que está na raiz da tensão entre liberdade de informação e Direito à privacidade (interesse público/ interesse privado) tem uma explicação lógica, quando atentamos para a estrutura do conceito de liberdade (cf. Freytag-Löringhoff).

Do ponto de vista lógico, o predicador liberdade, em termos de cálculo lógico, é um predicado de três variáveis e não de uma só – não (Lx+x é livre), mas sim (Lx, y, z=,x é livre de y, em vista de z).

Para esclarecer as três posições, pode-se usar, da linguagem corrente, a noção de vinculação e de valoração hierárquica. Assim, ser livre é sempre ser livre de algo ou alguém, mas a mera desvinculação não esgota o conceito, pois temos aí um mero negativo. Daí a idéia de ser livre de algo, para uma outra coisa que, na verdade, é uma outra vinculação.

Entre a primeira, da qual se é livre, e a segunda, à qual se adere, há uma relação de avaliação hierárquica: a primeira vinculação é negativa, a segunda é positiva.

Em outras palavras, liberdade de aponta para uma exceção que se abre a uma vinculação genérica, apreciada negativamente e que a precede. Por exemplo: livre de preocupações pressupõe a vinculação genérica; negativa: a vida preocupa. Essa vinculação menos valiosa, na qual se abre a exeção, aponta para outra vinculação, mais valiosa (a tranqüilidade). Nesse contexto, a asserção molecular (Lx = x é livre) gera uma ilusão de substância indefinível (que é liberdade?) e que, efetivamente, é insuscetível de verificação. Ou seja, embora na aparência as asserções "a mesa é quadrada" e "o homem é livre", sejam equivalentes, só a primeira, mas não a segunda, pode ser submetida ao controle da verdade. A segunda é, efetivamente, parte de uma asserção molecular. Donde, ser livre compõe um sentido, mas não expressa, por si, um sentido pleno.

Pode-se entender, destarte, a dificuldade em que se insere a dogmática tradicional, quando enfrenta a antinomia dos Direitos fundamentais: liberdade de opinião, limitando-se pela liberdade de cada ser e comportar-se como lhe pareça e vice-versa.

Na dogmática constitucional, esse problema principia com o próprio entendimento de Direito subjetivo público. Jellinek (System der subjetktiven ötten-tlichen Rechte, 1892 – ed. 1963), que o formulou pela primeira vez num contorno dogmático, valeu-se de sua teoria do status, entendido status como a posição do indivíduo perante o Estado, derivada de sua qualidade de membro (cidadão).

O conteúdo do Direito à liberdade (opinião, privacidade), conferido por força de pretensão juridicamente protegida, é a omissão de interferência do Estado na esfera de ação do indivíduo. Como entender essa esfera? Aqui entra a noção de status negativus: se o próprio Estado está submetido à ordem jurídica constitucional, então a subordinação do indivíduo ao Estado (soberania) deve estar limitada ao que a ordem prescreve. Ora, aquilo que resta ao indivíduo, subtraídas todas as limitações juridicamente (leia-se, constitucionalmente) estabelecidas para a ação individual, isso constitui a esfera de ação livre do indivíduo.

Contudo, a liberdade em suas diversas expressões (liberdade de opinião, privacidade), embora nomeada na norma constitucional, é apenas liberdade de (interferência do Estado), ou seja, identifica-se com ações constitucionalmente irrelevantes dos sujeitos perante o Estado. Nessa medida, porém, enquanto expectativa pretegida de omissão e de tolerância, no sentido de "não importa que atividade", a expressão liberdade não fornece nenhum padrão ou medida que o indivíduo esteja legitimado a opor ao Estado, ou a outro indivíduo, ou à sociedade.

A dogmática tenta contornar esse problema, tentando redefenir a liberdade, em termos de status negativus, por meio de uma explicação estrutural e outra pelos efeitos.

A explicação estrutural parte do pressuposto de que a imperatividade das normas tem dois caracteres estruturais: finalidade e imediatividade (cf. Lerche: ÜbermaB und verfassungsrecht, Bonn 1961, p. 262). Finalidade significa que toda imperatividade normativa (e a do poder público em grau extremo), tem por objetivo influenciar a autodeterminação do indivíduo, donde há norma (como império) o indivíduo está limitado na disponibilidade para definir seus próprios objetivos. Já a imediatidade lex prima facie valet – significa que o comando autoritativo da norma é poder no sentido (weberiano) de chance de obter obediência, independentemente de motivos e interesses dos endereçados.

Ora, toda finalidade decorre de uma imediatidade, mas nem toda imediatidade implica em finalidade. Por exemplo: a imposição de impostos abrange imediatamente o exercício das profissões, mas dela não decorre uma finalidade (orientar, ou planejar, ou limitar o exercício profissional). Segue daí que a liberdade (profissional) é definida como o campo marginal da ação que resta para o indivíduo em que os objetivos de sua ação não são atingidos pela imediatidade do comando.

Esta explicação – estrutural –, contudo, não nos salva do dilema liberdade de opinião/privacidade. Pois, mesmo que se pudesse identificar um conjunto de comandos referentes ao ato de opinar ou de ser como lhe apraz, mostrando que de sua imediatidade não decorre nenhuma finalidade, esse campo marginal de definição de suas próprias finalidades continua conceito meramente negativo, que não confere nem padrão, nem medida a ser livre. Continua, pois, faltando a segunda vinculação, estimada positivamente: ser livre para quê?

A outra explicação, pelo efeito, procura uma resposta a essa objeção. A proteção à liberdade tem de ser vista não, pela estrutura – forma do ato normativo – mas pelo efeito que este provoca na conduta. Tem-se assim, que o efeito imperativo é apenas um dos efeitos possíveis e, que qualquer influência na autodeterminação individual, seja consequência imediata ou seja mediata, é sempre restrição ao indivíduo. Em outras palavras, não importa se a finalidade do ato resulta da imediatividade ou da mediatidade do comando, todo comando sempre restringe a autodeterminação dos objetivos da ação do indivíduo. Mas, nesse caso, como entender a liberdade?

Se toda normatividade delimita a própria motivação da ação, a configuração de Direitos fundamentais, exige que se vá além de questões formais e se entre na discussão da própria práxis estatal e social de motivação da liberdade. Isto é, a liberdade é algo que se promove e se realiza. Mas de quê, ou seja, de que liberdade estamos falando? Talvez possamos nos valer aqui da distinção, proposta por Dahendorf, entre conceito problemático e assertórico de liberdade.

Pelo primeiro, existiria liberdade numa sociedade se esta fosse capaz de obviar e até eliminar todos os impedimentos que restrinjam um indivíduo, salvo os de sua própria natureza. Pelo segundo, liberdade existe numa sociedade se e quando a chance de auto realização é percebida e assume forma no efetivo comportamento humano. A relação entre esses dois conceitos, porém, não é evidente. Não o sendo, continua difícil arbitrar conflitos entre liberdades – caso de opinião versos privacidade – pois não é claro em que medida a eliminação de impedimentos implica a percepção de chance de auto realização e sua efetivação, e vice-versa. Ou seja, continua difícil a realização jurídica simultânea, da liberdade de opinião e da privacidade.

Esses impasses da dogmática constitucional nos revelam, afinal, que o enigma esteja talvez na concepção das liberdades públicas em termos, basicamente, de status negativus. E, por aí se entende a mudança de enfoque de que falamos anteriormente.

Como vimos, a concepção de liberdade pública por meio de negação (não impedimento) torna o conceito vazio. Pela mera negação é impossível extrair o conceito um padrão ou uma medida material. Assim, ou enveredamos pelo caminho da busca de um preenchimento material do conceito, situando-nos, socialmente, dentro dos próprios instrumentos de mídia –é a solução do advogado americano: ao invés de recorrer à arbitragem judicial entre dois conceitos materialmente vazios é melhor transformar a questão num problema de públic relations e enfrentar a mídia com os meios da mídia. Ou então seguimos o caminho do jornalista brasileiro, transformando a questão em um problema comercial, o que significa abandonar a liberdade como conceito ético legitimante da responsabilização nas relações humanas, substituindo-o por uma idéia de resultados, cujo centro motor é a relação custo/benefício.

FONTE: Revista dos Tribunais, ano 6 – nº 23 – Abril-julho de 1998, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, IBDC, pp. 24/29.

(Digitalizado e conferido por Gabriela Faggin Mastro Andréa)