LAFER, Celso – A reconstrução dos direitos humanos (Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt) – Companhia das Letras, 1988, 406 págs.

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Celso Lafer, que foi aprovado no concurso para professor titular de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da USP, escolheu para tema da sua tese “a Ruptura Totalitária e Reconstrução dos Direitos Humanos”

Trata-se, na verdade, de um diálogo fecundo que o autor trava com a grande pensadora política de nosso tempo Hannah Arendt, cuja obra filosófica, marcada pelo existencialismo de Jaspers e Heidegger, traz à tona o grande tema da crise contemporânea: a redução dos homens a seres supérfluos, que podem ser trocados quando imprestáveis ou por outros homens ou por máquinas. Esta crise radical que atinge os seres humanos nas mais diversas situações - na burocracia estatal e empresarial, na fábrica, na universidade, na escola etc - é iluminada por uma situação-limite que marca a nossa era com grande violência: o advento do totalitarismo político, mormente do nazismo e do stalinismo, em nosso século.

O totalitarismo, segundo mostra Celso Lafer em seu trabalho, rompeu com todas as tradições da cultura ocidental que desde a antiguidade construiu e centrou na pessoa, sujeito que não se torna objeto de ninguém, a base da dignidade humana e o núcleo dos direitos fundamentais. Os regimes totalitários, cujo protótipo é o campo de concentração, ao tornarem os homens supérfluos e descartáveis, puseram em relevo a crise dos próprios direitos humanos, cuja base começou a ser corroída pelo advento do positivismo jurídico no início do século XIX. Foi a progressiva erosão do chamado direito natural, reconhecido é verdade pelas modernas constituições na forma das declarações universais dos direitos humanos, que nos conduziu, porém no século XX, ao dilema da legalidade perversa das burocracias totalitárias, como a que transformou Eichmann num funcionário "respeitador da lei" de extermínio de milhões de seres humanos.

Como entender esta brutalização terrível do homem pelo homem, como foi ela sendo preparada no correr dos tempos, para, afinal, perguntar-se o que deve ser feito para evitar que ela ocorra de novo, eis a grande interrogação de Celso Lafer em sua tese. Não se trata, contudo, apenas de um problema localizado no fato histórico do nazismo e do stalinismo, mas de uma questão muito mais abrangente e mais grave, que aponta para o absurdo da guerra nuclear, para a irracionalidade do terrorismo atual, para a condenação de grandes massas à miséria e à fome, num mundo que, paradoxalmente, vê o poder crescer pela multiplicação dos meios de violência e pela extensão dos meios de controle sobre a sociedade.

Direitos à cidadania

Por isso a tese de Celso Lafer nos fala da reconstrução dos direitos humanos, em cujo centro está o direito à cidadania, visto como o direito de ter direitos. A afirmação da cidadania é a afirmação da pertinência de todo homen a algum tipo de comunidade juridicamente organizada e a proibição da apatria, pois quem não tem como viver num lugar como seu, onde possa ser julgado por suas ações e opiniões, não tem espaço no mundo, nada pode reivindicar nem realizar, é um ninguém em qualquer circunstância.

A cidadania confere ao ser humano o seu lugar no mundo e a condição para o exercício da sua singularidade entre homens iguais. A afirmação da simultânea diversidade e igualdade humana é, no fundo, o direito de ser tratado como semelhante e o direito, ao mesmo tempo, à própria intimidade em termos de exclusividade. Para que tais direitos se firmem é preciso, no entanto, resgatar a distinção entre o público e o privado, tornada difusa com o crescimento do Estado sobre a sociedade, como seu tutor e gestor, realçando a relevância do que é público como o comum e o visível, para limitar o efeito deletério da mentira na política e proteger a intimidade como limite ao direito dos outros à informação.

Acima de tudo, sublinha Celso Lafer, é preciso destacar a importância do direito de associação na geração do poder, inclusive como meio de resistência à opressão, capaz de salvar o dever político e jurídico da obediência da destrutividade da violência. Daí a importância da correta avaliação da chamada desobediência civil, caso típico dos movimentos americanos contra a guerra do Vietnã, que revelam uma forma de agir conjunto voltado para a preservação do interesse público.

Liberdade pelo juízo

Mas acima de tudo, o livro de Celso Lafer levanta uma profunda questão existencial: o fato de que a existência humana, embora condicionada pela necessidade da sobrevivência, pelo mundo do trabalho e pelo agir conjunto, não tem nessas condições algo de absoluto, o que sempre forçou o homem a perquirir além de suas próprias condicionalidades. Daí a observação de Hannah Arendt de que, para o homem, a mortalidade é, de um lado, o emblema de sua existência, pois só ele morre propriamente, pois só para ele há consciência da morte. Contudo, para a vida humana, o decisivo não é essa contingência inevitável, mas a capacidade de feitos imortais, de deixar atrás de si vestígios imorredouros, o que requer liberdade enquanto possibilidade permanente de iniciar coisas novas não solitariamente, mas em concurso com os outros, e que faz da coexistência política memória organizada que se transmite por tradição.

Ë o resgate dessa liberdade pela capacidade humana de julgar que Celso Lafer procura pôr em relevo. E aí está, ao mesmo tempo, a força dramática de sua tese: como livrar-nos do embotamento crítico em que o julgamento humano foi atirado por um mundo consumista, em que tudo é perecível e supérfluo, em que só se avalia o homem, os artefatos humanos e a própria natureza em termos de desempenhos e resultados?

Fonte: Revista Brasileira de Filosofia, Vol. XXXVIII, 153, São Paulo: 1989, pp. 76-78.