Falta Experiência para Legislações Comuns

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Por não ter podido participar da sessão da manhã, temo, nesta etapa, em alguns momentos, ser repetitivo, ao tocar em temas que já foram discutidos, mesmo porque, embora compartimentados, todos os temas acabam se entrelaçando. Coube-nos, a mim e ao dr. Mário Possas, uma análise de um protocolo que se pretende firmar, possivelmente até o fim do ano. Na elaboração desse protocolo, gostaria de fazer algumas ponderações mais de natureza acauteladora do que propriamente estimulante.

Partiria dos seguintes elementos: temos no Mercosul e na América do Sul, de modo geral, um desenvolvimento da defesa da concorrência relativamente recente. Embora, no Brasil, a tradição legislativa remonte a 1962, e alguns elementos legislativos até anteriores, nas concentrações econômicas, praticamente, a experiência é relativamente pequena e recente. Não é muito diferente o que acontece na Argentina, no Chile, e nós sabemos perfeitamente de que há países, como o Uruguai e o Paraguai, que sequer têm uma legislação nesse sentido; portanto, acho que há um risco de avançarmos em um protocolo, até mesmo alguns projetos, de normas comunitárias de natureza substantiva.

Um projeto legislativo não é apenas um projeto de elaboração de textos. É difícil nós copiarmos legislações de outros. O problema é saber em que medida uma legislação, seja nacional, internacional ou comunitária, venha a corresponder a uma efetiva institucionalização, no sentido sociológico da palavra, que, de fato, confirme alguma coisa. Com uma experiência relativamente pequena, parece-me que estamos em um campo em que as soluções estão demasiadamente abertas. Há pouca consciência doutrinária, jurisprudencial e até legislativa do que se pode fazer nesse terreno. Faz pouco tempo que, no Brasil, estamos mexendo com isso, e não é diferente no Mercosul.

É muito diferente trabalharmos o mesmo tema em terrenos como o Direito Tributário, um Direito já com assentos doutrinários, jurisprudenciais em todos os países com experiências mundiais muito mais avançadas. Nesse campo, as experiências são pequenas, e elas têm de ser levadas em consideração sob pena de nós colocarmos o carro na frente dos bois.

Nós deveríamos levar em consideração que, na defesa da concorrência, estão implicados dois temas correlacionados, mas distintos, e com movimentos na experiência também distintos. De um lado, existe a problemática das infrações da concorrência, daquilo que causa prejuízo à concorrência, e de outro, temos o processo de controle prévio, as questões das concentrações econômicas que não envolvem diretamente infrações, mas que permitem um trabalho em que se evita processos distorcidos dentro da concorrência. Esses dois temas, embora imbricados, merecem um tratamento diferente. No campo das concentrações, por exemplo, a experiência brasileira não tem mais do que cinco anos, talvez menos. Já no campo das infrações, a experiência é mais antiga. Talvez, possa se dizer o mesmo de outros países.

A diferença na experiência leva-nos a crer que os tratamentos devem ser diferentes quando tratamos de uma coisa ou de outra. No que se refere às condutas infrativas, o problema de defesa da concorrência, em termos de prejuízos à competição, em termos de fraude à concorrência, em termos de dominação de mercado, exercício abusivo de posições dominantes e outras questões desse gênero, o cuidado deve ser acrescido porque, na experiência pequena dos diferentes membros de uma comunidade Mercosul, é também diferente o modo pelo qual nós interpretamos isso.

O Brasil teve até 1990, marcadamente, uma tendência a examinar a sua Lei de Concorrência de um ponto de vista estrito, muito próximo dos comandos penais, não como urna legislação penal, mas muito próximo. Exigindo princípios fundamentais do Direito Penal, do tipo estrita legalidade, tipificação cerrada e outras coisas do gênero. Desde 1990, isso vem se alterando: apareceu uma legislação penal própria, inspirada na legislação de 1962, e, paralelamente, vem se desenvolvendo uma outra muito mais aberta, menos ligada a esta tipificação penal.

Sabemos que em outros países, como na Argentina, ainda se está vendo toda a legislação de um ponto de vista mais penal. Essas diferenças não são fáceis de alterarmos, de uma hora para outra, em termos de experiência e, por isso, teremos de ir mais devagar. Não se pode negar que, em termos de tipificações no sentido ge­nérico, há uma espécie de fonte comum; enfim, as experiências mais tradicionais, tanto a americana quanto a europeia, aurida na experiência americana, podem nos servir de instrumento balizador, mas isso não significa que nós temos condições, de uma hora para outra, de avançar.

Dada essa dificuldade de tratar o assunto, parece-me que algumas recomendações na elaboração de um protocolo poderiam ser sugeridas. A primeira: existem temas ligados à concorrência que têm, ao contrário destes, dominação de mercado, uso abusivo de posição dominante. Existem certos temas ligados à concorrência que já têm na doutrina e na experiência uma tradição mais longa. Talvez esses temas pudessem ser tratados fora de um protocolo sobre a defesa da concorrência. Estou pensando aqui nos casos da legislação antidumping e nos casos da legislação anti-subsídios. Esses são temas que têm uma tradição maior e poderiam ser tratados à parte, em outro protocolo. Embora doutrinariamente haja uma imbricação entre a defesa da concorrência e as questões de dumping e de subsídios, parece-me que os assuntos poderiam ser tratados separadamente. Dada uma certa incerteza substantiva quanto ao tratamento das questões infrativas, seria interessante que um protocolo cuidasse menos de uma harmonização, pelo menos neste primeiro momento, quanto ao Direito material e, talvez, alguma harmonização no que diz respeito ao Direito processual.

Uma idéia que poderia ser levantada, como objeto de discussão, seria a hipótese de um protocolo que, primeiro, recomendasse aos países que não têm legislação, que promovessem as suas, e segundo, que estabelecesse uma série de regras, na linguagem do Direito Internacional Privado, de devolução, ou seja, que nós pudéssemos ter, além dos órgãos nacionais e das jurisdições nacionais, alguma forma que, se não é ainda um tribunal, pelo menos seja um recurso quando os assuntos relativos a infrações tocassem interesses de vários países ou comunitários, estabelecendo uma arbitragem — uma espécie de juízo de arbitragem, que poderia ser convocado e que trabalharia com um processo de regras de devolução, digamos assim, onde ocorreu a denúncia e quais são as empresas denunciadas. Nesse caso, a Corte, o juízo arbitral, poderia tratar do assunto usando a lei material do Brasil, se fosse aqui; se fosse na Argentina, usando a lei material argentina, e assim por diante. Ou seja, o protocolo trabalharia até que as coisas estivessem mais maduras com as próprias legislações nacionais, tentando abrir um processo de experiências que nos levaria a um amadurecimento dessas questões.

Infrações e Concentrações

Quanto ao campo das infrações, sendo prematura a elaboração de regras substantivas, o que deveria haver era essa recomendação em que apareceriam noções do tipo: se o agente econômico denunciado perante autoridade de um país é nacional, do ponto de vista subjetivo, a legislação, que será aplicada em grau de recurso por uma corte arbitrária, seria a da nacionalidade do denunciado ou uma eventual condenação nacional em termos de mercado relevante que alcance o Mercosul de modo geral. Então, poderia partir do ponto inicial e, depois, estendê-la, mas sempre do ponto de vista de uma legislação nacional. O projeto de uma legislação comum poderia ficar para mais tarde.

Quanto à possibilidade de trabalharmos em outro campo, em termos de um protocolo, isto é, quanto ao controle dos atos de concentração, aqui, o tema parece-me um pouco mais complicado, porque, em tese, sendo o mercado comum e não havendo barreiras tarifárias, qualquer concentração tende a repercutir em todo o território. Repete-se o mesmo tema das diferenças: nem todos os Estados têm legislação de controle prévio. É preciso haver urna recomendação para que essas legislações nacionais surjam, e é preciso que, destas legislações, constem regras e que façam menção ao mercado relevante, em termos de toda a territorialidade do Mercosul.

Na análise dos temas referentes à concentração empresarial, há, aqui, alguns problemas que, em um protocolo, mereceriam certo relevo. Primeiro, o protocolo teria de cuidar, nesse caso, das relações entre os controles nacionais em um possível controle comunitário. Segundo, o problema de como tratar interesses de terceiros em face dos interesses comunitários, o Mercosul como um todo, em face de outros Estados. Em terceiro lugar, como tratar os interesses comunitários do Mercosul em face das políticas industriais nacionais, que é um problema complicado quando falamos em concentração. Nesse caso, a relação com políticas industriais nacionais torna-se uma questão a ser resolvida. E, finalmente, quais as condições institucionais requeridas para que esses temas sejam tratados.

No que se refere às relações entre os controles nacionais e um possível controle comunitário, o desenvolvimento das concentrações empresariais, obviamente, pode ser visto nos Estados nacionais como questões de interesse público. É o caso do Brasil. Segue daí que, por exemplo, o tamanho das empresas poder ser interpretado, de um ponto de vista nacional, como algo positivo para o crescimento de sua própria economia. Esse tamanho pode significar um reforço na capacidade competitiva em relação a outros Estados e, às vezes, o problema não é de tamanho, é do desenvolvimento tecnológico e sua proteção. Ora, pode ocorrer na apreciação de temas como este que haja princípios divergentes de partida, em análises nacionais; isto é, o Cade no Brasil e os órgãos correspondentes nos outros países. Digamos que o Estado "A" privilegia o princípio da concorrência efetiva, as concentrações têm de ser analisadas a partir da concorrência efetiva. Pode ser que um estado "B" já aceite a ideia das compensações como um critério de eficiência razoável, a concorrência tem de ser afirmada, mas, se houver devidas compensações, ela pode ser posta em segundo plano. É possível que um estado "C" parta de princípios de interesse público acima de qualquer outro, independentemente de compensações ou da própria concorrência; acima de tudo deve estar o interesse nacional. Essa divergência de princípios é que vai nos forçar a regras comuns.

Esse problema, no caso das concentrações, a diferença do que ocorre nas infrações, não pode ser resolvido por regras de devolução, isto é, saber qual das legislações nacionais deveria ser aplicada em cada caso. Aqui, entra a questão do duplo controle e da prevalência de certas regras comunitárias sobre as nacionais, quando entre elas houver conflito.

Ora, como é que nós resolvemos esse problema, em termos de um protocolo, tendo em vista a sua aplicação no Mercosul? A meu ver, deveríamos começar por fixar regras referentes ao alcance das atividades empresariais, ou seja, também começar pela parte procedimental — determinar se as atividades empresariais se restringem a um estado, que estão em questão em um ato de concentração, criando critérios do tipo: se dois terços do faturamento das empresas que se concentram estão concentrados em um único Estado, a questão é daquele Estado e não da comunidade como um todo. Ao contrário, se supera, por ser menor do que esses dois terços, então, passa a ser uma questão de toda a comunidade. Em segundo lugar, seria preciso definir os interesses comunitários como um todo em face de interesses de outros Estados. Isso é importante de se estabelecer dentro de um protocolo: o interesse da comunidade em relação a outros Estados. Também seria preciso ressalvar a competência das autoridades nacionais de cada Estado em reclamar para si o assunto, quando uma decisão, não obstante exista o interesse comunitário, acabe interferindo prejudicialmente em um Estado-membro.

Uma regra saudável, nesse sentido, é a de permitir que uma concentração reprovada comunitariamente não pudesse ser permitida em um Estado-membro. Por outro lado, uma concentração aprovada comunitariamente pudesse ser proibida dentro de um outro Estado. Seriam formas de tentarmos equilibrar essas diferenças e, para isso, buscar regras. Só que, para alcançar esse desenvolvimento, teríamos de ter controles prévios de concentração nos diferentes Estados-membros com desenvolvimentos institucionais razoavelmente avançados, o que não é o caso.

Como trabalhar, então, em um protocolo, inicialmente essas questões? Algumas regras preliminares parecem-me que poderiam nos levar para o caminho de uma legislação comunitária; no entanto, ainda na forma de princípios e não de legislação específica. O que deve prevalecer: a concorrência efetiva ou a ideia das compensações? Apenas princípios orientadores. Acho que é possível fazê-lo desde logo, até com uma orientação para aqueles que ainda não têm legislação a respeito. Isso deveria ser acompanhado em um protocolo de recomendação para aqueles que não tem, que instalem órgãos de legislação própria, quanto à questão dos controles prévios. Em seguida, em um protocolo, poderia constar regras que obrigassem a consulta mútua entre os órgão nacionais quando o faturamento das empresas que se concentram atingisse na comunidade um certo valor — mais de um terço, seriam obrigados a se consultarem nas suas decisões nacionais, levar em consideração a posição e a opinião dos outros. Isso nos levaria a formar um consenso de princípios.

Pareceria interessante uma recomendação de que, em todas as análises de atos de concentração, o mercado relevante Mercosul fosse levado em consideração, como é o caso brasileiro: aqui é obrigatório. Nós sempre temos de levar em consideração, em um ato de concentração nacional, como isso repercute em termos de Mercosul. Nas legislações nacionais, isso deveria ser recomendado e deveria tornar-se realidade. Na sequência disso, uma recomendação para a inclusão, nas legislações nacionais, desta regra, obrigando a levar em consideração os elementos do mercado comunitário; deveria ser acompanhado de uma regra que obrigasse a levar em consideração os motivos preponderantes da economia do Mercosul.

Isso não está em nossa legislação. Aí, poderemos estar dando um passo, ou seja, incluir na legislação brasileira, assim como ela fala em motivos preponderantes da economia nacional, incluir também motivos preponderantes da economia do Mercosul. Com isso, estaríamos dando resposta a um dos problemas nesta relação comunidade/terceiros Estados. É importante que apareçam regras. Se uma concentração que principia fora do Mercosul, em qualquer outro país, uma concentração de multinacionais que repercute na América Latina, seria importante para a formação de um protocolo, se houvessem entendimentos, se uma tomada de decisão dentro de um Estado nacional a respeito da proibição de uma determinada concentração, que não fossem possíveis ameaças que vêm de fora para dentro. Que isso fosse, de antemão, trabalhado de modo a impedir esse tipo de chantagem. Portanto, acho que, como projeto, um protocolo poderia ter esse tipo de regra antes de nós avançarmos sem ter a experiência devida para legislações comuns, órgãos comuns, o que deveria vir em um processo um pouco mais distante. Muito obrigado.

Coordenador — Vamos ouvir agora o terceiro e último expositor, o dr. Mário Luiz Possas, professor titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e que tem livros e trabalhos publicados na área da economia industrial, além de ser consultor econômico na área da Defesa da Concorrência. Dr. Possas, a palavra é sua.

Fonte: Debates – A defesa da concorrência no Mercosul, Fiesp, São Paulo: 1997, 70-75.

Texto digitado e organizado por: Gabriela Faggin Mastro Andréa.