Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Apresentação da edição brasileira da obra Eichmann em Jerusalém de Hannah Arendt
Eichmann em Jerusalém
Um Relato Sobre a Banalidade do Mal
Apresentação
Tercio Sampaio Ferraz Jr.
"Beth Hamishpath - a Casa de Justiça". Com estas palavras principia Hannah Arendt este seu livro. A expressão talvez não exprima bem, na tradução, o sentido mais profundo das coisas. "Justiça" é um termo por demais materializado e identificado com objetos físicos: o edifício, o tribunal, a jurisdição. No entanto, a expressão, usada pela autora, é mais conforme com a dimensão axiológica das palavras e, assim, mais apropriada ao que será relatado a seguir. Beth Hamishpath é a Casa do valor justiça, o espaço da guarda, conservação, culto e engrandecimento do justo. Não se trata do nome de coisa, mas de palavras com que os servidores do tribunal anunciam a chegada dos juizes. Não é uma designação, mas uma proclamação.
Este livro de Hannah Arendt, ao contrário dos anteriores já publicados em português, não é um ensaio nem tem uma motivação teórica primordial. Seu objetivo, em princípio, é um relato cuja matéria prima é constituída sobretudo pelos protocolos processuais registrados e aparecidos na imprensa por ocasião do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. Hannah Arendt o havia produzido para uma revista americana — The New Yorker —, na qual foi publicado em cinco seqüências, para depois, em 1963, transformar-se num dos livros da autora que mais polêmica gerou. A reação da comunidade judaica foi forte, sobretudo em face de algumas teses de Hannah Arendt, que atiçavam a emoção de vivências terríveis e pessoais, embora fossem densas de reflexão humanista e universal para os que procuram no destino de um povo a sabedoria dos valores e a prudência dos julgamentos.
As disputas giraram inicialmente em torno do comportamento dos judeus na catástrofe da chamada "solução final" (Endloesung), expressão que, no vocabulário nazista, significava o extermínio total do povo, o que livraria o mundo dos semitas. A questão, aflorada pelo próprio promotor público israelense, centrava-se na pergunta sobre se os judeus deveriam ou poderiam ter-se defendido e revoltado contra a opressão que os esmagava, o que levantava o problema sociológico e histórico da chamada "psicologia do gueto", uma espécie de mentalidade derrotista e até auto-destruidora que teria impedido o povo de reagir. Ou, pelo menos, que teria subjugado a liderança judaica, destinando-a ao fracasso. Este problema, do comportamento da vítima em face do algoz e das possíveis relações complementares que ali se estabelecem, marcam um dos pontos altos deste livro. Numa forma límpida e controlada, Hannah Arendt parece frear sua própria passionalidade, ao relatar com firmeza e percuciência como se portaram líderes judeus e o acusado Adolf Eichmann, nas tentativas de administrar "bem" as deportações e os morticínios. E é exatamente esta limpidez e autocontrole que atingem o leitor desprevenido, o qual se vê, de repente, em face dos traços mais dramáticos de um julgamento.
Aliás, na verdade, é este julgamento o tema nuclear do livro. Não se trata, pois, nem da história de uma grande catástrofe que atingiu o povo judeu, nem de um discurso sobre o sistema totalitário de dominação, nem mesmo de um relato sobre o que sucedeu ao povo no chamado Terceiro Reich. No ponto central desta obra está um processo judicial e, nele, um ser de carne e osso, uma pessoa como outra qualquer, ela e sua circunstância, como diria Ortega y Gasset. É óbvio que por conta desta "circunstância" tudo mais acaba por ser relevante: o aparelho de dominação burocrática, a ideologia anti-semita, a guerra, a responsabilidade dos Estados e dos povos. Mas tudo isto é, para Hannah Arendt, apenas circunstância. Ela evita, o tempo todo, assumir a postura do próprio Estado de Israel que, de certo modo, quis fazer de Eichmann um acusado-símbolo e, do seu processo, o cenário de um palco por onde desfilariam, de um golpe, os piores e mais representativos espécimes do totalitarismo nazista, afinal a própria administração de um Estado enlouquecido e de uma humanidade desamparada de seus valores. Arendt, ao contrário, vê no processo Eichmann um procedimento que ocorre no interesse da justiça e do direito, uma jurisdictio na sua simplicidade e profundeza, o que lhe permite, de um lado, evitar o engano de julgar Eichmann uma vítima, um bode expiatório de um regime; de outro, enfrentar as questões jurídicas do genocídio, da soberania estatal, da responsabilidade funcional, diante dos atos concretos de um homem.
Aliás é esta sua postura diante do tema, sua compreensão do julgamento como o juízo sobre o comportamento de um ser humano, não de outro, mas daquele – Adolf Eichmann – que nos permite entender o subtítulo do livro: sobre a banalidade do mal. Não se trata, como poderia parecer, de um reflexão universal, sobre um homem universal, um modelo shakespeariano da maldade na sua grandiosidade mesquinha. Arendt trabalha sobre fatos e traz a banalidade do mal ao nível do cotidiano: o Eichmann que se apresenta não é um perverso, nem um tipo criminoso cínico e atrevido, não é um ambicioso, capaz de matar ou de fechar os olhos para progredir, mas é apenas alguém que jamais teria imaginado o que realmente estava fazendo. Note-se que isto não parece à autora como sinônimo de obtusidade ingénua. Eichmann não era um simplório, um tolo, sabia muito bem o que fazia. O que o caracterizava era um vazio de pensamento que não quer dizer ser tolo, mas que o predispôs a tornar-se o grande criminoso que acabou sendo. E aí está toda a banalidade referida. O que Eichmann fez não foi algo que pertença ao cotidiano, mas nem por isso fui alguma coisa de extraordinário, que se pudesse explicar por uma alma demoníaca. Não era um Raskolnikov. Era um funcionário do governo. Um alto funcionário, que nunca pensou que aquilo em que se aplicava pudesse ser realmente algo de tão monstruoso.
O vazio de pensamento, condição para a banalidade de um crime, dificulta o juízo que possamos ter sobre o comportamento do homem, mas não torna menos hediondo os atos que cometeu. Eichmann foi acusado de "genocídio", um crime na realidade sem precedentes na história. Pois embora sejam conhecidos exemplos significativos de massacres coletivos no passado da humanidade, nenhum deles se compara ao que sucedeu naquele período, Hanna Arendt observa agudamente que os atos de Eichmann, conectados ao que acontecia em Auschwitz, Bergen-Belsen, Theresienstadt, não o punham atrás de uma arma com a qual assassinava desordenadamente multidões indefesas. Em vão, aliás, procurou-se incriminá-lo de alguma morte. Eichmann, na verdade, nunca tocou em uma arma. "Genocídio" não é crime no sentido usual dos códigos penais modernos. Não tem os traços límpidos da antijurisdicidade, da culpabilidade, da responsabilidade pessoal que pode ser mais ou menos qualificada. Trata-se, na realidade, de um ato incomparável, uma espécie de "massacre administrativo", dentro das normas técnicas da burocracia legal e reconhecida. E aí estava, segundo a autora, todo o drama da Justiça (tribunal) que devia dizer a justiça (valor).
A primeira dificuldade estava em equacionar corretamente o ato de um homem, que mais parecia uma pequena ruela numa poderosa engrenagem. Aliás, este argumento, que impressionou a tantos nos famosos julgamentos de Nuremberg, não pareceu a Hannah Arendt – nem aos juízes – um ponto significativo. Por mais que uma burocracia aja e execute funções como uma máquina, perante o tribunal ela teria de transformar-se em gente de carne e osso e seus atos não poderiam ser documentos, cópias, mas comportamentos comissivos ou omissivos que como tais seriam julgados. Pois, querer eximir-se de um crime porque não passou o criminoso de uma simples ruela ou até mesmo de um motor central que não executa tudo que aciona, é querer escapar da responsabilidade de um ato sob o argumento de que ele apenas fez o que as estatísticas penais exigem: afinal alguém tinha de cometê-lo (ver sobretudo o Epílogo deste livro).
Comentários desta ordem nos mostram que Hannah Arendt foi ao âmago da questão: qual a responsabilidade do cidadão por atos cometidos nos quadros da licitude de um Estado soberano e reconhecido pelos demais?' Por maior que seja a inegável dimensão política e histórica de seu livro, não resta dúvida de que a autora viu no processo Eichmann antes de tudo o drama da jurisdição concreta: julgar, condenar ou absolver a alguém, em nome de que parâmetros?
Hannah Arendt nos mostra assim, ao nível dos fatos e dos proto colos, que as duas grandes categorias jurídicas para entender e dominar aquela situação pareciam impotentes. De um lado, a noção de ato soberano, que nos leva a admitir na tradição mais forte de nossa cultura que par in parem non habet jurisdictionem, ou seja, um ato de um Estado soberano não pode ser julgado por outro Estado soberano. De outro; a noção de "ato executado por ordens superiores", que encanta o burocrata pela objetividade funcional que instaura, conferindo-lhe aquela aparente distância e neutralidade, que tecnicamente o eximem da responsabilidade pelos fins, desde que aplicou corretamente os meios prescritos.
O primeiro daqueles conceitos tem por trás de si a famosa teoria da razão de Estado que, em última análise, afirma que os atos estatais, responsáveis que são pela existência do país e pelas leis ali vigentes, não podem estar submetidos às mesmas regras que os seus cidadãos. A razão de Estado se baseia num princípio de necessidade e aqueles atos criminosos cometidos em seu nome, criminosos inclusive à luz de seu próprio ordenamento, são considerados medidas de necessidade para a manutenção global do sistema. A propósito desta teoria, sem discutir-lhe o mérito final, Hannah Arendt nos mostra, porém, que a razão de Estado se invoca como justificativa de atos excepcionais, que por definição não podem constituir a regra das coisas. Ora, pondera ela, na Alemanha nazista os valores se inverteram de tal modo, sobretudo quanto à questão judia, que certos atos da administração, por si e em si legais, chegaram a ser "justificados" pelas autoridades em nome da necessidade. É óbvio que, neste quadro, as questões da soberania parecem igualmente invertidas, pois, a menos que se admita com absoluto cinismo a equivalência nihilista de todos os valores, não parece crível que o Estado nazista pudesse ser julgado pelos demais como seu "par". No entanto, para uma visão formalista do direito, essa solução não era satisfatória, ademais que Israel era, como Estado, posterior à Alemanha de Eichmann.
Mais complicado, porém, parece ter sido o problema do cumprimento de ordens por dever funcional. A teoria jurídica, tradicionalmente, reconhece que o funcionário que executa uma ordem crimi nosa só será incriminado se tal ordem, constituindo uma visível exceção na sua rotina, fere a sua sensibilidade funcional e o seu senso jurídico. Ora, era óbvio que este conceito não se aplicava ao caso Eichmann, o qual agiu não só dentro da regularidade exigida, como, seguindo sua própria sensibilidade funcional e seu senso jurídico, não seria levado a outra coisa senão a agir como agiu. Afinal, dominado por um aparelho de Estado, burocrático por virtude, e por uma mentalidade enlouquecidamente difundida e orquestrada pela propaganda oficial, nada mais natural que o réu se sentisse, em todos os momentos, atuando no mais estrito cumprimento do seu dever. E se algumas vezes tentasse como tentou minorar a sorte de algumas das vítimas, não foi porque julgasse insanas as ordens que recebia, mas porque, na sua compreensão do sistema instaurado, os objetivos estariam mais bem servidos daquele modo!
Hannah Arendt, ao chegar a estes pontos, não só revela a insatis fatoriedade dos parâmetros jurídicos que mal serviam aos juízes de Jerusalém, como vai mais longe, afirmando a suspeita dramática de que se a justiça foi feita, não o foi em nome de normas estabelecidas e critérios jurídicos fundados, mas em razão do livre julgamento de cada um (ver o Prefácio da autora para a tradução alemã).
O ato de julgar é, para a autora, algo fascinante. Em seu livro póstumo – The Life of the Mind (3 volumes, New York, 1978) – o julgar é considerado uma das atividades básicas da vida da mente, ao lado do pensar e do querer. Por não ter podido concluir o texto, foi exatamente a faculdade de julgar o estudo que ficou menos desenvolvido. Ela, contudo, se revela, neste livro sobre o processo Eichmann, como um tema de alta significação, ainda que não tratado com uma intenção teórica. O tema aparece, na verdade, no dilema de um julgamento que afinal não tem parâmetros gerais reconhecidos, apontando para a necessidade de, no ser humano, supor-se uma capacidade de julgar, isto é, de distinguir entre o direito e o não direito (no caso em tela), que se funde em última análise no ajuizamento de cada um. Um dilema, aliás, que encontramos de forma contundente na obra (e na vida) daquele que foi seu mestre na Alemanha - Karl Jaspers - ao analisar a responsabilidade hodierna do homem ao tomar decisões, sem as vantagens tranquilizadoras dos parâmetros estabelecidos e reconhecidos (responsabilidade escatológica, que postula sempre um padrão último e inexorável), mas tendo que buscar em si e por si sua própria motivação e fundamentação (responsabilidade situacional, a que se produz pela necessidade concreta de responder e que só pode guiar-se por "modelos", que não são instâncias, não podem copiar-se, e envolvem os riscos da falta de uma estabilidade definitiva) – ver Richard Wisser: Verantwortung im Wandel der Zeit, Mainz, 1967.
Pelo texto deste livro sobre o processo Eichmann, não há, da par te de Hannah Arendt, uma resposta direta a este dilema. O livre julgamento, que nos faz também pensar nas teses da Escola da Livre Interpretação do Direito, não é delineado, salvo por aproximações negativas. É, na verdade, um juízo concreto, que se dirige aos fatos imediatos, sem subsumir a sentença a nenhuma regra geral. Não pressupõe ditames morais, na forma de normas, mas tem por condição de possibilidade o pressuposto de que as questões elementares da moral tenham um mínimo de evidência.
Aliás, como nos mostra Celso Lafet (Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder, São Paulo 1979), reconhecidamente o maior intérprete do pensamento da autora entre nós, o julgar é, para ela, o juízo sobre o particular, sem subsumi-lo no geral. Lafer, comentando um texto de The Life of the Mind, acrescenta, então, que o juízo, assim entendido, tem como objeto um particular que já foi (uma obra, um evento etc.), sendo uma faculdade pela qual se juntam um certo desligamento do mundo das aparências com o dado pela experiência espacialmente localizada. Esta combinação, continua ele, envolve um mistério, pois no julgar, o particular é o dado para o qual se precisa encontrar o geral, mas o padrão deste geral não pode ser dado pela experiência, visto que não é possível julgar um particular através de outro particular. Este "padrão", tendo em vista as soluções kantianas para o problema, parece mais a Hannah Arendt algo que tem validade exemplar, é o exemplo enquanto algo capaz de revelar uma generalidade sem deixar de ser um particular.
O recurso ao exemplo pode ajudar a entender o ato de julgar, mas no caso Eichmann, a questão da sua culpabilidade ou inocência, conforme nos mostra o relato de Hannah Arendt, fica numa encruzilhada. Pois, como disse ela própria no prefácio que escreveu à edição alemã de seu livro, o tribunal de Jerusalém foi confrontado com um delito que não se encontrava nos códigos e com um delinquente que, pelo menos antes dos processos de Nuremberg, não era conhecido. Afinal, numa época como a atual em que a moralidade é a última coisa que se acredita ser evidente, há pouco espaço para a justiça, mas sobra para o niilismo e para o cinismo.
Este espaço que sobra não representa, por último, algo permanente nos tempos, mas é fruto do totalitarismo, que Hannah Arendt, em seu The Origins of Totalitarianism, enxerga como um fenômeno moderno, ligado ao moderno antissemitismo e ao imperialismo. O primeiro condicionou o conceito de "inimigo objetivo" (gerador de suspeita generalizada e indiscriminada) e o uso da mentira (administrado pela máquina do poder). O segundo provocou, com sua vocação expansionista e com a forma burocrática de dominação, a extensão de um racismo que produz uma espécie de insensibilidade propiciadora do genocídio. Portanto, nos quadros desta dominação total, os crimes de que se acusou Eichmann se tornaram indiscerníveis, pois ali o injusto aparece como lícito, permitindo que o ilícito se obscureça como valor.
Hannah Arendt declara, na introdução de seu livro The Life of the Mind, que as reflexões ali constantes lhe foram instigadas pelo comportamento de Eichmann em seu processo, o qual lhe pareceu um homem incapaz de pensar, isto é, de desligar-se provisoriamente do mundo das aparências para chegar a alguma conclusão sobre o sentido das coisas. Eichmann não pensava. E com isso se protegia do risco de encarar seus próprios atos, apegando-se a normas que aplicou corretamente e a ordens que obedeceu com diligência. Não se protegia, porém, intencionalmente, o que seria ainda uma forma de pensar. Protegia-se pelo vazio da sua expressão. E foi nesta expressão opaca que a autora viu dramaticamente resumida toda a tragédia da banalização do mal que ele, burocraticamente, cometeu. Seu livro, neste sentido, mais do que um relato, é um testemunho eloquente da perda pelo homem do sentido orientador da vida, na civilização contemporânea.
Fonte: Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt, São Paulo: pp. 7-14.
Texto organizado por Vinícius Cardozo.