Dra. Alice no país do “pró-rata média”

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Quando saiu o decreto-lei 2.283 e, logo em seguida, o 2.284 a jovem advogada – dra. Alice – pôs-se a estudar com certa cautela alguns dos seus dispositivos e deparou com quebra-cabeça formalista que lhe apontava para aquilo que aprendera, há alguns anos antes, como um caso de inconstitucionalidade. Afinal, o referido decreto-lei, os dois, aliás, haviam sido baixados com base no art. 55 da Constituição, que permitia ao presidente da República fazê-lo sobre matérias de segurança nacional, finanças públicas, criação de cargos públicos e fixação de vencimento, mas que era silente sobre matérias de Direito privado, como obrigação em geral, negócios mercantis, aluguéis residenciais e comerciais etc. Ora, segundo aprendera, a competência presidencial era estrito, segundo a regra "o poder público só pode fazer o que a lei (e a Constituição, é óbvio) lhe permite expressamente", estando-lhe vedado assumir competências implícitas.

Não obstante, ouvindo no rádio, vendo na TV e lendo nos jornais a formidável repercussão favorável ao pacote monetário, logo se convenceu de que o povo aprovara o decreto-lei. E ela que também era povo e que já não suportava mais as complicadas operações financeiras a que era obrigada para não deixar corroer de todo os seus rendimentos mensais, aderiu à legitimidade do pacote.

No seu dia-a-dia profissional, contudo, foram aparecendo os casos complicados de interpretação do decreto-lei, que o bom senso de que era dotada (afinal, segundo Descartes, é a coisa mais bem repartida entre os homens) permitia resolver. Havia, no entanto, uma questão que gerava dúvidas de difícil solução ou, pelo menos, que parecia não submeter-se a uma regra de aceitação geral e quase referia às atualizações pro-rata das obrigações pecuniárias com reajuste pré-fixado.

A dra. Alice, que estudara direito o seu Direito, já ouvira a expressão, na verdade em sua fórmula pro-rata tompore. Tratava-se, pensava ela, de uma expressão latina que significa "em proporção ao tempo". Assim, usando de novo do sou bom senso, quando lhe pediam que indicasse o modo como deveria ser atualizada uma obrigação pecuniária com cláusula de correção monetária, por exemplo, um aluguel comercial, ela tomava o valor da ORTN por ocasião do último reajuste, dividia-o pelo preço do aluguel, e, o resultado, multiplicava pelo valor da ORTN vigente no dia 28 de fevereiro, convertendo, em seguida, os cruzeiros em cruzados na base de mil para um. Havia alguns probleminhas referentes ao cômputo dos dias que mediavam a data de vencimento do aluguel e o dia 28 de fevereiro, mas como a ORTN era mensal e o decreto-lei mandava que se respeitassem as bases pactuadas, a dra. Alice seguia o raciocínio anterior com razoável segurança.

Foi então que apareceu o decreto regulamentador (n.° 92.582) que, referindo-se ao art. 9.º do decreto-lei 2.284, reconheceu ser este o artigo disciplinador dos "alugueis não residenciais". Mas, ao fazê-lo, estabeleceu que os seus preços fossem atualizados pró-rata conforme uma tabela que, na verdade, determina a conversão dos valores pela média dos últimos seis ou doze meses (conforme fosse o contrato de reajuste, semestral ou anual). Isto lhe pareceu uma novidade: pró-rata média? Afinal, perguntou-se ela, o aluguel deve ser atualizado em proporção ao tempo decorrido ou pela média dos seis ou doze últimos aluguéis?

Como, certo dia, se encontrasse em um painel de discussão sobre o pacote monetário, muniu-se, de coragem e resolveu propor a dúvida que não lhe saía da mente. A mesa recebeu-a com complacência e logo um dos painelistas lhe explicou, embora aquilo não tivesse sido indagado, das peculiaridades da atividade normativa. O Direito, disse ele, exige uma memória que funciona em dois sentidos: para trás e para frente. Conquanto pareça estranho, estabelecer normas exige uma lembrança do que sucedeu e uma “lembrança” do que sucederá. Esta secunda lembrança e o que comumente se chama de a previsão legal.

Dra. Alice, que não era dada a essas especulações, agradeceu e foi delicadamente objetiva: como é possível que uma norma de hierarquia superior – o decreto-lei 2.281 – estabeleça o reajuste pro-rata das obrigações pecuniárias com correção pré-fixada, nas quais se incluem os alugueis não-residenciais, ser modificada por um decreto regulamentador que, ao invés de uma atualização pró-rata, estabelece, evidentemente, uma atualização pela média?

"Veja, dra.", disse um segundo painelista compassivamente, "que tem razão o meu ilustre colega, pois isto é justamente um problema de conjugação da memória para trás e para frente. Quando se estabeleceu a atualização pró-rata, no decreto-lei 2.284, a previsão era de um equilíbrio ajustado entre o credor e o devedor que, não obstante, deveria pressupor a lembrança de uma experiência que ainda não ocorrera (mesmo porque nunca houvera uma atualização nos moldes da passagem do cruzeiro para o cruzado). Assim, o decreto regulamentador, que de fato é hierarquicamente inferior, apenas regula, com base numa intenção passada, o que a experiência negocial consagraria no presente e no futuro". E, adivinhando pela cara de interrogação da dra. Alice, que talvez não estivesse sendo compreendido, acrescentou: "pro-rata tempore não é só proporção ao tempo que resta, mas também à média de tempo decorrido".

O acréscimo não ajudava muito. Por isso a jovem atreveu-se a dizer: "mas, deste modo, ao que me parece, o sentido das expressões está sendo trocado: pro-rata não significa pela média". Ao que lhe retrucou o segundo painelista: "quando o legislador usa uma palavra, ela significa exatamente o que ele quer que signifique; nem mais; nem menos. Dra. Alice, não se dando por vencida, argumentou: "mas a questão é saber se o legislador pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes". "A questão – replicou ela – é saber quem manda nus palavras. Só isso".

Embora se sentisse um tanto desconcertada, dra. Alice ainda teve ânimo de dizer: "mas, dessa forma, ficamos com dois mandamentos contraditórios – um que estabelece o cálculo pró-rata – e, outro que fala em pela média: como esclarecer duas pessoas que, tendo interesses contrapostos, desejam orientação firme e segura do legislador?" .

A pergunta era direta. Os membros da mesa aprumaram-se, entreolharam-se, e então o coordenador, tomando a palavra, respondeu com uma voz definitiva: "negociação". "E o que o legislador significa com essa palavra?" perguntou ela. "É simples – explicou ele – deve-se atualizar conforme o modo mais favorável e esperar a concordância; se esta for inviável, sempre há o recurso ao Judiciário". "Mas isto – insistiu a jovem – contraria o princípio da certeza e da segurança jurídicas: afinal, em que se baseará o Judiciário?" O coordenador olhou-a com superioridade e sentenciou: "esta questão não cabe ao legislador responder, pois estaríamos ferindo o princípio da divisão dos poderes, exigido por um verdadeiro Estado de Direito".

A dra. Alice sentiu que nada mais havia a perguntar, apenas disse: "obrigada, os senhores parecem ter muita habilidade para explicar o sentido das palavras da lei". "Ora, replicou com modéstia o coordenador, falando pelos colegas, enquanto passava ao próximo tema, podemos explicar todas as leis que foram estabelecidas... e boa parte das que ainda não o foram".

Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 09.07.86, p. 3.