Dra. Alice no país da corrupção

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

O jornal estava aberto, em cima da mesa, sob a luz de um abajur. Era o jornal matutino, que, aquela hora da noite, ainda não pudera ser tido. O resto do escritório estava na penumbra. Fora mais um dia cansativo. A dra. Alice, jovem advogada que começara sua carreira havia quatro anos, lançava os olhos distraída sobre as manchetes, com a sonolência própria de um fim de expediente.

"Governo apressa correções no 'choque'". "Vem ai novo congelamento", pensou ela. "Novo é modo de dizer: primeiro aumenta-se, depois se congela", refletiu. "IPC é usado para ampliar fraude no Rio" dizia outra manchete. "Nossa!", exclamou ela para si mesma: "Dois bilhões de dobres!"

Empurrou o jornal com certo enfado. Esticou o braço e puxou um estudo sobre os impostos na nova Constituição: IPI, ICMS, Imposto sobre Importação, Imposto de Renda e outros mais. "É tributo para ninguém botar defeito", pensava. "E não obstante, não há dinheiro para pagar os débitos públicos".

Ela estava só. E, no entanto, no canto da sala, alguém folheava uns papéis. Ou era como se alguém estivesse ali. Entre surpresa e receosa, resolveu investigar. De fato, na penumbra, alguém estava sentado numa poltrona. Antes que pudesse dizer alguma coisa, recebeu uma pergunta: "Agora já posso ser atendido?"

O choque impediu-a de responder. Era um senhor alto, magro, vestido com um terno que parecia lhe cair muito mal. Sobre o colo trazia uma caixa de papelão, de cabeça para baixo e sem tampa. Dra. Alice observou a caixa com grande curiosidade. "Você esta admirando a minha caixinha", disse tom amigável. "Fui eu mesmo que inventei, para guardar os PF que recebo. Sabe, os por-fora, aquele dinheiro que não entra na contabilidade pública. Está de cabeça para baixo porque assim ninguém mete a mão”. “Mas assim as coisa podem cair”, observou dra. Alice com delicadeza. "O senhor não viu que a tampa está aberta?" "Claro que vi! Mas é de propósito. É assim que fujo do ISC". E diante do olhar de interrogação da dra. Alice completou: "Imposto sobre corrupção".

"Imposto sobre o quê?!" espantou-se ela. "Mas isto não existe. Nem faz sentido". "Ora, minha cara, não só existe, como faz plenamente sentido". E a explicação veio em seguida: a arrecadação estava baixando muito per causa da corrupção. E havia uma grande soma em circulação que não era tributada. Logo, nada mais razoável do que lançar-lhe um novo imposto. Aliás isto estava perfeitamente previsto na competência residual da União, conforme o artigo 154 da Constituição. "Mas", atreveu-se a dra. Alice, "se tributarmos a corrupção praticamente a reconhecemos como legitima!"

O homem não se deu por achado. "Isto é óbvio. Uma corrupção tributada deixa de ser ilegal e todos estamos tranqüilos. Aliás, é por isso que minha caixa está destampada e de cabeça para baixo". Dra. Alice não entendeu: "mas assim ela fica vazia!". Ao que o homem completou triunfante: "pois é, se nada há dentro dela, nada há a tributar". "E qual a sua vantagem?" "A vantagem, disse ele, é que tudo vai para essa segunda caixinha, a caixinha dois". Dra. Alice não se conformou: "então a corrupção continua. De algum modo burla-se o fisco". Ao que ele retrucou, alisando com carinho a outra caixinha e pondo na voz um tom de experiência com as coisas da vida: "Moça, todos nós temos uma responsabilidade diante deste país. Sem a caixinha dois, não há mais corrupção. Sem corrupção, não há o que tributar. Sem o que tributar, a arrecadação cai de novo”.

Dra. Alice não entendeu. "Mas se a caixinha dois não é oferecida à tributação, fica tudo na mesma!" "E o que você pensa! Isto é uma mola propulsora da economia nacional. ISC veio por meio da emenda provisória. Enquanto não se descobre a caixinha dois, o imposto funciona. Quando todos descobrirem a segunda caixinha, faz-se outra emenda provisória. Com isso, provisoriamente, cresce o PPB, isto é, o produto provisório bruto da nação".

"Mas isto é uma grande maluquice!" Dra. Alice estava inconformada. "O senhor é um cínico!" "Não, minha cara, sou um homem prático. E reconheço até que o ISC tem de ser aperfeiçoado. No momento ele incide a uma alíquota única de 10%. Pois acho que devia ser progressivo: caixinhas maiores pagariam menos e as menores, mais". Dra. Alice ousou comentar: "Mas não é o contrário: quem tem mais pega mais?" “Não, pois deste modo haveria um desestímulo à produção, isto é, à corrupção, com sérios danos para a economia".

Esta fora demais. É por isso que o país não vai para frente. Ninguém pensa nada com um mínimo de sensatez. Sua indignidade ia crescendo, quando o homem, não satisfeito, arrematou: "Você é muito jovem. Falta-lhe experiência. Nestes tempos em que os ganhos da caixinha estão congelados é necessário inventividade, muita inventividade".

Neste momento, a Dra. Alice deixou cair o jornal de suas mãos e adormeceu.

Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 21.04.89, Caderno Opinião, A-3.