Tercio Sampaio Ferraz Jr.
Sobre Atos de Concentração.
O tema diz respeito à inteligência de conceitos de que se vale a Lei 8.884/94, em especial no artigo 54, para disciplinar o controle de atos e contratos. O mandamento legal fala em "prejudicar a livre concorrência", "resultar na dominação de mercados", que "o CADE poderá autorizar...", em "aumentar a produtividade", "melhorar a qualidade", em "benefícios distribuídos equitativamente", em não eliminação de "parte substancial" da concorrência, em "motivos preponderantes da economia nacional" etc.
Tais conceitos são obviamente vagos e ambíguos, isto é, designam diferentes objetos ou implicam entendimentos diferentes. Mas é com base neles que o CADE aprova ou desaprova atos de concentração. Aprovar (e desaprovar) são atos administrativos e, deste ângulo, põe-se a questão de se esses atos correspondem a exercício de poder discricionário ou vinculado.
A questão é particularmente importante quando se observa uma perigosa tradição na jurisprudência brasileira e até com base doutrinária para excluir do controle judicial o mérito dos atos discricionários, entendendo-se pôr mérito o conteúdo político do processo de realização da vontade estatal. Assim, no ato vinculado o mérito já vem esgotado pelo legislador, cabendo ao administrador apenas torná-lo efetivo. No ato discricionário o mérito é submetido ao juízo de conveniência e oportunidade do administrador.
A vagueza e ambiguidade de certos termos dão lugar a uma distinção entre conceitos indeterminados e conceitos discricionários. Ou seja, nem sempre o vago e ambíguo gera discricionariedade. Quando o conceito é indeterminado, apesar de vago e ambíguo, o ato com base nele é vinculado. A doutrina não é pacífica a esse respeito e a distinção entre conceito indeterminado e discricionário é disputada.
Diz-se indeterminado o conceito que, apesar de vago e ambíguo, admite determinação pôr meio de interpretação. Ou seja, o conceito é indeterminado mas não é indeterminável. Pôr isso, de uma interpretação que lhe dá uma determinação cabe recurso na pressuposição de que ele aponta para variáveis que, preenchidas, apontam para uma certa regularidade. Assim, a interpretação de um conceito indeterminado não se renova em cada ato de aplicação, mas em cada ato de aplicação fortalece um sentido que se estandartiza. Já o conceito discricionário não gera estandartização, mas a cada aplicação o sentido é sempre removido. Assim, pôr exemplo, entendo que o conceito de "dominação de mercado" é indeterminado, mas não discricionário. O mesmo se diga para a expressão "interesse público", ou para a expressão "bem comum". Já conceitos que envolvem valores são discricionários como é, pôr exemplo, o conceito de "justa causa", razão pela qual o legislador trabalhista foi obrigado a estandartizá-los normativamente, estabelecendo um elenco finito de sentidos.
No que se refere a atos administrativos, fala-se em discricionariedade técnica. A noção nasceu na Áustria, com Bermatzik, que entendia tratar-se "de atos que, pôr sua alta complexidade técnica, deviam ser retirados do controle jurisdicional". A noção conheceu um desenvolvimento maior na Itália, onde Alessi distinguia entre discricionariedade administrativa, cujos critérios de decisão puramente administrativos (pôr exemplo, a concessão de licença para uso de armas, um certificado de boa conduta), e discricionariedade técnica, que exige critérios técnicos, como, pôr exemplo, ordenar o fechamento de um estabelecimento pôr considerá-lo insalubre.
Aqui, no entanto, é preciso distinguir entre a impropriamente chamada discricionariedade técnica e a discricionariedade técnica própria. A primeira ocorre quando a lei usa conceitos que dependem da manifestação de órgãos técnicos, não cabendo ao administrador se não uma única solução juridicamente válida. Nesse caso o ato, embora com base em conceitos empíricos sujeitos à interpretação técnica, é vinculado. Pôr exemplo o CADE, para constatar prejuízo à concorrência de um ato de concentração recorre a critérios técnicos, como o de barreiras à entrada. "Prejuízo à concorrência" é aí um conceito indeterminado a ser interpretado tecnicamente. Já a discricionariedade técnica própria ocorre quando o administrador se louva em critérios técnicos, mas não se obriga pôr eles, podendo exercer seu juízo conforme critérios de conveniência e oportunidade. Pôr exemplo, os laudos técnicos recomendam o tombamento de determinado bem pelo seu valor cultural, mas em virtude de outros critérios (segurança, finanças etc) a autoridade opta pôr não realizá-lo. O que guia a decisão são conceitos que tomam sentido, renovadamente, em cada caso.
No caso dos atos de aprovação ou desaprovação de atos de concentração, entendo que se trata de atos impropriamente chamados de tecnicamente discricionários. Na verdade, o CADE, ouvida a SDE e a SEAE, com base (no) laudo técnico expresso pelo relator (ou pelo relator designado se o primeiro for voto vencido), toma uma decisão cujo fundamento técnico não expressa um juízo de conveniência e oportunidade mas uma vinculação a ditames legais referentes à proteção da livre iniciativa e da livre concorrência. Sua decisão, assim, não é ato político de governo, conforme diretrizes ocasionais, mas ato que cumpre uma política de Estado, conforme diretrizes constitucionais e legais.
Assim, se o Plenário reconhece que determinado ato de concentração aumenta barreiras de entrada mas, não obstante, reconhece também que há eficiências que tecnicamente compensam o prejuízo, sua decisão de aprovação é ato vinculado, não discricionário. A expressão legal "poderá autorizar" (art. 54, parágrafo 1º da Lei n. 8.884/9) é, na verdade, poder-dever e não poder discricionário.
Se tais atos são vinculados, a possibilidade de recurso ao Judiciário deve ser aprovada. O juiz há de apreciar o mérito da decisão e não apenas questões formais de competência e moralidade. Cabe-lhe, assim, examinar a solidez dos critérios técnicos embasadores da decisão. E isto mormente quando se atenta para o fato de que no capítulo do controle de atos e contratos estamos às voltas com um ato de intervenção do Estado no domínio econômico que pode atingir um direito fundamental, qual seja, a liberdade de iniciativa. Submeter a livre iniciativa, direito subjetivo fundamental, a uma discricionariedade, a um juízo de conveniência e oportunidade com base técnica, é submeter a liberdade à tirania da técnica, à tecnocracia. O CADE ao aprovar ou reprovar emite um juízo técnico, cuja validade jurídica exige a possibilidade de uma revisão quando um direito esteja sendo ameaçado.
Fonte: Revista do Instituto Brasileiro de Estudos das Relações de Concorrência e de Consumo, vol. 4, nº 6, III Seminário Internacional de Direito da Concorrência, Discricionariedade nas Decisões do CADE Sobre os Atos de Concentração, Trrcio Sampaio Ferraz Jr.
(Digitalizado e conferido por Gabriela Faggin Mastro Andréa)