Direito Subjetivo: Formação do Conceito e Limites Operacionais

Direito Subjetivo: Formação do Conceito e Limites Operacionais

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

Perfil Histórico do Conceito

O conceito de direito subjetivo, embora admita hoje uma descrição analítica bastante desenvolvida, conheceu, como todos os conceitos dogmáticos fundamentais, um longo processo de formação histórica. Nesse sentido ele está inserido numa das grandes dicotomias do pensamento jurídico — direito objetivo/direito subjetivo — cujas raízes são modernas. Os romanos, ao menos no sentido técnico atualmente emprestado à expressão, não conheceram a dicotomia nem o conceito (Coing, Zur Geschichte das Privatrechtssystems, Frankfurt 1969:29 ss.). Há certamente um uso da palavra jus que faz perceber um sentido subjetivo no sentido de atribuição de uma qualidade ao sujeito e que pode ser confrontado com lex, mas a dicotomia jus/lex, salvo por uma analogia muito imperfeita, não corresponde à dicotomia moderna subjetivo/objetivo.

A questão, porém, tem dois aspectos que, embora se interpenetrem, merecem ser distinguidos. De um lado está o problema da origem histórica do direito subjetivo enquanto instrumento técnico ao saber dogmático jurídico. De outro, o problema do surgimento do conceito a partir de condicionalidades sociais, econômicas, políticas, religiosas etc.

Na jurisprudentia romana, o termo jus referia-se difusamente tanto a elementos objetivos (normas e instituições jurídicas) quanto a elementos subjetivos (capacidade, autorizações, poderes etc.). Os romanos, contudo, não chegaram a aprofundar tecnicamente a distinção. Num fragmento de Paulus (Jus Civile dos Sabinus cit. por Coing. 1969:34) são mencionados três sentidos da palavra jus: direito natural, direito positivo, de uma determinada civitas e o lugar onde o pretor diz o direito. Percebe-se a ausência do que hoje chamaríamos de direito subjetivo: atributo de ou conferido a um sujeito. É claro que existem fórmulas romanas em que este último sentido aparece como é o caso da actio confessaria: “Si parte Aulo Agerio jus esse per fundum illvm ire agere”, em que há menção, de um lado, ao direito objetivo e, de outro, a uma autorização conferida a Aulus Agerius. Também a fórmula jus potestaque cogendi coercendi (Lex Quintia Aquaeductibus, século 8º a.C), ou jus nomini, jus crediti (D 20.4.19: D 4.2.13) é conhecida. Tais fórmulas, porém, não são trabalhadas tecnicamente. Como instrumental técnico, elas são secundárias em face do sistema romano das actiones mormente no período clássico e mesmo no período pós-clássico e no direito justinianeu, quando as actiones perdem relevância. Ainda no que se refere ao direito de propriedade como é o caso da Lex Aquilia, o dominium refere-se antes à relação do proprietário à coisa mesma e não a um direito. Também na célebre organização da matéria jurídica de Gaio, a noção de direito subjetivo não aparece, reportando-se ele apenas ao direito objetivo ad personas, ad res et ad actiones. Esta distinção refere-se aos objetos regulados pelo direito subjetivo e não constitui uma divisão de direitos subjetivos. A distinção entre direitos das coisas e das obrigações refere-se, por seu lado, às actiones. E nas raras vezes em que surge uma definição de direito subjetivo, como nos usus fructus de Paulus (D 7.1.1), trata-se de um conceito que não tem, tecnicamente, a força de um uso genérico.

De um ponto de vista sociológico (Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, Tübigen, 1976, II, Halbband, VII, Pat. 2º), é com o monopólio da produção jurídica pelo Estado, no seu aspecto formal, que aparece a idéia de um direito concreto como uma garantia de ação do indivíduo em face daquele monopólio. Esta garantia, num primeiro momento, tem um contorno meramente negativo, uma espécie de âmbito de não interferência, a chamada liberdade negativa ou de não impedimento, à qual, aos pouco, se acresce o sentido de capacidade de produzir direitos por meio de compromisso nas relações interindividuais. O não-impedimento assume, simultaneamente, a ideia de autonomia, enquanto função típica da expansão e da generalização do mercado. São três, pois, as condições a serem examinadas: o surgimento da liberdade contratual, o aparecimento da dicotomia sociedade/indivíduo e o advento do Estado moderno.

O Surgimento da Liberdade Contratual

Numa economia de mercado pouco desenvolvida, onde são pequenas as possibilidades de troca, a normativização jurídica se exerce por meio de proibições/obrigações relativamente difusas e a liberdade tem mais o sentido negativo que, em face daquela difusividade, aponta para um espaço correspondentemente estreito de possibilidades de ação. Crescendo a complexidade das trocas quer pela multiplicidade dos seus sujeitos, dos seus objetivos, quer dos seus modos, amplia-se a normativização por meio de normas permissivas expressas (autorizações), assinalando a importância de uma correspondente liberdade positiva.

A ampliação da liberdade positiva e o nascimento da noção moderna de direito subjetivo tem a ver com as transformações sofridas pela noção de contrato. Esta noção jurídica, em termos de uma convenção capaz de fundamentar direitos e deveres é antiga. Mas a base econômica sobre a qual ela se assenta traduz sutis diferenças (cf. Webei). Nas suas origens, o compromisso contratual tinha o sentido de uma alteração na qualidade do sujeito que se compromete. Por assim dizer, os pactos eram prerrogativas estamentais, dependiam da posição do sujeito no segmento social. Na verdade, a ideia de uma obrigação ex contracto não tinha o mesmo sentido atual, repou­sando antes no sentimento de culpa e de pecado (obrigação ex delicio). Nesse quadro, a liberdade positiva ou autonomia não era propriamente um atributo do sujeito, mas do seus status (status libertatis em oposição a status servitutis). Assim, por exemplo, nas suas origens, o mútuo, o empréstimo de coisas fungíveis, só se realizava entre irmãos ou entre membros do mesmo estamento e a sanção pelo inadimplemento tinha uma raiz mágica, uma espécie de quebra de votos capaz de gerar culpa e arrependimento na China, assinala Weber, o credor ameaçava o devedor inadimplente com seu suicídio.

Correspondentemente, nas mesmas condições, a ideia de processo judicial como uma disputa sob a proteção de um direito comum não chega a se desenvolver plenamente. A integração do indivíduo no segmento estamental faz do processo um procedimento de inclusão ou exclusão do sujeito em face do seu segmento, ou seja, aquisição ou perda do status. Entende-se, deste modo, que o devedor Inadimplente pudesse ser escravizado pelo credor, passando do status libertatis para o status servitutis.

A ideia de uma liberdade contratual tem a ver com o aparecimento dos contratos finalísticos, isto é, aqueles cuja estrutura é dominada pela relação meio/fim, em oposição ao contrato estamental cuja estrutura se funda neste complexo indiscernível manifestado no status. No contrato finalístico ocorre uma espécie de neutralização do status e a troca passa a ser encarada como alteração na posse de bens, isto é, como uma relação de negação de posses e de sujeitos: o bem do A passa para B, tornando-se uma situação negada para A e afirmada para B. Esta mudança depende do aparecimento e da extensão adquirida pela economia monetária, posto que a moeda neutraliza a magia das relações estamentais. Isto significa a possibilidade de diferenciar-se o sujeito de sua posse, coisa impossível de conceber-se no contexto estamental, posto aí a posse decorre imediatamente da pertinência ao estamento, sendo também impossível a ideia de uma apropriação individual e, em consequência, a ideia de pretensão processual, como era desenvolvida pelos processualistas alemães no século XIX.

A diferenciação entre troca de posse e sujeito da troca cria a possibilidade de um processamento dos delitos, de tal modo que a sanção pela inadimplência e a própria inadimplência deixam de ser concomitantes — por exemplo, a inadimplência gerando o remorso ou a impureza (inadimplência como culpa e culpa como pecado) —, para surgir ao cabo de um processo, o que já mostra um certo finalismo. Na verdade, as formas mais antigas do contrato finalístico desenvolvem-se a partir de processos judiciais, (caso expressivo do penhor) o que também contribui para uma racionalização e dessacralização da culpa. Obviamente, o surgimento de uma liberdade contratual finalística não é razão suficiente para o aparecimento da dicotomia direito objetivo/direito subjetivo, o que explica sua ausência no Direito Romano. Neste, a liberdade contratual foi sendo consagrada por meio de direitos especiais e não de um direito comum. Esses direitos (jus civile, jus gentium) eram, originariamente, estamentais e mesmo com uma incipiente economia monetária e uma diferenciação entre posse e sujeito, qualquer direito no sentido subjetivo sempre aparecia como um "privilégio" estamental direito do cives, provocando uma espécie de coincidência entre o que hoje chamamos de direito subjetivo e objetivo: o jus atribuído ao cives era o jus civile e o cives era a condição estamental para que houvosse um jus civile.

Mas o surgimento da noção de direito subjetivo vai exigir um segundo fator de ordem social: o aparecimento da dicotomia sociedade/indivíduo, com a diferenciação entre decisão e acordo, resolução soberana e contrato, que nos conduzirá a um terceiro fator, do ordem política: o surgimento do Estado moderno.

O jus civile era, pois, o direito do cidadão romano na medida em que ninguém, salvo o cives ou alguém que por força do uma assimilação contratual estamental a ele se equiparasse, podia comparecer, como parte, perante um tribunal romano. Nenhuma lex romana, portanto, valia fora do âmbito da cidadania estamental. Assim mesmo, a possibilidade, em períodos posteriores, de emprego do jus civile nas relações entre romanos e estrangeiros não decorria do estatuto civil (lex), mas da competência do pretor peregrino. Não era, porém, essa mesma competência que justificava o emprego, mais tarde, do jus gentium, mas o desenvolvimento do comércio internacional que, presumidamente, era garantido apenas pelos juramentos, o que explica o aparecimento tardio, como conceito jurídico, da bona fides. A Lei das XII Táboas falava de improbidade e de infâmia. Uma generalização da boa fé vai aparecer apenas no período imperial, quando os diversos esquemas processuais do jus civile, por meio dos pretores, passam a ser aplicados indiferençadamente aos não-cidadãos, inicialmente, pela fórmula si cives romanus esset. Assim mesmo, o jus gentium nunca se identificou plenamente com o direito pretoriano, explicando-se, deste modo, que o direito privado romano nunca se roduziu ao jus civile.

A ideia, posterior, de uma criação do direito comunitário independentemente da pertinência do destinatário à comunidade ocorre, porém, pela transformação da forma de tratamento jurídico das diferentes comunidades enquanto suportes de direitos próprios. Esta nova técnica de tratamento tornou-se indispensável quando a apropriação de objetos patrimoniais passa a ser atribuída às comunidades e generalizadamente aos seus membros. Contudo até o desenvolvimento do direito das corporações na Idade Média, permaneceu a ideia e a prática de que qualquer um que não tivesse participação nas resoluções corporativas não estaria a elas vinculado com a consequência de que a eficácia jurídica externa de um ato exigia esta participação, com essa precedência da corporação sobre o indivíduo. A diferença entre a resolução (corporativa) e a celebração contratual permanecia difusa. Não surgia, portanto ainda a distinção entre normas objetivas e pretensões subjetivas. Não obstante no direito corporativo já estava, esquematicamente, o esboço da noção de direito subjetivo em oposição ao objetivo.

Para esclarecer a razão pela qual só na Idade Média a dicotomia subjetivo/objetivo começa a desenvolver-se requer-se a considera­ção das alterações sofridas pela relação entre o público e o privado. Conforme nos mostram os trabalhos de H. Arendt ("A Condição Hu­mana", São Paulo, 1981, pág. 31), a separação entre a esfera públi­ca e a privada na Antiguidade tinha uma peculiaridade. A esfera pri­vada compreendia o reino da necessidade àquela atividade humana cujo objetivo era atender às exigências da condição animal do ho­mem: alimentar-se, repousar, procriar, etc. A necessidade coage o homem e exige dele labor ou labuta. O labor ou labuta distingue-se do trabalho, pois tinha a ver com a atividade ininterrupta na produção de bens de consumo, isto é, daqueles bens que eram integrados ao corpo após sua produção. A produção desses bens exigia instrumentos que se confundiam com o próprio corpo, como os braços e as mãos, ou eram extensões do corpo, como o cutelo e o arado. O homem que labuta era o animal laborans. O lugar da labuta era a casa domus oikia, donde vem economia (de oiko-nomos). A casa era a sede da família e a relação entre seus membros era baseada na diferença: relação de comando e obediência donde a ideia pater famílias. Senhor de sua mulher, seus filhos, seus escravos, constituía a esfera privada. A palavra privado tinha aqui o sentido primário de privus, do que é próprio. Não em termos de riqueza, mas de um âmbito de enraizamento, o lugar da necessidade, dentro do qual o homem ocupava o seu espaço vital. Nesse espaço ninguém era livre nem mesmo o senhor, pois todos estavam submetidos a mesma necessidade. Não se cogitava da liberdade como vontade livre enquanto uma qualidade interior do indivíduo.

Poder evadir-se desta condição era privilégio de alguns: o cidadão ou cives. Daí a ideia da emancipação, de filho ou escravos. Só estes adquiriam liberdade, mas num sentido peculiar à Antiguidade: o status de pertinência à polis, à civitas, que lhes permitia agir, é, comunicar-se como iguais entre iguais. Como a ação, do mesmo modo que o labor, era um contínuo, sem fins predeterminados, bem ela guardava uma característica de futilidade. Com uma importante diferença enquanto o regulador da labuta era a própria necessidade (labutar até a morte era um contra-senso, pois eliminava a vida, suprema necessitas), o regulador da ação era a virtude: com lealdade, justiça, coragem, etc. A esfera do agir marcava o encontro dos homens para o exercício do governo, que não visava, hoje, a uma utilidade (o bem-estar, a sobrevivência honrada) mesmo um limite imposto por necessidade (o mínimo existencial), mas realizava o justo moral. Esta era a esfera do público, donde a noção de animal político (politicon zoon).

A distinção entre o público e o privado, na Antiguidade, é mais uma razão para entender-se por que a dicotomia subjetivo/objetivo não se manifesta. Ela explica, ao revés, como foi possível ao Direito Romano prescindir de um conceito jurídico geral como o de direito subjetivo, posto que, na esfera pública, o cidadão, participe de auto-governo goza de um "privilégio" (no sentido social, não jurídico): ele é sujeito do jus civile e enquanto tal, ele participa do governo. Não há propriamente uma contraposição entre os seus "direitos" e a civitas: a distinção entre o jus publicum e o jus privatum não significa oposição entre normas objetivas do governante em face de limites de subcomissão, do governado visto que o direito privado tanto como o público são ambos o reflexo heteronômico das restrições sagra­das ao comportamento. Mesmo as controvérsias privadas entre ci­dadãos não tem por fundamento, um "direito" originário, mas uma injúria (num sentido sagrado impureza). A vindicatio romana por exem­plo não é assim uma reivindicação no sentido da propriedade moderna, mas um ato processual estamental, isto é, uma questão em torno da pertinência à comunidade dos cidadãos (civitas) por força da posse do solo (fundus significando aproximadamente membro da comunidade comunitária cujo correspondente em grego é kleros).

Esta distinção entre o público e o privado perde nitidez na Ida­de Média. H. Arendt nota uma sutil diferença na tradução que faz Santo Tomás da expressão aristotélica politicon zoon por em latim, animal sociale. A noção de social em lugar de político sinaliza uma mudança, posto que social, ao contrário de político cabe tanto à es­fera pública, quanto à privada: o âmbito da família é tão social quanto o do governo. Estava aberto o caminho para uma nova dicotomização: sociedade e indivíduo. Simultaneamente ocorre uma progressiva as­similação da ação (actio praxis) pelo trabalho, tipo de atividade ca­racterizada pela sua estrutura finalística: trabalho enquanto fazer, produzir para atingir um fim, ao cabo do que a atividade se encerra. O fazer traz uma nota de violência — da madeira da árvore cortada se faz mesa. O fazer antigo, porém, era um domínio sobre coisas, relação que ainda se conserva na figura do mestre em relação ao artífice nas corporações de ofício (o mestre não era o dominus do aprendiz, mas o senhor das técnicas). Transportada para a política, contudo introduz-se a ideia de governo como subordinação: suserania e vassalagem donde o aparecimento da noção de soberania como domínio sobre homens que não são rés (Foucault, Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, 1982).

A distinção entre sociedade e indivíduo, contudo, não se instala genérica e plenamente na Idade Média, razão pela qual a separação entre resolução ou decisão e contrato não chega a delinear-se. Em tese, ela estava já presente na ideia de que a estatuição do direito pela corporação só vinculava os membros, isto é, quem dela partici­passe, o que teria conduzido à noção de que a decisão majoritária impõe deveres à minoria. Mas para que isto acontecesse, seria ne­cessário um outro fator: o aparecimento da organização, da noção de órgão e suas funções e, como isso, da personalização jurídica das comunidades corporativas. No direito medieval, o conceito de soberania e a relação entre corporação e seus membros ficam ainda submetidos a fundamentos sagrados. Só quando o desenvolvimento de relações mais complexas no interior das corporações começa a exigir a regulação de pertinência do indivíduo a mais de uma delas, pondo a descoberto o problema da organização interna e, em conse­quência da possibilidade de apropriação dos meios de organização — apropriação do órgão como condição de poder — é que se abre o caminho para a dessacralização do direito, cuja racionalização põe às claras a oposição entre indivíduo e sociedade enquanto uma di­cotomia genérica. A possibilidade desta generalização pressupõe a personalização do indivíduo como ser livre.

Facultas Agendi: O Papel do Livre Árbitro

Portanto, para mostrar como a noção de direito subjetivo ganha os seus contornos modernos é preciso identificar mais detalhadamente a transformação sofrida pela ideia de liberdade e o seu papel na dicotomia de origem medieval facultas agendi/norma agendi. A tese é de que a noção cristã de livre arbítrio está na base da forma­ção tanto da soberania do poder quanto do conceito de direito subjetivo. Comecemos, contudo, pelas distinções técnicas do saber jurídi­co medieval.

Para os glosadores medievais como se sabe, o corpus juris civilis foi tomado como texto dotado de autoridade materialmente racional e submetido a análises metódicas dentre as quais só destaca a filológica, sobretudo, gramatical. Os glosadores, porém por força da confluência da ideia da Roma religiosa (sedes Petri) e da recepção do corpus como ratio scripta não tiveram um sentido para a distância histórica na análise dos textos (cf. Paul Koschaker. Europa und das roemische Recht, Muenchen/Berlin, 1966, págs. 48 e ss.). Seu empenho de organização sistemática os conduziu a uma visão anacrô­nica, meramente lógica e prática dos problemas (na verdade, o mé­todo era mais causuístico do que sistemático: não obstante os glosa­dores, ao organizarem topicamente a matéria jurídica na forma de monografias — tratactus — estimularam as preocupações sistemáti­cas — Koschaker, pág. 90). Isto, porém, produziu uma importante mudança fundada ademais na relativa independência política da que passaram a gozar os glosadores da Escola de Bolonha em face dos imperadores alemães provocando uma independência de pensamento de importantes repercussões na obra dos humanistas (Koschaker, págs. 73, 117).

Nessa perspectiva é que foi introduzida uma significativa distin­ção entre actio e jus que aparece claramente na glosa quam jus ás Instituías 4.6 pr. "Nota quod actio est jus, quo persequimur sed obligatio est jus, propterquod persequimur". Veja-se que nesta glosa surge um uso subjetivo de jus, no sentido de uma capacitação mate­rial — jurídica como de actio (obligatio est causa et mater actions — glosa actio autem). Os glosadores valiam-se aqui da conhecida dis­tinção aristotélica entre causa formal e material (causa materialis como aquela quae explicat quid res sit), mostrando que por de trás da actio haveria um elemento subjetivo determinante do conteúdo essencial e da individualidade da ação (Coing, 1969: 40). O fator subjetivo aparece com a causa próxima da ação enquanto a situa­ção de fato seria a sua causa remota na linguagem escolástica. A partir desta concepção genérica os glosadores foram conduzidos a distinções complicadas entendendo por exemplo que a actio Publicana se reportaria a um dominium utile enquanto um elemento subjetivo, o que valeria em especial para a dicotomia jus reale/jus personale, ain­da que jus reale não chegasse de Bartolus para o direito de proprie­dade: jus de re corporali perfecte disponendi nisi lege prohibetur.

Não obstante, os glosadores não chegam a um conceito geral de direito subjetivo, suficientemente genérico para aplicar-se como instrumento de sistematização do direito. Faltou-lhes a incorporação no saber jurisprudencial de uma noção que se desenvolvia na filoso­fia escolástica, cujo alcance, porém, não foi percebido para efeito de elaboração das técnicas jurídicas. Trata-se do conceito de liberdade como livre arbítrio.

Na antiguidade, a liberdade entendida como o status do cida­dão que o capacitava a mover-se entre seus concidadãos, era prece­dida de uma liberação das peias das necessidades vitais. O estado de liberdade não se seguia porém automaticamente desta liberação. Spartacus, nesse sentido, jamais foi livre mas continuou regido pe­las condições do status servitutis. Faltou-lhe o espaço público politi­camente assegurado.

Certamente há, por exemplo, em Platão uma consideração importante do fenômeno da solidão da noção de que o homem solitário não é um mas dois em um, donde a insistência num dualismo entre alma e corpo pelo qual a faculdade humana do movimento é atribuída à alma, que move o corpo e move a si mesma. Mas a luta entre ambos era a contenda entre razão e paixão entre entendimento e thymós e não uma luta dentro da própria vontade. A vontade era marcada pelo desejo irresistível que marcava a paixão e o propósito da moral platô­nica era o domínio da paixão pela razão. Com a filosofia medieval, sobretudo com Agostinho, esta luta passa a ser uma característica da própria vontade que quer e não quer simultaneamente. Isto conduziu a Idade Média a uma oposição desconhecida na antiguidade entre querer e poder. Para os antigos desejar o impossível não fazia sentido donde a importância da virtude por meio da qual querer e poder se afinavam da maneira adequada, razão pela qual cabia ao rei — filóso­fo —­­ o governo da polis ou ainda a razão pela qual Sócrates insistia que a virtude era uma espécie de conhecimento. Já no pensamento medieval, a possibilidade de querer e não poder torna-se uma experiên­cia admissível. Vontade, força de vontade, vontade de poder já são noções que pressupõem que a vontade é a sede do poder que o poder não está na natureza das coisas, mas no próprio querer. Desta forma a reunião entre poder e querer união rompida por um ato externo, pela imposição da vontade de alguém sobre a vontade de outrem torna-se um alvo político. Livre no interior da vontade significa poder querer ou não querer. Por um ato externo a vontade de outro, este poder é sepa­rado do querer em termos de sua exteriorização. Assim, o homem submetido a uma tirania deixa de ser livre politicamente, ainda que conserve uma liberdade interna: liberdade moral oposta à liberdade políti­ca. Como a liberdade moral faz parte essencial do ser humano, — o homem como ser livre —, ela pode ser generalizada como conceito, base da concepção de pessoa humana. Como essência humana ela funciona como parâmetro ético da liberdade política e jurídica, que pode ser restringida, conquistada, ampliada. Destarte, a identificação de liberdade com livre arbítrio torna-se condição para pensar o direito subjetivo como autorização originária inerente à pessoa humana e o poder que lhe é próprio, nas relações interindividuais, como Imposi­ção a ser politicamente regulada (poder como governo sobre os ou­tros e direito subjetivo como capacidade assegurada de resistir à opres­são dos outros).

A presença desta noção de liberdade como livre arbítrio introduz-se plenamente no conhecimento jurídico no princípio do Renascimento. No século XVI, começa um movimento de interpretação corpus juris em que se busca distinguir entre o entendimento sistemático das fontes romanas e o seu entendimento histórico-cultural. Isto cria, para o saber jurídico, uma condição de independência crítica e a possibilidade de formulações sistemáticas mais ousadas. Explica-se assim a proposta de Donellus (Commentatorium juris Civilis Libri) que constrói todo o direito privado como um sistema de direitos subjetivos materiais. Partindo da famosa concepção de jus suun cuique tribuere propõe ele uma definição genérica de direito subjetivo em termos de ea quae sunt cuiusque privatim jure tamen illi tributa e especificamen­te, como facultas et potestas jure tributa (apud Coing, 1969: 43). Note-se a presença das expressões facultas e potestas a denotar qualalidades subjetivas. Com isso, Donellus reinterpreta a dicotomia direito público/direito privado em consonância com a ideia de suum cuique tribuere entendendo o jus privatum em termos de jus quod privatis et singulis quod suum est tribuit. Por conta disso, o Direito Privado passa a ser teoria dos direitos privados individuais. Abandona ele assim a classificação de Gaio que se preocupava com actiones reduzindo estas a mero remedium de proteção dos direitos subjetivos. Sua classifi­cação tem por ponto de partida o quod nostrum est que se divide em quod vere et proprie nostrum est, subdivido em in persona cuiusque e in rebus externis, e quod nobis debeatur, subdivido em ex contractu e ex delicto, e assim por diante.

O Fator Político: o Estado Burocrático e a Liberdade Individual

A classificação de Donellus e sua concepção de direito subjeti­vo como faculdade e poder atribuído pelo direito ao indivíduo sobre aquilo que lhe pertence não só incorpora a noção de livre arbítrio como essência humana, como também exige uma clara distinção entre a personalidade comunitária e a personalidade individual. A homogeneidade da personalidade comunitária é garantida pela or­ganização, e como tal, se destaca de seus membros as pessoas morais. Esta distinção cria condições para uma outra subsequente, entre a vinculação do comportamento derivada do estatuto social e a derivada do compromisso contraído, base para uma concepção ra­cionalizada da diferença entre objetivo e subjetivo. Na verdade a ideia de uma personalidade comunitária divide a esfera jurídica em duas metades uma referente aos seus membros e outra referente a ela própria, enquanto organismo que se exprime por meio de certas e determinadas pessoas que não agem na plena individualidade da sua essência, mas conforme o estatuto. A concepção do Estado, na era moderna, traz os mesmos traços originais. O desenvolvimento de relações juridicamente ordenadas para uma sociedade do tipo contratual e para o próprio direito como liberdade contratual e em especial para configurações jurídicas da ideia de autonomia autori­zada por regulamentos resulta assim do enfraquecimento da noção de vinculação por força de um estatuto difuso, sagrado e do cresci­mento da liberdade individual. O resultado desta liberdade é, então, a abertura de oportunidades para aproveitar-se o indivíduo do emprego inteligente da posse de bens no mercado sem limitações juri­dicamente externas para conseguir poder sobre outros indivíduos. Este poder assume a forma jurídica de uma autorização pré-constituída, fundada na própria liberdade formalmente acessível a qual­quer um de fato à disposição daqueles que detêm bens. Em conse­quência, temos uma organização política caracterizada por uma descentralização do poder para efeitos de produção de normas jurí­dicas que obrigam quem se compromete, mas que exigem uma es­trutura global abstrata de coordenação: o Estado.

Contudo, o crescimento desta liberdade formal não impede, mas fortalece, a exigência de um poder central com força coativa superior. Quanto mais o aparelho de dominação dos príncipes exige a consti­tuição de uma atividade mediadora, a burocracia funcional, tanto mais racionalmente processualizada se torna a produção e a imposição formal do direito. Isto se manifesta numa espécie de paradoxo entre a exigência de um formalismo abstrato e da garantia de conteúdos materialmente específicos, a garantia de um máximo de flexibilidade para a ação livre e em especial, para a busca racional da realização de interesses individuais. A exigência desta garantia muda a ideia mesma de processo que na antiguidade ligava uma forma a um con­teúdo e que agora cria uma forma aberta a qualquer conteúdo: direi­to de ação. Isto esclarece o aparecimento do aparelho judicial como uma máquina tecnicamente racional a serviço do cálculo sobre as chances de busca e concretização da ação econômica no mercado. A jurisdição toma a forma de uma administração da justiça, garantia de direitos subjetivos e ao mesmo tempo pressuposição não apenas de normas objetivas mas de direitos objetivos dos quais aqueles deri­vam: os direitos naturais racionais. A dicotomia direito objetivo/direito subjetivo adquire seu sentido operacional.

Importante para essa caracterização é ainda o reconhecimento da dicotomia jus et leges que se impõe no período das monarquias absolutistas (cf. Koschaker, pág. 96, nota 4), e que ao princípio significou uma oposição entre o conjunto dos escritos dos antigos juristas romanos (direito privado) e a produção legislativa dos monarcas que passava a desenvolver-se mais amplamente, no início porém com poucas normas dedicadas ao direito privado. A dicotomia não equi­valia à oposição direito subjetivo/objetivo (o jus dos antigos juristas era tomado como "objetivo" tanto quanto a produção dos monarcas), mas favoreceu a elaboração da noção de direito subjetivo em oposi­ção ao objetivo. Isto ocorreu na medida em que a antiga noção de jus commune, que correspondera ao direito dos juristas romanos em oposição ao direito estatutário de cada comunidade, foi paulatinamente absorvida pelas leges absolutistas. Aquele jus commune sig­nificara a possibilidade de um direito (objetivo) que se sobrepunha às normas de cada comunidade, mesmo porque até a interpretação destas passava a guiar-se por ele. Com a absorção do espírito do jus commune pelas leges absolutistas a generalização (política) de um direito objetivo capaz de garantir "direitos" de todos tornou-se uma ideia possível.

Direito Subjetivo e Autonomia Individual

Na sequência deste desenvolvimento histórico a dogmática jurídica do século XIX vai entender o direito subjetivo, em oposição ao objetivo, como campo de ação livre do indivíduo, correlacionado ao reconhecimento intersubjetivo dos demais membros da sociedade, e nesse sentido como o "poder (Macht) à disposição de cada pessoa, singularmente um campo em que a sua vontade domina e com a nos­sa concordância domina" (Savigny, System dês heutigen roemischen Rechts, 1840, vol. l, par. 40). Nestes termos, como algo per se legiti­mo, porque parte da inviolabilidade da pessoa, da livre afirmação da vontade individual, portanto como um campo garantido (pelo direito objetivo) de domínio independente (Savigny, op. cit. par. 53).

Esta pretensão de uma vontade individual livre em face dos demais indivíduos é reafirmada por outros autores, independente­mente das diversas correntes que se formam para explicar a noção de direito subjetivo. Assim Puchta (Cursus der Institutionen, 1865, par. 40) vai falar do direito (em geral) como o reconhecimento da liberdade que se atribui, genérica e igualmente, aos homens como sujeitos do poder de vontade. Tecnicamente o direito subjetivo é visto, então, como direito de negar a interferência externa em um campo próprio de ação (a própria vida, a própria propriedade, a própria dis­ponibilidade), ou seja como direito de pretender a omissão de inter­ferência indevida.

Decisiva nessas concepções é a afirmação da autonomia do sujeito individual. Isto significa, na verdade, a afirmação da unicidade do singular, do sujeito enquanto indivíduo livre, por si e para si, por­tanto, do livre arbítrio como um universal que peculiariza o homem diferente e único perante os demais seres humanos e simultanea­mente igual a todos. Esta igualdade, porém, em face da precedência do individual concreto sobre a essência abstrata (nominalismo), não esconde a sua fragilidade. A afirmação do individual concreto leva, de fato a uma perda da homogeneidade comunitária (cada um é cada um, por si e para si: quem é para todos e por todos?), o que reforça a função desta poderosa abstração da era moderna: o Es­tado burocrático.

O Problema da Liberdade na Concepção de Direito Subjetivo Público

Jellinek: Freiheit como expressão de status negativus (System dor subjektiven óffentlichen Rechte — 1892, ed. 1963) trouxe para a relação entre direito subjetivo e liberdade a por ele denominada teo­ria do status, isto é, da posição do ser humano em face do Estado: o cidadão não apenas como alguém submetido à sua soberania mas, por força de reconhecimento, sujeito dotado de personalidade, don­de dotado de deveres e direitos em face do Estado. Esta posição, derivada de sua qualidade de membro do Estado (Staatsglied), é o seu status.

O conteúdo do direito à liberdade (um bem ou um interesse) conferido por força da pretensão protegida juridicamente é assim a omissão de interferência, pelo Estado, na esfera de liberdade do in­divíduo ou seja, o bem ou interesse equivale à ausência de medidas pelo Poder Público que caracteriza tal interferência, donde juridica­mente a liberdade protegida identifica-se com "esfera de liberdade".

Como entender essa esfera? Aí entra o status negativus. Se o próprio Estado está submetido à ordem jurídica então a subordina­ção do indivíduo ao Estado deve estar limitada àquilo que a ordem prescreve. Ora, aquilo que resta ao indivíduo subtraídas todas as limitações jurídicas estabelecidas para a ação individual constitui sua esfera de liberdade.

A liberdade é, pois, uma situação caracterizada pelo fato de que ela não é juridicamente normatizada, razão pela qual Jellinek vai chamá-la de "liberdade natural" (pág. 95). Só que, a liberdade perde o caráter de conceito jurídico: ela passa a se identificar com as ações irrelevantes dos sujeitos para com o Estado.

Contudo, se liberdade nesse contexto, é definida como "possi­bilidade de atividade individual", mas no sentido de "não importa que atividade" (Beliebigkeit— indiferença), então estamos diante de um uso da palavra que não fornece nenhum padrão/medida daquilo que o indivíduo está legitimado a opor em face do Estado. O vazio subs­tantivo salta aos olhos! Ou seja, nem mesmo o conhecido topos da "liberdade dada se limita pela liberdade do outro", do qual resulta a expectativa juridicamente protegida de omissão e de tolerância, cabe aqui, pois fica sem explicação o que o indivíduo faticamente pode fazer. Ou seja, não se esclarece em relação a que se espera omis­são ou tolerância! O que se percebe é que a posição de Jellinek acaba afirmando uma tautologia: o homem tem direito à liberdade porque é livre e é livre porque tem direito à liberdade, ou, nas pala­vras de Jellinek: "O indivíduo não deve ser levado pelo Estado a ne­nhuma prática ilícita e tem por isso uma pretensão que repousa so­bre o reconhecimento de sua liberdade, a omissão e a eliminação de comandos obrigatórios que excedam essa norma. Toda liberdade é simplesmente, liberdade de coação ilícita" (pág. 103).

Em consequência, o conteúdo da pretensão inerente ao direito subjetivo de liberdade corresponderá inteiramente ao princípio da legalidade estrita da administração e ao lado judiciário da proibição da interpretação contra legem.

Se deste modo, Jellinek consegue dar à "liberdade natural" um certo contorno jurídico ao menos do lado das vinculações a que o Estado se sujeita, por sua vez ficava mais claro que o conceito de direitos de liberdade para ele não tem nenhum conteúdo normativo próprio e independente.

A influência de Jellinek no Direito Público foi muito grande. A dogmática constitucional atual porém tendo-se apercebido dessas dificuldades e mais da superação da tese de Jellinek de que toda liberdade é simplesmente liberdade de coação ilícita, pois nas Cons­tituições modernas o poder legislativo deixa de ser o intérprete auto­rizado das normas constitucionais, tende a minimizá-la. Contudo, per­manece a liberdade como aquele campo de ação do indivíduo que, abstração feita das possibilidades limitativas permitidas ao Estado, fica ao seu autônomo critério.

Para Forsthoff ("Reschtsstaat im Wandel", pág. 222), por exem­plo, os direitos subjetivos fundamentais, a liberdade da pessoa, a igualdade, a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão, a liberdade de associação e de reunião, a garantia da propriedade e do direito de herança — todos os direitos fundamentais clássicos — são delimitações, isto é, formas de erigirem-se áreas, diante das quais o poder estatal deve parar.

Ou seja, a delimitação passa a ser da própria constituição e não mais da lei, mas estruturalmente o conteúdo do direito subjetivo — a liberdade — continua o mesmo: vazio substancial! ("conjunto das ações juridicamente irrelevantes do indivíduo" — Jellinek).

Nesse sentido, Carl Schmitt vai falar, na sua teoria do Estado de Direito burguês (Unbegrenzheit), em princípio, da liberdade, da limitação (Begrenzheit), do exercício estatal do poder (Verfassungs-lehre, pág. 126). À diferença de Jellinek, Schmitt afirma existir um limite absoluto à possibilidade de conformação jurídica do legislador, que o impede de eliminar o "direito de liberdade como tal". O que isso significa, porém, fica sem resposta!

Direito Subjetivo: Ser Livre ou Ter Algo

Segundo a doutrina dominante — privatista — há na noção de direito subjetivo o relacionamento de um sujeito, dotado de querer/poder (facultado) sobre um objeto (res/persona), com garantias de suas pretensões.

A liberdade como querer/poder é um poder-querer enquanto possibilidade de agir (disponibilidade) sobre um objeto (res/persona).

A doutrina distingue, então, na estrutura normativa do Direito Subjetivo dois aspectos, a saber:

a) positivo: o poder sobre algo (res/persona), isto é de atuar sobre algo;

b) negativo: capacidade de excluir outros.

O aspecto positivo é o cerne da liberdade e a "visibilidade" do livre arbítrio como substância está nesse poder dispor sobre algo, o que é muito mais concreto nos direitos reais é mais complicado nos direitos pessoais. Aqui se percebe como se dá a hipostasia da relação em substantivação, donde segue que a liberdade como poder dispor se revele na coisa sobre a qual se dispõe: o ser livre se mostra no âmbito da res isto é, ser livre e ter algo se identificam.

Essa identificaçao é reforçada pelo aspecto negativo, que res­salta o papel das funções de proteção das pretensões que no entan­to, tem apenas uma função instrumental: a função positiva é que fun­da a função negativa e não ao contrário (este é justamente o proble­ma da liberdade nos direitos subjetivos públicos, em que as funções se invertem). Ou seja, a possibilidade de excluir terceiros repousa na relação poder/querer como algo: res/persona, donde a negatividade (status negativus) ser consequência e não causa da liberdade.

Em suma, a liberdade, assim encarada como livre arbítrio individual, elemento básico da estrutura conceitual de direito subjetivo, mera potencialidade ou disponibilidade atual, só ganha contornos em face de conteúdos normativos (obrigações, proibições de agir, dever de suportar), donde a disponibilidade absoluta como mera hi­pótese de um estado natural e a sociedade civil como limitação da disponibilidade absoluta.

No caso de direitos pessoais a afirmação substancial da liber­dade é mais complicada. Na sua estrutura temos:

a) sujeito favorecido (livre) versus sujeito restringido na sua liberdade (erga omnes);

b) conteúdo: faculdade de restringir;

c) objeto ou bem jurídico: persona? ou seja, a questão que aqui se põe é: qual o âmbito de ação (de restringir)?

A saída (Ihering) é ver no objeto um interesse e com isso salvar a liberdade como âmbito de disposição livre do sujeito, isto é, a liber­dade está no interesse do sujeito favorecido ao qual o outro (persona) se submete.

Como, porém, o topos interesse é também pura relação (interesse) é óbvio que a liberdade, no caso dos direitos pessoais como substância, é mais difícil de ser sustentada.

A teoria privatista do Direito Subjetivo, porém, sempre sentiu a opacidade do conceito de liberdade quando enfrentou o problema da afirmação do Direito Subjetivo como entidade a se perante o Direito Objetivo.

Assim, por exemplo, a teoria de Thon (Rechtsnorm und Subjektives Rechts, 1978) — teoria da garantia.

Para fugir ao naturalismo psicológico que inviabilizava a vonta­de livre como núcleo do Direito Subjetivo, Thon propõe que este está na possibilidade de fazer efetiva a garantia de proteção da situação subjetiva, donde todo impedimento que derivando da liberdade (condição essencial), torne impossível a coexistência das liberdades, deve ser removido pela faculdade (conferida regulada!) jurídica de coagir outrem. Assim, o Direito Subjetivo pressupõe a liberdade mas consiste nessa garantia conferida pelo direito objetivo que atua quando a liberdade é violada.

Aqui a liberdade se torna porém, um pressuposto ante-jurídico que só adquire juridicidade na medida em que é reconhecida com objeto de proteção pelo Direito Objetivo.

Aqui fica no ar a questão: que é então esse pressuposto por si?

Assim se a liberdade é afirmada como a possibilidade de atuação individual, como o que resulta após retirada de todas as limitações legais, esse o que resulta torna-se uma substância que se identifica com o patrimônio, ou melhor, com o ter um patrimônio, donde a ilusão do vazio substantivo se preenche pela concretude da res patrimonialis!

Fonte: FERRAZ JR., Tércio Sampaio. “Direito Subjetivo: Formação do Conceito e Limites operacionais”. In: O Direito Internacional no Terceiro Milênio. "Estudos em homenagem ao Professor Vicente Marotta Rangel" . 1ª ed., São Paulo: LTR, 1998, p. 45-61.

Texto organizado e corrigido por: Victor Alexandre El Khoury M. Pereira.