Das condições de obrigatoriedade de comunicação de atos de concentração

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

1. O processo administrativo de comunicação de atos de concentração principia na Secretaria de Direito Económico. Esta, por reiteradas vezes, tem manifestado sua posição de que, se não há, na operação, reflexos na estrutura do mercado, inexistindo a potencialidade de prejuízo à concorrência, o ato não se enquadra nos pressupostos do art. 54 da Lei 8.884/94, devendo o pedido de exame ser arquivado, mesmo que uma das partes tenha faturamento anual superior a R$ 400 milhões.

2. O CADE, a quem a SDE tem de recorrer de ofício, começou a entender, há algum tempo, que, havendo faturamento anual de uma das partes igual ou superior a R$ 400 milhões, o pedido não deve ser arquivado, mas examinado.

3. Assim, por exemplo, no caso SHV Energy N.V. e MINAS GÁS S.A.; sendo a primeira uma empresa holandesa de distribuição de gás liquefeito, que não atua no Brasil e a segunda uma empresa brasileira, o CADE reformou a decisão de arquivamento da SDE e determinou o seu prosseguimento, com base no faturamento de uma das empresas, superior a R$ 400 milhões.

4. O CADE, deste modo, tem tomado a condição referente ao faturamento como uma regra absoluta que obriga à submissão do ato a exame.

5. Este é o tema que desejo discutir neste trabalho. Até agora, nenhuma empresa contestou a posição do CADE até porque os casos foram, no mérito, deferidos favoravelmente.

6. Desconheço se há casos de empresas que não comunicaram um ato de concentração e, tendo sido autuadas, tivessem sido, por causa do faturamento, obrigadas a comunicar, sendo condenadas em multas por atraso na comunicação, tendo da condenação recorrido à Justiça.

7. O objeto da norma contida no caput do art. 54 é bastante amplo. A referência a "atos, sob qualquer forma manifestados", tendo em vista o objeto da própria lei e os sujeitos aos quais ela se aplica, faz pensar em atos realizados por força da autonomia privada. Excluídos estão, portanto, atos da autoridade pública, atos administrativos etc. Uma segunda delimitação decorre do complemento "que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços". A redação deste texto lembra a do disposto no art. 20 da mesma lei, que trata de infrações à ordem económica, o que levanta a questão sobre se, ao utilizar-se de dicção semelhante, o legislador estaria legitimando um ato que, por si, constituiria uma infração.

8. Esta impressão reforça-se quando, no § 2° do artigo 54, que trata das condições de aprovação dos atos submetidos a exame, aparece a expressão "poderão ser legitimados se ..." (grifei). Não obstante, a impressão é falsa. A norma do art. 54, que já existia, em termos parecidos, na lei Nº 4137/62, sempre foi vista como a possibilidade de aplicação, na legislação brasileira, da "rule of reason" do direito norte-americano. A regra da Razão não é urna varinha de condão que transforma o ato ilícito em ato lícito, mas um instrumento de controle da potencialidade fática de algum prejuízo à concorrência. As empresas que comunicam seus atos (por exemplo, um contrato de distribuição com cláusula de exclusividade e de divisão territorial entre os distribuidores, com proibição de mútua invasão etc.) não estão comunicando infrações nem mesmo tentativas de infração ou ilicitudes por tentativa. O que elas comunicam são práticas comerciais ou industriais tidas, no plano do fato econômico, como potencialmente anticoncorrenciais e que deverão ser analisadas como fatos (relações de causa e efeito) no contexto econômico em que se desenvolvem. A exigência de que tais atos sejam comunicados ou previamente ou no breve prazo de 15 dias úteis (§ 4°) nos dá conta do sentido da prescrição legal, qual seja, de que cabe ao CADE, ao aprovar um ato sob condições ou reprová-lo integralmente, prevenir a ocorrência de práticas que conduziriam a um funcionamento insatisfatório do mercado relevante (mas não, necessariamente, a um abuso).

9. A norma do art. 54, neste sentido, é um instrumento de intervenção no domínio econômico e, por isso mesmo, deve ser usada com muita cautela. Cabe à autoridade ou reprovar o ato ou aprová-lo sob condições. Estas condições não podem ser impostas à autonomia privada das partes, mas devem ser encaminhadas nos atos mesmos, por meio de uma avaliação econômica. A função do CADE é, assim, constatar as condições e, encontrando-as, aprova o ato. Se as condições forem insuficientes, o CADE pode exigir compromissos de desempenho, que as reforçarão (art. 58). Compromissos, porém, não imposições, mas resultam de uma aceitação daquilo que seja acordado com a autoridade. A recusa de firmar o compromisso, resultando na insatisfação das condições, obriga o CADE a reprovar o ato.

10.De qualquer modo, a restrição "que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços" fornece uma regra geral de obrigatoriedade da comunicação de atos à autoridade. Os atos deverão ser comunicados desde que preencham aquela condição. A verificação deste preenchimento é, num primeiro momento, um juízo de quem realiza o ato. É a empresa que, avaliando o seu próprio ato, percebe que deve ou não comunicá-lo. O que não exclui, obviamente, a hipótese de, não tendo sido comunicado e tendo a autoridade entendimento diverso, a omissão da empresa ser punida. De todo modo, se, objetivamente, o requisito não se preenche, a omissão de comunicar é legítima. O ónus da prova de preenchimento do requisito é, no entanto, da autoridade, presumindo-se que a empresa, que omitiu a comunicação, agiu legitimamente. Ou seja, o enquadramento do ato no requisito, embora avaliado pela própria empresa, é ato da administração, devendo ser por esta fundamentado. Por isso compete à autoridade o arquivamento do ato que a empresa lenha comunicado por ignorância ou por dúvida em sua avaliação.

É bom que se tenha em conta que os atos que devem ser submetidos a controle prévio são os que, potencialmente, têm condições de afetar a estrutura concorrencial de um mercado relevante. Práticas que manifestam meras estratégias comportamentais (aumento de preço, retirada de um produto da linha de fabricação, suspensão de um fornecimento reiterado etc.) não precisam ser comunicadas. Por sua vez, a simples inclusão de uma cláusula de não concorrência num contrato já é motivo de comunicação. A proibição mútua de não-concorrência é prática que pode afetar a estrutura do mercado. Isto não quer dizer, porém, que qualquer contrato que a preveja deva ser comunicado. A lei se preocupa com atos que afetem a estrutura de um mercado relevante.

12.Para o problema que se está examinando, a delimitação do mercado relevante em função do espaço (mercado relevante geográfico) ou do produto (produto relevante) é tema secundário que se examina para enquadrar o alo em lace de sua prejudicialidade potencial. O que neste passo se discute é, previamente, não esta prejudicialidade, mas a relevância do mercado. O mercado de que se trata deve ser relevante para um contexto económico. Trata-se de um outro sentido de relevância, que aponta para sua importância. Este fator é significativo para o disposto no art. 54, embora não o seja para o art. 20, que trata de infrações. Assim, se duas farmácias, localizadas na mesma rua de urna cidade como São Paulo, estabelecerem, contratualmente, um acordo de divisão de mercado, esta prática pode configurar uma infração. Se, porém, se trata de duas redes de venda de produtos farmacêuticos cujo acordo afeta a concorrência numa escala significativa para o mercado farmacêutico. independentemente de poder caracterizar-se uma infração, o ato deve ser comunicado. Conquanto seja um conceito valoralivo, a importância é fator decisivo. Cabe à empresa avaliá-la inicialmente e à autoridade, certificá-la.

Na regra geral, prevista no caput do art. 54 para os atos de qualquer forma manifestados, segundo a qual devem ser eles comunicados se prejudiciais à concorrência num mercado relevante de significativa importância, estão incluídos os atos de concentração econômica, por força do disposto no § 3". Dispõe este:

"Incluem-se nos atos de que trata o caput aqueles que visem a qualquer forma de concentração económica, seja através de fusão ou incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer forma de agrupamento societário que implique a participação de empresa ou grupo de empresas resultante em 20% (vinte por cento) de um mercado relevante, ou em que qualquer dos participantes tenha registrado faturamento bruto anual no último balanço equivalente a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais)".

14. Discute-se, inicialmente, o sentido da expressão "Incluem-se". Tomada literalmente, esta inclusão parece supérflua. Tanto que o art. 74 da antiga Lei n° 4.137/62 nada dispunha em especial para atos de concentração e, não obstante, estes eram tidos como incluídos nos atos de que ali se tratava. Afinal, atos de concentração são também "atos sob qualquer forma manifestados", isto é, qualquer prática ou transação comercial válida no direito brasileiro, acordadas expressa ou implicitamente pelas partes. Portanto, ao destacar dentre os atos mencionados no caput do art. 54, os atos de concentração, a inclusão tem um outro sentido. Este sentido revela-se na finalidade da inclusão, não se explicando como mero enquadramento de uma espécie no género, o que seria redundante.

15. A finalidade da inclusão está em que, enquanto para os atos em geral o disposto na regra de obrigatoriedade de comunicação (desde que prejudiciais à concorrência ou que possam conduzir à dominação de mercados) não prevê nenhum critério expresso de prejudicialidade ou de dominação, para os atos de concentração o §3° cria algumas presunções. Por considerá-los significantes, a lei prevê que atos de concentração que impliquem uma participação em 20% de um mercado relevante ou em que uma das partes tenha tido faturamento, no ano precedente ao ato, igual ou superior a R$ 400 milhões, reputam-se prejudiciais à concorrência ou potencialmente conduzentes à dominação de mercado, devendo, destarte, ser comunicados. Presumem-se prejudicial e conduzentes à dominação aqueles que preencham aqueles requisitos. A inclusão dos atos de concentração nos atos em geral dá-se, portanto, por força da criação de presunções capazes de enquadrar o ato de concentração na regra geral de obrigatoriedade de comunicação do caput do art. 54. Se estas presunções não estão preenchidas, o ato de concentração cai na vala comum dos atos em geral. Isto é, só deverão ser comunicados se a regra do caput do art. 54 estiver preenchida. Por exemplo, pode suceder que duas empresas, que não se enquadram em nenhuma das presunções do § 3°, se concentrem, ocorrendo que uma delas detém uma patente que, por força de incorporação, passa à outra, a qual tem condições, pela propriedade da patente, de dominar um mercado relevante. O ato de concentração, neste caso, deve, em tese, ser comunicado apenas por força da regra do caput do art. 54. Não estando preenchidas nenhuma das presunções, 20% de participação ou 400 milhões de fatura-mento, cabe à autoridade demonstrar a potencialidade da dominação e, isto feito, exigir que o ato lhe seja submetido apenas por força do disposto no caput.

16. Discute-se se, preenchida uma das presunções, o ato de concentração deva, inapelavelmente, ser submetido à autoridade. Entende-se que o disposto num parágrafo deve ser lido em consonância com o disposto no caput do artigo. O parágrafo não dispõe independentemente do caput. A lei brasileira, ao contrário de outras legislações (por exemplo, a alemã), não separa o controle prévio de atos em geral do controle dos atos de concentração. Ao contrário, os coloca até mesmo num único artigo. Isto obriga a examinar cada uma das presunções no seu caráter de, pressupostamente, configurar uma possível prejudicialidade à concorrência ou possível condução à dominação de mercado. Afinal, é para este efeito que elas são presumidas.

17. As duas presunções, constantes do § 3°, têm a ver com a caracterização de uma posição dominante. A lei está a presumir que, nos casos de concentração em que urna das partes a detenha, ocorre o seu fortalecimento e que este é capaz, de fato, de afetar a estrutura concorrencial do mercado relevante. Ora, a presunção relativa aos 20% de participação no mercado é, ostensivamente, juris et de jure, posto que, mencionada no §3°, do art. 54, da Lei 8.884/94, vem legalmente explicitada como verdadeira no art. 20, §3°, da mesma lei: "A posição dominante a que se refere o parágrafo anterior é presumida quando a empresa ou grupo de empresas controla 20% (vinte por cento) do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo CADE para setores específicos da economia". Já a cifra de 400 milhões de reais, mencionada no § 3° do art. 54, não conhece, na lei, a mesma explicitação, devendo ser tomada como presunção legal condicional ou relativa, isto é, como aquela que, admitida como verdadeira por lei, pode, no entanto, ser elidida pelas provas que se lhe oponham. E, no caso, é óbvio que a presunção dos 400 milhões de faturamento há de ser lida em conjungação com a hipótese de risco potencial de prejuízo ao mercado relevante.

18. Tenha-se em conta, neste sentido, que a lei não considera a posição dominante de uma empresa como configuradora de infração à ordem económica, mas apenas o seu abuso (v. Art. 2°, IV), não vendo nela, em consequência, uma situação capaz de conduzir necessariamente a uma potencial dominação de mercado ou eliminação da concorrência ou prejuízo para esta, ao teor do caput do art. 54 ("Os atos, sob qualquer forma manifestados que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens e serviços..."). Segue que, ainda que os 400 milhões de reais de faturamento sejam considerados presunção para a comunicação de ato de concentração por força da expressividade da posição da empresa no mercado, esta presunção tem de ser corroborada pela conexão com o caput do art. 54.

19. Isto significa que, se um ato de concentração, em que uma ou ambas as partes se enquadram na presunção dos 400 milhões de faturamento, não vier a ser submetida à autoridade e, esta, por esta razão, vier a autuá-las, a parte (ou as partes) poderá opor à autuação a demonstração de que, inobstante o preenchimento da presunção, o ato de concentração não prejudica potencialmente a concorrência nem conduz à dominação de mercado, conforme a regra geral do caput do art. 54. Obviamente, o ónus desta prova cabe à parte que a alegar. Realizada esta demonstração e aceita ela pela autoridade concorrencial (pela SDE e, em grau de recurso, pelo CADE ou por este, diretamente) ou aceita pelo juiz, em sede judicial, elide-se a aplicação da multa prevista para casos de não submissão de ato obrigatoriamente comunicável (art. 54, § 4°). Obviamente, na prática, para que a demonstração se faça e seja apreciada, o ato acaba sendo examinado. Mas o importante é que a multa não se aplica.

20. lista conclusão ver-se-ia reforçada pela seguinte razão. Como a Constituição Federal, no seu art. 170, parágrafo único, estabelece: "É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade económica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei", fica claro que cabe aos entes privados a definição da própria política económica. Donde se segue que a ressalva ao final do texto citado não deve ser entendida como um aval ao legislador para submeter não importa qual atividade económica ao seu poder de polícia (cf. Celso Bastos: Comentário à Constituição de 1988, vol. VII, p. 39). Entende-se, destarte, que, cuidando o art. 54 da Lei 8884/94 de uma forma de fiscalização preventiva do Estado, para evitar a potencialidade do prejuízo à estrutura concorrencial do mercado, só na configuração desta potencialidade é que caberia a exigência de submissão de atos ao CADE.

21. A presunção do faturamento vale para todos os casos de concentração econômica. Estes classificam-se, usualmente, do seguinte modo: concentração horizontal, sendo aquela que ocorre entre empresas concorrentes no mesmo mercado relevante; concentração vertical, aquela que ocorre entre empresas que atuam em mercados distintos e têm entre si relações de fornecimento; concentração do tipo conglomerado, quando empresas que não concorrem nem têm relações de fornecimento se juntam para produzir bens que, embora distintos e não competitivos entre si, guardam alguma forma de sinergia. Para os casos de conglomerado e de concentração vertical, a lei prevê além da condição expressa na regra geral para obrigar à comunicação do ato, a presunção do faturamento. Para os casos de concentração horizontal, e só para estes, cabe a presunção dos 20% de participação em um mercado relevante.

22. Note-se que esta presunção fala de resultado, isto é, de ato de concentração "que implique a participação de empresa ou grupo de empresas resultante em 20% (vinte por cento) de um mercado relevante" (grifei). A participação deve resultar do ato. É o ato que a engendra. Se antes do ato já existisse, da parte de uma das empresas, uma participação igual ou superior a 20% e, por força do ato, esta participação não se altera, a presunção não se preenche. Não foi o ato que a provocou. Ela já existia. Ou seja, se, no mercado relevante, a empresa A tem uma participação de 50% e a empresa B não tem nenhuma participação, o requisito dos 20% não é preenchido, posto que o resultado da operação (50% + 0,0%) não altera a situação anterior. Neste caso, a presunção dos 20% não terá sido preenchida.

23. Esta observação é importante para o caso de empresas que produzem os mesmos produtos ou prestam os mesmos serviços, mas que atuam em mercados geografícamente distintos. Tenha-se em conta, neste sentido, o que determina o art. 2° da Lei n° 8.884/94. Ali se dispõe o seguinte: "Aplica-se esta lei, sem prejuízo de convenções e tratados de que seja signatário o Brasil, às práticas cometidas no todo ou em parte no território nacional ou que nele produzam ou possam produzir efeitos". E no seu parágrafo único: "Reputa-se situada no território nacional a empresa estrangeira que opere ou tenha no Brasil filial, agência, sucursal, escritório, estabelecimento, agente ou representante". O caput refere-se ao lugar do ato ou de seus efeitos, atuais ou potenciais. Confere à autoridade brasileira a competência para disciplinar até mesmo práticas realizadas no exterior, mas que produzem ou possam produzir efeitos no Brasil. Por exemplo, a fusão de empresas no exterior que implique concentração de subsidiárias situada no País. O parágrafo único limita a competência a parte subjecti. Note-se que os dois princípios contidos no art. 2° não se confundem corn a noção de mercado relevante geográfico. Assim, em função de suas exportações para o Brasil, uma empresa estrangeira pode estar integrando o mercado relevante na avaliação de um ato de concentração de empresas situadas no País, mas não será alcançada pelo princípio da territorialidade. Se, porém, a empresa estrangeira, competindo, por exportação, no Brasil, com empresas aqui situadas, vier a se concentrar com uma delas, embora o mercado geográfico não tenha alterado sua extensão internacional, a empresa será alcançada pela longa manus da autoridade brasileira pela repercussão do ato no território nacional.

24. Pode ocorrer, no entanto, um caso em que, embora concorrentes pelo produto relevante, duas empresas realizem um ato de concentração que não preencherá, inobstante, a presunção dos 20%. Retomemos o exemplo mencionado anteriormente, a partir da configuração do mercado relevante. Admita-se, no que se refere ao produto relevante, que se trata de mercado de serviços e que pelo tipo de serviço, sua extensão geográfica sempre dependa de alguma localização territorial explícita. Embora atue uma das empresas no mundo inteiro, as condições locais são fator importante no desempenho concorrencial. Ou seja, supõe-se tratar-se de um tipo de produto relevante que não pode ser oferecido "de fora", exigindo presença no mercado geográfico. Seria o caso, por exemplo, de empresas que explorem supermercados.

25. Estas considerações são importantes para a análise da relação entre A e B, tendo em vista um eventual preenchimento da presunção dos 20%. A empresa B, é empresa de serviços mas cujo mercado geográfico não inclui o Brasil nem o Mercosul. Não aluando no País, ao aliar-se a A, é, tipicamente, um competidor que vem de fora mas não é concorrente, posto que lhe falta a presença territorial de que se falou. Ou seja, sua entrada no mercado, por via de uma joint venture e de uma participação acionária, lhe dá a oportunidade de se tornar um concorrente, mas não altera, horizontalmente, a estrutura concorrencial. Desta estrutura concorrencial é que se fala na lei quando se presume que, resultando de uma operação concentrativa uma participação de 20% do mercado, haveria a obrigatoriedade de comunicá-la à autoridade. Da operação hipotética não resulta uma alteração na estrutura do mercado, o HHI continua exatamente o mesmo.

26.As expressões resultante e implicar mostram, em síntese, que a lei está preocupada com atos que provoquem um resultado tal que a participação no mercado relevante seja alterada. Ou seja, a lei cuida de concentração económica num mercado concorrencial, não de meras aquisições de empresas por empresas. Ou ainda, a lei não exige que a mera integração horizontal seja submetida ao CADE. mas apenas aquela da qual resulte uma concentração no mercado relevante. Assim, se, por meio da integração, a estrutura do mercado não se altera em termos de participação concentradora, não há exigência de o ato ser comunicado para apreciação. Nesse sentido explica a ex-Conselheira do CADE, Neide Teresinha Malard, que "da integração horizontal de empresas pode decorrer a concentração do mercado" ("Integração de Empresas: concentração, eficiência e controle" in REVISTA DO IBRAC, vol. l, n° 4. novembro, 1994, pág 47 - grifo meu). A integração, portanto, não é sinónimo de concentração, e só desta última cuida a lei para efeito de exigir a comunicação.

Discute-se, por ultimo, com base nas observações feitas até agora, se seria viável, por exemplo, num caso de concentração horizontal em que, ostensivamente, a estrutura de participação não se altera mas em que uma das partes teria tido faturamento anual superior ao limite legal, que a autoridade, em exame preliminar, viesse a determinar o arquivamento do pedido.

28. Nada obsta esta possibilidade. Se, como se procurou mostrar, o limite de faturamento é uma presunção juris tantum e a presunção de 20% de participação é juris et de jure, não preenchida esta e convencendo-se a autoridade de que, em consequência, do ato não decorre nenhuma alteração, muito menos a potencialidade de um prejuízo à concorrência, pode aquela determinar o arquivamento do pedido, não estando obrigada a examiná-lo só porque havia um faturamento superior a R$ 400 milhões. Ao contrário, está na sua competência este exame preliminar e a determinação de arquivamento. Em suma, ocorrendo este por decisão da SDE, nada obsta que o CADE, no recurso de ofício, venha a confirmá-lo. Além de ser uma possibilidade conforme a lei, é também uma medida de bom senso, em favor da economicidade processual.

São Paulo, 30 de janeiro de 1998.

Fonte: Revista do Instituto Brasileiro de Estudos das Relações de Concorrência e de Consumo, vol. 5, n 2, __: __, pp. 7-15.

Texto digitado e organizado por: Luis Fernando Santos das Neves.