Contrato de Fornecimento Contínuo e a Lei 8.666/93

Tercio Sampaio Ferraz Jr

 

No art. 57, a Lei 8.666/93 dispõe sobre prazos de vigência de contratos e sobre a prorrogação de prazos neles previstos para a execução das prestações. O prazo de duração dos contratos é tema de singular importância para a atividade administrativa, tendo relação direta com a viabilidade do fornecimento do serviço público. Afinal, dentro do chamado âmbito de validade das normas (cf. Kelsen, Reine Rechtslehre § 34 e 35, 2. ed., 1960), ao lado do espaço e do conteúdo fálico, o fator tempo e sua definição é absolutamente essencial. A validade de qualquer norma positiva (e a cláusula contratual é uma delas) exige prazo de duração, que pode ser permanente ou limitada. O prazo de duração da validade se chama usualmente vigência.

A vigência dos contratos administrativos é sempre limitada, posto que a lei proíbe (art. 57 - § 3.º) contrato com prazo de vigência indeterminado. O art. 57 contém, neste sentido, uma regra geral, contida no seu caput que restringe o prazo de vigência à vigência dos créditos orçamentários que preveem os recursos necessários ao seu custeio. A vinculação à anualidade orçamentaria decorre, sistematicamente, da obrigatoriedade de inserção, nos contratos, de cláusula que identifique o crédito orçamentário responsável pela correspondente despesa, tal como prevê o art. 55 - V da Lei 8.666/ 93. A vinculação do prazo de vigência contratual à anualidade orçamentaria estreita a relação entre os motivos justificadores do prazo orçamentado e o dos contratos públicos. Como bem assinala Jessé Torres Pereira (Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública, 4. ed., p. 394 et seq.), o principal fundamento remonta a uma tradição histórico-constitucional e diz respeito com o exercício do controle pelo Poder Legislativo sobre a administração das finanças públicas. A repercussão deste fundamento, no que diz respeito aos contratos administrativos, aponta para o objetivo de fixar um período hábil (e controlável) para a execução de despesas autorizadas em correspondência a um equivalente período de arrecadação e contabilização. A conta deste prazo em doze meses tem base, obviamente, na cronologia solar e na tradição das democracias ocidentais em estabelecer periodicidade anual para os trabalhos legislativos.

Como regra geral, a anualidade é uma imposição da vontade legislativa ao curso dos acontecimentos. Trata-se pois, de convenção humana, com justificativas práticas e políticas mas, de qualquer modo, limitadora da experiência fática. Isto é, o exercício da atividade administrativa, pelo curso natural da vida, não começa e se extingue por compassos regulares de um ano solar nem mesmo resolve necessidades que se enquadrem sponte própria nas necessidades de controle anual pelo Legislativo. Aliás, nem mesmo este evita que, por convocação, seja obrigado a exercer suas funções por períodos extraordinários. O que se quer dizer é que, em suma, o tempo normativo não é equivalente ao tempo fático e se aquele pode dobrar-se a periodicidades abstratamente demarcadas (anos, meses, dias, horas, minutos, segundos), a vida é um contínuo de fatalidades indeterminadas.

Esta observação é importante para entender o disposto nos incs. do art. 57 da Lei 8.666/93. O direito anterior ao Dec.-lei 2.300/86 já tinha percebido a necessidade de se flexibilizar a regra geral da periodicidade ânua, posto que isto amarrava a Administração a vínculos insuportáveis em face da continuidade e da periodicidade arrítmica de sua atividade vital. Assim, o Código de Contabilidade Pública, no art. 767, parágrafo único, já previa que, nos contratos para arrendamento de prédios, e obras de grande vulto, custeadas por verbas orçamentarias, seria permitido prazo superior a um ano, limitado a um máximo de cinco. Na esteira deste dispositivo, o Dec.-lei 2.300/86, no seu art. 47 fixou uma regra geral de prazo contratual vinculado ao respectivo crédito orçamentário, mas em seguida reconhecia a necessidade de uma regra para contratos referentes a projetos e investimentos impossíveis de redução à estrita anualidade e, até por isso mesmo, incluídos nos planos plurianuais. Em sua versão original, esta era a única flexibilização. Como relata Leon Frejda Szkla-rowsky (Duração de contrato administrativo de prestação de serviços contínuos in RDP 88, out.dez. 1988, p. 116 et seq.), o inc. II, referente à prestação de serviços contínuos, foi introduzido para "aprimorar o texto e adequá-lo à realidade e à experiência sorvida na aplicação diuturna do diploma derrogado", vez que a prestação de serviço merecia atenção em vista de sua possibilidade de execução contínua (a sugestão do novo dispositivo foi do próprio autor, à época Subprocurador da Fazenda Nacional). A inspiração para o complemento, segundo o mesmo autor, vinha de Hely Lopes Meirelles que, ao estudar o contrato de fornecimento contínuo que, conforme reconhecia L. Szklarowsky, não se afasta da prestação de serviços de forma continuada (grifei), definia aquele como o contrato em que a "entrega é sucessiva e perene, devendo ser realizada nas datas avençadas e pelo tempo que durar o contrato" (in Direito administrativo brasileiro, 17. ed., p. 240).

A origem histórica do dispositivo põe-nos, portanto, diante dos chamados "contratos de execução continuada" que são aqueles caracterizados pela prática ou abstenção de atos reiterados, protraídos no tempo. Em oposição aos contratos de execução instantânea, que se executam de uma só vez, cumprindo-se num só momento, os de execução contínua pressupõem um trato sucessivo, verificando-se o seu cumprimento mediante prestações contínuas ou repetidas a intervalos convencionados. Não se confundem com contratos de execução a prazo, em que a obrigação das partes se cumpre por parcelas (compra e venda a prazo) e que se extingue quando a última parcela é satisfeita. Naqueles, as prestações (atos positivos ou negativos do devedor - dar, fazer, receber - cujo objeto pode ser uma coisa, um serviço etc. (cf. Roberto de Ruggiero, Instituições de Direito civil, Vol. III, São Paulo, 1937, p. 28) são duradouras ou no sentido de que são ininterruptas (permitir o gozo da coisa locada, guardar o recebido em depósito) ou no sentido de que, sendo uma única a obrigação, fracionam-se em períodos, iguais ou desiguais, até que o prazo total se extingue. Ou seja, ao contrário dos contratos de execuções a prazo, o que se extingue é o prazo, não o número de prestações. As obrigações de prestações duradouras ininterruptas são chamadas por Pontes de Miranda de próprias e as fracionadas, de fornecimento sucessivo (Tratado de Direito privado, Rio de Janeiro, 1958, T. XXII, p. 62, p. 172 et seq.).

Isto nos permite entender, não obstante a forma diferente como se manifestam no tempo, que os contratos de execução continuada ou envolvem obrigações a prestação continuada que supõem uma atitude, positiva ou negativa, ininterrupta do devedor, que presta a qualquer momento, estendendo a continuidade temporal da prestação mesma (por exemplo, obrigação de fornecer, noite e dia, eletricidade) ou obrigações em que o devedor presta a momentos diferentes, regularmente ou não, de forma reiterada, com base num mesmo negócio jurídico (como os contratos de serviço de manutenção ou os contratos de fornecimento repetido periódica ou circunstancialmente).

O contrato de serviços a serem executados de forma contínua pertence a esse gênero. Serviço, do ponto de vista econômico, é atividade que se dirige para a produção de bens econômicos (criação de bens úteis), que podem ser tanto bens materiais como bens imateriais (cf. Bernardo Ribeiro de Morais in Doutrina e prática do ISS, São Paulo, 1975, p. 84). Ao contrário do Direito privado, mais apegado à tradição romanística e vinculado a antigas classificações, como facere/dare, o que conduz a uma interpretação restritiva do contrato de serviço (prestar trabalho, assumir uma obrigação de fazer - Pontes de Miranda, Tratado..., Vol. XLVII, p. 10), no Direito público o conceito econômico é mais relevante, definindo-se serviço como produção de bem imaterial, o que permite nele incluir a locação de bens móveis, a hospedagem, a venda de bilhetes de loteria, o fornecimento de alimentação etc.

O contrato de fornecimento contínuo, cujo objeto da prestação são coisas móveis, no Direito administrativo, é ajuste que visa ao abastecimento da administração de objetos materiais móveis, por meio de prestações múltiplas, programadas a intervalos previamente combinados. O pagamento se dá por períodos, persistindo a obrigação quanto a novas remessas, pelo devedor, e a da respectiva liquidação, pelo comprador. Do ponto de vista econômico, trata-se também de serviço. A distinção concreta, no Direito público, entre contratos de serviços e de fornecimento é extremamente complicada (cf. Américo Servídio, Dispensa de licitação pública, São Paulo, 1979, p. 52), o que tem levado, por exemplo, alguns tributaristas à capitulação: serviço é o que a lei diz ser serviço. Mesmo tratando o serviço como produção de objetos imateriais, fica difícil distinguir entre contrato de fornecimento de alimentação (contrato de serviço) e contrato de fornecimento de matérias primas, (contrato de fornecimento). A conclusão, portanto, é de que entre ambos há uma ostensiva aproximação, o que explica a mencionada inspiração do legislador, ao criar um inciso para o Dec.-lei 2.300/86, art. 47, em que se regula o prazo de contratos de serviços contínuos, nos contratos de fornecimento contínuo.

Esta proximidade, em sede sistemática, explica por seu turno a perspicaz e correia interpretação de Marçal Justen Filho (in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Rio de Janeiro, 1996, p. 362) que afirma: "Embora o silêncio do legislador, o art. 57 visa a regular precipuamente os contratos de execução continuada. Quanto aos de execução imediata o problema usualmente não se põe. No entanto, devem considerar-se extensíveis a eles as disposições do art. 57, no que forem aplicáveis" (grifei). Ora, Marçal Justen, quando fala dos contratos de execução continuada pensa naqueles em que não há uma conduta específica e definida que, de uma vez ou a cada vez, exaure a prestação. E cita como exemplo o contrato de locação. Mas há casos ou em que a delonga se impõe (execução de obra de engenharia civil) ou em que a prestação é imediata, mas se repete e se renova. Este é o caso do contrato de fornecimento contínuo. Cada prestação, no dizer de Pontes, é punctual (cada remessa, cada entrega, cada recebimento, cada pagamento), mas ligada a uma única obrigação, que é comum a todas as prestações, (op. cit., T. XXII, p. 63). Também a este tipo de contrato de execução continuada, no dizer de Marçal Justen Filho, as disposições do art. 57, embora o silêncio do legislador, são extensíveis.

Trata-se, assim, de uma lacuna que, no Direito administrativo, tem o sentido de ausência de norma que impede uma necessária atividade da administração. Assim, diz Marçal Justen, embora qualquer contratação administrativa tenha de ser feita em função de um orçamento vigente, o que vale para todos os contratos, "não haveria como o Estado cumprir suas funções se essa regra fosse aplicada de modo estrito" (grifei). E conclui: "Existem obras e encargos cuja execução não pode ser completada no decurso de um único exercício" (op. cit., p. 363).

A existência de lacunas no Direito administrativo tem peculiaridades em face de outros ramos jurídicos. Por força do princípio da legalidade em seu sentido estrito, a falta de lei implicaria sempre uma constatação que levaria apenas a uma omissão de consequência negativa: a Administração não poderia agir. Nos estudos dedicados ao problema das lacunas por Perelman (Lê problème dês lacunes en droit, Bruxelas, 1968), o ensaio referente ao Direito administrativo mostra, no entanto, que a paralisia da ação administrativa deve ser encarada como o modo peculiar de lacuna nesse ramo do Direito. Trata-se, pois, de lacuna chamada teleológica, posto que a omissão do legislador, ao impedir a Administração de agir, provoca um vazio insatisfatório a ser preenchido em face do telos administrativo. Este vazio é que deve ser preenchido para que o fim (interesse público) possa ser alcançado.

O preenchimento de uma tal lacuna dá-se não por analogia (aplicação de norma relativa a um caso típico a um outro caso semelhante) mas por interpretação extensiva (ampliação do tipo normativo a uma espécie contida num gênero que é a razão do dispositivo) -cf. L. Silance, Un moyen de combler dês lacunes en droit: LMnduction amplifiante, in Lê problème dês lacunes en droit, op. cit. No caso, a regra geral (a duração dos contratos - todos - é adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentados) admite exceções que se referem a contratos de execução continuada, (gênero), dentre os quais se encontram os de prestação de serviços a serem executados de forma contínua (espécie), mas também outros, como o de fornecimento contínuo (espécie).

Conquanto, uma conhecida regra hermenêutica diga que os dispositivos de exceção devam ser interpretados restritivamente, a relação entre interpretação restritiva e extensiva não há de guiar-se pelo critério da literalidade. Interpretar restritivamente não é tomar o preceito ao pé da letra. Toda norma jurídica, por exprimir-se em língua natural, contém necessariamente conotações difusas e denotações vagas. Daí, o princípio segundo o qual toda norma exige interpretação. Como a norma se produz num contexto comunicativo (autoridade/sujeito) que envolve poder e sujeição, o jogo entre os atores (autoridade e sujeito) admite alternativas interpretativas. Quando a autoridade se exprime num código linguístico cerrado, o sujeito tende a ampliar seu campo de ação restringido pela autoridade. Quando esta se exprime num código aberto, o sujeito busca segurança e exige precisão. O jogo normativo, enquanto jogo de poder, explica a interpretação restritiva e extensiva. A extensão é, assim, apenas a tomada do mesmo preceito sob a ótica de um código aberto, enquanto a restrição o toma sob a ótica de um código fechado. Em caso de silêncio do legislador quanto a uma ação exigida administrativamente (como tratar os casos de contratos de execução continuada?), interpretar extensivamente é examinar, no caso, a possibilidade de se utilizar uma decodificação aberta que evite a paralisia administrativa (sobre interpretação restritiva e extensiva, cf. nosso, Introdução ao estudo do Direito, São Paulo, 1992, p. 295-297). Ou seja, a regra hermenêutica da interpretação restritiva para os dispositivos excepcionais não deve ser tomada absolutamente, mas em relação a um contexto: se a restrição resguarda uma intenção legislativa de certeza e segurança, ela cabe aos dispositivos que regulam exceções. Mas se, por força da mesma segurança e certeza, a extensão é exigida para que o objetivo da lei se realize (por exemplo, evitar uma paralisia da administração), a extensão deve ser praticada.

No caso que estamos examinando, a possibilidade de interpretação extensiva ou restritiva deve guiar-se pelo confronto de dois princípios básicos, ambos de peso relativo na teleologia administrativa. O primeiro, referente à regra geral de vinculação do prazo contratual aos créditos orçamentados, justifica a anualidade com base na exigência de controle pelo Poder Legislativo da administração das finanças públicas. Esta exigência, por força da tradição constitucional democrática, comportaria restritas exceções. O segundo, é o princípio da continuidade da atividade administrativa, a justificar a extensão da flexibilidade imposta à regra da anualidade àqueles casos em que a execução continuada, se interrompida, poria em risco uma atividade administrativa necessária.

Tenha-se em conta, inicialmente, que os dois mencionados princípios não colidem necessariamente na forma de uma contradição lógica. O que pode existir é uma incompatibilidade, isto é, uma contrariedade em face de casos concretos. Pelo primeiro princípio, toda contratação tem de ser em função do orçamento vigente, posto que deve estar limitada à vigência do crédito correspondente. A esse princípio de ordem política (controle da administração financeira pelo Legislativo) se contrapõe o princípio da continuidade da atividade administrativa, quando confrontados ambos com a existência de "obras e encargos cuja execução não pode ser completada no decurso de um único exercício" (Marçal Justen Filho, op. cit., p. 363). Na verdade, o confronto, no caso concreto, não é propriamente entre a exigência de controle legislativo via orçamento e a exigência da continuidade da atividade. A questão é apenas de periodicidade do controle, pois este sempre existe. Portanto, é uma questão de ordem prática, não de princípio político. Ou seja, a contrariedade surge apenas em se saber o que é ideologicamente decisivo: anualidade do controle em detrimento da continuidade da atividade ou continuidade da atividade em detrimento da anualidade. O controle mesmo não se põe em questão. Em questão está apenas a convencionalidade e a conveniência do prazo de doze meses.

A questão, a meu ver, só pode ser resolvida, de caso para caso, pois, como diz Marcai Justen Filho, trata-se de silêncio do legislador, e em função do princípio diretor básico da administração pública: o interesse público. Em qualquer contratação de Direito administrativo presume-se que as partes se animam de uma só vontade: o funcionamento do serviço público. Ora, aqueles encargos estatais de relevo e de necessidade essencial para a própria função estatal (conditio per quam et sine qua non) que exigem execução duradoura e que, se submetidos a uma estrita anualidade, levariam a uma insuportável paralisia da atividade, pedem inexoravelmente uma periodicidade de controle adequada, que a lei fixou em até 60 meses, com possibilidade de prorrogação por mais doze meses. Ou seja, cabe à Administração, diz a lei (MedProv 1.531-12 de 1997, art. 1.°) avaliar a necessidade por critérios objetivos e decidir por uma duração prorrogada por períodos iguais e sucessivos, com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas, limitada a 60 meses. Ao teor da Lei 8.883, não se trata propriamente de "prorrogações" sucessivas, mas de um prazo (até 60 meses) definido de antemão (no edital, na dispensa ou na inexibilidade); tanto que o § 4." autoriza, aí sim, uma prorrogação em até 12 meses do prazo de que trata o inc. II (grifei).

Por fim, é significativo que a Lei 8.666/ 93 falasse em "deverá ter sua duração prorrogada" e a MedProv 1.531-12 venha a falar em "poderá ter sua duração prorrogada". Trata-se, obviamente, de uma autorização que o legislador confere à Administração, reforçando o objetivo do funcionamento do serviço público. É como se o legislador entendesse, ele próprio, a necessidade de flexibilizar, de caso para caso (justificadamente) a anualidade do controle em nome da continuidade da atividade administrativa, em se tratando de contratos de execução continuada, mormente os que tenham por objeto serviços (no amplo sentido econômico) essenciais.

Fonte: Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas – Julho-Setembro de 1998, ano 6, n 24, RT, São Paulo, pp. 139-144.

(Digitalizado e conferido por Ana Paula Vendramini Segura)