Tercio Sampaio Ferraz Jr.
I — Ordem econômica e funções controladoras do Estado. II — O chamado "Plano Verão". Ill — Resposta aos quesitos da Consulta.
PARECER
I — Ordem econômica e funções controladoras do Estado
Não é possível enfrentar os problemas colocados nos quesitos da consulta sem uma prévia tomada de posição perante a questão do intervencionismo no contexto da ordem econômica constitucionalmente conformada e estruturada. Isto porque há, no cerne dos quesitos, a exigência de uma delimitação da competência do Poder Público com relação às regras de formação de preços no regime de livre mercado, no pressuposto de uma orientação normativa sobre o papel do Estado enquanto um dos agentes que participam da estrutura do mercado na economia contemporânea. Dito em outras palavras, de um lado a questão técnico-jurídica dos parâmetros da legalidade e da discricionariedade enquanto fórmulas instrumentais de controle do arbítrio nos quadros da positividade do Direito, de outro, a questão jurídico-política da intervenção do Estado na economia.
O intervencionismo é um fenômeno típico da economia capitalista. Refere-se ao exercício, por parte da autoridade política, de uma ação sistemática sobre a economia, estabelecendo-se estreita correlação entre o subsistema político e o econômico, na medida em que se exige da economia uma otimização de resultados e do Estado a realização da ordem jurídica como ordem do bem-estar social. Trata-se de um fenômeno emergente no mundo ocidental, já no início do século XX, e que se tornou agudo entre nós sobretudo a partir da II Guerra: ao assumirem as sociedades mercantis, privadas na sua configuração jurídica, as formas burocratizadas dos entes públicos, o poder por elas exercido passou a manifestar uma tendência à concentração, implodindo-se a possibilidade de regulação dos mercados conforme os parâmetros pressupostos pelo Direito Privado, observando-se, ao contrário, a sua insuficiência progressiva. Por exemplo, o controle de preços claramente deixava de ocorrer apenas pela lei da oferta e da procura, pois a emergência de um verdadeiro poder econômico paralelo ao poder político, significava a possibilidade de um controle sobre as regras de controle, sua manipulação e transformação. Na contrapartida desta possibilidade de perversão das regras de mercado pelo próprio regime de mercado livre, reconhecia-se a legitimidade da intervenção reguladora do Estado na economia.
Não se trata, portanto, de um fenômeno que negasse o papel da livre concorrência das forças do mercado, mas, ao contrário, que pretendia assegurá-las e estimulá-las na crença de que delas depende a realização do bem-estar social. Ou seja, o intervencionismo não se fez contra o mercado, mas a seu favor. O mercado, enquanto mecanismo de coordenação e organização dos processos econômicos e que pressupõe o reconhecimento do direito de propriedade dos bens de produção e a liberdade de iniciativa, é mantido no intervencionismo como o princípio regulador da economia. Distinto do intervencionismo é, neste sentido, o dirigismo econômico, própria das economias de planificação compulsória, e que pressupõe a propriedade estatal dos meios de produção, a coletivização das culturas agropecuárias e o papel do Estado como agente centralizador das decisões econômicas de formação de preços e fixação de objetivos.
Esta distinção entre intervencionismo e dirigismo é importante e nos remete imediatamente à análise da ordem econômica conforme a Constituição de 1988.
O art. 174 desta, determina que o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, exerce, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este último determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Tais funções assinalam formas de intervenção do Estado na economia, ao lado de outras, como, por exemplo, a função empresarial, disciplinada pelo art. 173.
Ao exercer aquelas funções, o Estado é considerado agente. A Constituição consagra-lhe um papel ativo e não passivo. Trata-se de um papel próprio que lhe permite atuar na cena econômica. Distinga-se, porém, entre dois sentidos da palavra Estado: o Estado-entidade, conjunto de órgãos e atividades, com uma subsistência própria ao lado dos entes privados que compõem a sociedade civil, com seus bens, responsabilidades e competências; e o Estado-ordem normativa, conjunto de normas que constitui a estrutura política, lato sensu, da sociedade juridicamente organizada. Em termos de agente, é no primeiro, mas não no segundo sentido que deve ser tomada a expressão. Isto tem uma consequência importante. No Estado, destarte, não repousa a estrutura da ordem econômica, este não lhe impõe nem conforma as regras estruturais, não é fundamento da economia. A Constituição, nesse sentido, repudia a economia estatizada, o capitalismo de Estado, o dirigismo econômico, pois, ao contrário, acentua essencialmente (art. 170) o pluralismo da livre iniciativa e o sentido social, não discriminatório do trabalho humano como fundamento da ordem econômica. Como agente normativo e regulador, o Estado, portanto, não se substitui ao mercado na configuração estrutural da economia.
Nestes termos, o art. 170, ao proclamar a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano como fundamentos da ordem econômica, está nelas reconhecendo a sua base, aquilo sobre o que ela se constrói, ao mesmo tempo sua conditio per quam e conditio sine qua non, os fatores sem os quais a ordem reconhecida deixa de sê-lo, passa a ser outra, diferente, constitucionalmente inaceitável. Particularmente a afirmação da livre iniciativa, que mais de perto nos interessa neste passo, ao ser estabelecida como fundamento, aponta para uma ordem econômica reconhecida então como contingente. Afirmar a livre iniciativa como base é reconhecer na liberdade um dos fatores estruturais da ordem, é afirmar a autonomia empreendedora do homem na conformação da atividade econômica, aceitando sua intrínseca contingência e fragilidade; é preferir, assim, uma ordem aberta ao fracasso a uma "estabilidade" supostamente certa e eficiente. Afirma-se, pois, que a estrutura da ordem está centrada na atividade das pessoas e dos grupos e não na atividade do Estado. Isto não significa, porém, uma ordem do "laissez faire", posto que a livre iniciativa se conjuga com a valorização do trabalho humano. Mas a liberdade, como fundamento, pertence a ambos. Na iniciativa, em termos de liberdade negativa, da ausência de impedimentos e da expansão da própria criatividade. Na valorização do trabalho humano, em termos de liberdade positiva, de participação sem alienações na construção da riqueza econômica. Não há, pois, propriamente, um sentido absoluto e ilimitado na livre iniciativa, que por isso não exclui a atividade normativa e reguladora do Estado. Mas há ilimitação no sentido de principiar a atividade econômica, de espontaneidade humana na produção de algo novo, de começar algo que não estava antes. Esta espontaneidade, base da produção da riqueza, é o fator estrutural que não pode ser negado pelo Estado. Se, ao fazê-lo, o Estado a bloqueia e impede, não está intervindo, no sentido de normar e regular, mas dirigindo e, com isso, substituindo-se a ela na estrutura fundamental do mercado.
Em consequência deve-se dizer, portanto, que o sentido do papel do Estado como agente normativo e regulador está delimitado, negativamente, pela livre iniciativa, que não pode ser suprimida. O Estado, ao agir, tem o dever de omitir a sua supressão. Positivamente, os limites das funções de fiscalização, estímulo e planejamento estão nos princípios da ordem, que são a sua condição de possibilidade. O primeiro deles é a soberania nacional. Nada fora do pacto constituinte. Nenhuma vontade pode se impor de fora do pacto constitucional, nem mesmo em nome de alguma racionalidade da eficiência, externa e tirânica. O segundo é a propriedade privada, condição inerente à livre iniciativa e lugar da sua expansão. O terceiro é a função social da propriedade, que tem a ver com a valorização do trabalho humano e confere o conteúdo positivo da liberdade de iniciativa. O quarto é a livre concorrência: a livre iniciativa é para todos, sem exclusões e discriminações. O quinto é a defesa do consumidor, devendo se velar para que a produção esteja a serviço do consumo e não este a serviço daquela. O sexto é a defesa do meio ambiente, entendendo-se que uma natureza sadia é um limite à atividade e também sua condição de exercício. A redução de desigualdades sociais e regionais é o sétimo. Trata-se de um princípio-finalidade, um sentido de orientação. O oitavo é a busca do pleno emprego. Também é um princípio-finalidade. condição para a valorização do trabalho humano. O último é o tratamento favorecido às empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte. É um princípio de equalização, que parte das desigualdades de fato, mas impõe um dever de condições mínimas de acesso à livre iniciativa.
Estes nove princípios não se contrapõem aos fundamentos da ordem, mas dão-lhes o seu espaço relativo. Cumpre ao Estado assegurar os fundamentos, a partir dos princípios. Não se pode, por isso, em nome de qualquer deles eliminar a livre iniciativa nem desvalorizar o trabalho humano. Fiscalizar, estimular, planejar, portanto, são funções a serviço dos fundamentos da ordem, conforme seus princípios. Jamais devem ser entendidos como funções que, supostamente em nome dos princípios, destruam seus fundamentos.
Admitindo-se, pois que a ordem constitucional brasileira aceita o intervencionismo, mas não o dirigismo econômico, é preciso porém, antes de uma palavra conclusiva sobre os quesitos formulados, enquadrar o fenômeno do planejamento e a atividade planejadora do Estado no contexto da ordem econômica.
Conquanto a Lei 7.730 de 31.1.89 não se apresente como um plano econômico, não há .dúvida de que ela tem algumas de suas características. Afinal, a instituição de nova moeda, acompanhada de congelamento de preços e regras de desindexação, não é segredo nenhum que se faz com o objetivo de controlar uma inflação que ameaça explodir. Observa-se aí a intenção de o Estado orientar e, em certo sentido, corrigir desvios nos rumos de um processo econômico que não deveria estar conduzindo a uma hiperinflação, mas a um desenvolvimento mais harmônico. Assim, ao exercer sua capacidade interventiva, parece claro que se desencadeia um processo de atos jurídicos e atividades técnicas, a desenrolar-se em determinado período, tendente a um controle racional da economia, tendo em vista o bem-estar geral (Eros Grau, Planejamento Econômico e Regra Jurídica, São Paulo, 1977, p. 84).
Obviamente, isto não é razão plenamente suficiente para se falar em planejamento e em plano econômico, posto que os instrumentos de intervenção de que se vale a Lei 7.730, constituem meios que necessariamente não precisam ser contidos num planejamento. O que deveria caracterizá-lo em termos de "plano de choque" ou "plano heterodoxo" seria a previsão de comportamentos futuros pela formulação explícita de objetivos. No caso da lei em tela, estes objetivos, no entanto, aparecem explícitos de forma marginal no art. 36, em que se institui a Comissão de Controle de Programa de Estabilização Econômica. No inc. IV deste artigo fica-se sabendo que compete à referida Comissão "sugerir aos órgãos de representação judicial e de suas autarquias, a adoção de medidas, providências ou ações com o objetivo de restabelecer a estrita observância do presente Programa de Estabilização Econômica" (grifamos). Só nesse momento, a rigor, é que se fixa um objetivo, além do mais, vago e ambíguo, posto que não é instrumento hábil para exercer-se um controle sobre a proporcionalidade (jurídica) de uma relação com os meios instituídos. Ou seja, quem faz a leitura do texto legal não tem como identificar na norma qual a sua "obrigação de resultado" (Grau, ob. cit., p. 243) que é peça fundamental para a instauração jurídica de um plano.
A rigor, portanto, parece-nos que o chamado "Plano Verão" é menos um documento que consubstancia um planejamento e mais um conjunto de medidas que pretendem viabilizar uma política econômica. A distinção entre planejamento/plano e política econômica é importante quando queremos confrontar a Lei 7.730 e as Medidas Provisórias que se lhe seguem com os dispositivos constitucionais que fazem do Estado um agente normativo e regulador da economia.
Quando o art. 174 da Constituição dispõe que o Estado exerça, dentre outras, a função de planejamento, esta expressão certamente não tem nada a ver com dirigismo econômico, mas sim com intervencionismo que, como vimos, é fenômeno que ocorre no desenvolvimento da economia capitalista. Esta função, que é, então, determinante para o setor público e indicativa para o setor privado, diz respeito, assim, ao disposto no § 7.º do mencionado artigo, que determina que a lei estabeleça as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. Isto significa que a Constituição, ao falar em função de planejamento, não está instituindo qualquer forma de política econômica, global e racionalmente planificada, posto que os planos, compulsórios para o setor público, mas não para o privado, são meros instrumentos de política governamental e jamais a sua essência. Isto quer dizer, outrossim, que política econômica, como exercício de governo, não é um conceito jurídico-constitucional, mas de economia política. Quando, portanto, se estabelece, por lei, um programa de estabilização econômica, o que se está fazendo não pode ser planejamento (no sentido constitucional), mas apenas exercício de função fiscalizadora.
Fiscalização, enquanto ato de examinar, verificar, vigiar, é atividade que deve estar cingida ao controle da normalidade do exercício da atividade econômica pelos seus fundamentos, conforme os princípios que a condicionam. Enquanto controle de preços, é atividade reguladora de sua formação em razão de uma política econômica, mas que não se substitui ao mercado livre como sua base. O termo "controlar" tem dois sentidos que devem aqui ser distinguidos. O sentido forte de dominação e o sentido fraco de verificação, acompanhamento, vigilância (Fábio Comparato: O Poder de Controle na Sociedade Anônima, 1976). Pelo exposto, o controle fiscalizador sobre os preços tem certamente o sentido fraco e não forte. O Estado, como agente normativo e regulador, não se impõe ao mercado, para dominá-lo. Não o dirige, apenas vela para que a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano ocorram nos quadros dos princípios constitucionais. Consequentemente, em casos excepcionais, quando a ocorrência de certas anomalias é capaz de pôr em risco o próprio fundamento da atividade econômica livre, pode o agente-Estado promover a imposição de restrições na espontaneidade contingente do mercado na formação dos preços justamente com o objetivo de salvaguardá-la. Isto, obviamente, como exceção e jamais como regra, pois restringir regularmente não é fiscalizar, mas dirigir a economia, ainda que em termos setoriais.
Sendo a livre iniciativa projeção da liberdade negativa no terreno econômico, a atuação do Estado-agente está circunscrita ao princípio da legalidade, à vinculação da Administração Pública à lei. Os entes privados, livres no sentido negativo de não impedimento, têm uma pretensão à omissão do Estado em emanar comandos ilegais. Neste sentido, liberdade é liberdade de qualquer coação ilegal (Jellinek — System der subjektiven oeffentlichen Rechte, 1963, Tüebingen, p. 103). Tomada apenas no sentido negativo, porém, a liberdade se torna um conceito vazio de substância, sujeita assim a quaisquer interferências legais do Estado. Para contornar essa dificuldade, a dogmática constitucional entende que a liberdade exige que a lei configure a atividade administrativa de modo a torná-la mensurável, previsível e controlável, não podendo ser usada apenas para "legitimar" finalidades da Administração. Em consequência, o princípio da legalidade, sob pena de se desvirtuar o direito fundamental à liberdade, há de ser entendido no sentido da estrita legalidade, isto é, "a legalidade na Administração não se resume à ausência de oposição à lei, mas pressupõe autorização dela como condição de sua ação" (Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de Direito Administrativo, São Paulo, 1980, p. 14); tal entendimento é confirmado expressamente pela Constituição de 1988 quando, de modo inequívoco, exige da Administração Pública o respeito ao princípio da legalidade (art. 37). Em outras palavras, a garantia da liberdade só pode ser alcançada por meio da estrutura formal da atividade administrativa (Eberhard Grabitz, Freiheit und Verfassungsrecht, Tüebingen, 1976, p. 63).
Se é certo, pois, que os processos sociais, especialmente os econômicos, não produzem autonomamente uma harmonia e, por isso, exigem a intervenção estatal, sem o princípio da reserva legal, perde-se de vista o Estado de Direito, ao criar-se um vácuo na própria garantia da liberdade.
A conjugação da liberdade econômica com a legalidade representa, afinal, um conjunto de princípios e fundamentos que delineiam, juridicamente, o perfil constitucional das relações entre Estado e sociedade no que se refere à intervenção estatal na economia. Isto, no entanto, obviamente, não é suficiente. É preciso ter-se em conta a dimensão muito mais ampla da intervenção do Estado no domínio econômico que, para além dos aspectos reguladores e organizacionais, repercute seriamente na escalada de poder e dominação típica da tecnoburocracia contemporânea.
O reconhecimento daqueles princípios tem, pois, como se pode facilmente concluir, uma repercussão especial na forma constitucional do Estado de Direito nos quadros do moderno Estado Social. Tenha-se em conta, nestes termos, a passagem, marcadamente visível na vida constitucional brasileira, de um Estado liberal burguês e sua expressão tradicional num Estado de Direito, para o chamado "Estado Social". Naquele assinale-se a postura individualista abstrata, o primado da liberdade no sentido negativo, da segurança formal e da propriedade privada, de um Estado concebido como "um servo estritamente controlado da sociedade" (Cari Schmitl, Verfassungslehre, Mücnchen-Leipzig, 1928, p. 125). Neste, perceba-se a extensão do catálogo dos direitos fundamentais na direção dos direitos econômicos, sociais e culturais, a consideração do homem concretamente situado, o reconhecimento de um conteúdo positivo da liberdade, a complexidade de processos e técnicas de atuação do Poder Público, a transformação consequente dos sistemas de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade. Esta passagem, porém, não deve significar a exclusão do primeiro pelo segundo, mas a sua transformação naquilo que a Constituição de 1988 chama de "Estado Democrático de Direito" (Preâmbulo e art. 1.°). Com esta noção não se exprime obviamente apenas a sujeição do Estado a processos jurídicos e à realização não importa de que ideia de direito, mas a sua subordinação a critérios materiais que o transcendem, nomeadamente à interação de dois princípios substantivos — o da soberania do povo e o dos direitos fundamentais (art. 1.°, parágrafo único e incs. I, Il e III) — com a realização da democracia econômica, social e cultural como objetivo da democracia política (art. 1.°, IV e V e art. 3.°, I, II, III e IV).
Esta compatibilidade do Estado de Direito com o Estado Social num Estado Democrático, porém, traz consigo dificuldades. É preciso, de um lado, garantir em cada caso uma situação de compromisso entre os grupos sociais que assegure um mínimo de critérios comuns de valores por todos admitidos (W. Abendroth, Sociedad antagónica y democracia política, Barcelona-México, 1973, p. 208). De outro, um quadro constitucional rigoroso, sem o qual a atuação do Estado, inevitavelmente sujeito a grupos de pressão e a interesses estamentais da moderna burocracia, se torna facilmente um exercício de arbítrio camuflado por supostos ditames de princípios públicos relevantes.
As dificuldades desta compatibilização em face das duas exigências mencionadas repousam, afinal, no inevitável reconhecimento de que estas têm caráter distinto: a exigência do compromisso é um problema político nos seus meios e nos seus fins, enquanto a exigência de um quadro constitucional rigoroso é tipicamente um problema jurídico. Esta dualidade de caráter espelha, na verdade, o fato de que Estado de Direito é um conceito jurídico, o mesmo não sucedendo com o conceito de Estado Social (Ernst Fortshoff, Rechtsstaat im Wandel, Müenchen, 1976, p. 89). As garantis proporcionadas pelo contorno constitucional do Estado de Direito são, assim, acima de tudo, delimitações com sentido eminentemente técnico-normativo. Pressupõem, portanto, um conceito de Estado que, em relação à liberdade dos cidadãos, deixa valer o status quo. Já os objetivos exigidos do Estado Social pressupõem um Estado ativo, que desempenha funções distributivas, que, em última análise, desconhece o dualismo entre Estado e Sociedade. Em consequência, enquanto para o Estado de Direito o fenômeno do poder é, por definição, circunscrito e delimitado no seu contorno constitucional, o Estado Social extravasa aquelas delimitações, pois nele as possibilidades de extensão das formas de domínio são imensas, podendo atingir intensidades sutis e fora de qualquer controle. Afinal, se ao indivíduo, para sobreviver, não basta mais, como acontecia no século XIX, um relacionamento direto e concreto com as fontes naturais (lenha, frutos, animais, floresta, campo, pasto), mas urbanizado e metido nas malhas da envolvente industrialização, exige providências organizacionais que nenhuma corporação isolada pode fornecer, então ele não é mais alguém que vive num Estado, mas alguém que dele depende.
Ora, o grande drama do reconhecimento constitucional do Estado Democrático de Direito está no modo como as exigências do Estado Social se jurisfaçam nos contornos do Estado de Direito. E o princípio, ainda que abstrato e genérico, desta compatibilização, só pode ser um único: impedir a todo custo que as chamadas "funções sociais do Estado" se transformem em funções de dominação (Forsthoff, 1976, p. 55). É preciso, pois, ver no reconhecimento do Estado Democrático de Direito um claro repúdio à utilização desvirtuada de necessárias funções sociais — como é o caso, obviamente, do combate à inflação e suas consequências pervertedoras do bem-estar coletivo — como instrumento de poder. Isto, de um lado, destrói o Estado de Direito e, de outro, perverte o Estado Social, desnaturando, em consequência, o Estado Democrático de Direito constitucionalmente reconhecido.
Ora, não há outro meio jurídico para a realização deste princípio, que uma compreensão das funções do Estado-agente regulador e normativo da atividade econômica, fortemente ancorada numa hermenêutica constitucional que saiba lhe impor diretrizes.
Isto porque, justamente no plano da liberdade econômica, na medida em que o legislador tende a ser autônomo na formulação das finalidades legislativas, cresce sua disponibilidade sobre os meios, o que pode conduzir no caso concreto, a formas de intervenção fora de controle. Deve-se reconhecer, nestes termos, que o exercício da fiscalização de preços, na forma da lei (art. 174), deve obedecer a certos princípios que, por exemplo, a dogmática constitucional alemã chama de "proibição do excesso", "proporcionalidade" e "exigibilidade" (Grabitz, 1976/95). Pelo princípio da exigibilidade, o Poder Público assume certas finalidades como exigências maiores do interesse coletivo inerentes ao Estado Social e as estabelece como constantes, em função das quais variam os meios. Isto, porém, é temperado pelo princípio da proporcionalidade, que nos obriga a ver fins e meios como variáveis mutuamente dependentes e adequadas uma à outra. Assim, não obstante a fixação de uma finalidade, esta não deve ser estabelecida sem se levar em consideração os meios disponíveis, nem estes devem ser invocados caso nos levem para além das finalidades. Os dois princípios, porém, mormente o segundo, tem um caráter meramente formal que exige um novo temperamento, que é dado pelo princípio da proibição do excesso. Por esse princípio cabe ao Poder Público o ônus da prova da exigibilidade do interesse público, tomado como relevante, e da proporcionalidade da relação meio/fim, toda vez que uma medida seja limitadora de uma liberdade constitucional.
Somados, todos esses princípios dogmáticos revelam-se, por fim, instrumentos jurídicos que nos permitem evitar que a extensão e a intensidade do poder de dominação, inerentes às exigências do Estado Social, escapem ao controle do Estado de Direito, pondo em risco o Estado Democrático de Direito. Evita-se, por seu intermédio, a conversão de funções sociais em funções de dominação; acautela-se, deste modo, o Poder Público contra o risco de perverterem-se suas legítimas funções, pelo excesso de concentração de poder escondido sob a capa ideológica do interesse público relevante. Afinal, onde quer que o ethos funcional do estamento burocrático do Estado seja substituído por uma vontade de poder, anula-se o direito, abrindo-se as portas para jogos de influência sem peias nem limitações.
II — O chamado "Plano Verão"
Pelo que foi dito, resulta, consequentemente, que a Lei 7.730 de 31.1.89, conquanto mencionada como instrumento jurídico do chamado "Plano Verão", não deve ser considerado como plano nem como exercício pelo Estado de função de planejamento. Trata-se antes de um programa de estabilização econômica nos quadros de uma política governamental, que deveria assumir juridicamente o caráter de exercício de função fiscalizadora.
A constitucionalidade desta função exige que seus instrumentos legais não se confundam com os da planificação racional da economia, própria do dirigismo econômico. Por isso não podem negar nem a liberdade de iniciativa, nem o direito de propriedade dos bens de produção, nem substituir o mercado como sistema de livre concorrência pela "mão visível" do Poder Público, isto é, pela adoção de técnicas de centralização das decisões econômicas como determinantes de produção, consumo e preços.
São dois, a nosso ver, os instrumentos básicos do programa de estabilização configurados na Lei: o congelamento de preços e a extinção da OTN como meio de indexação da economia. Com isso visou à escalada inflacionária, ao dar-lhe um tratamento de choque, e à "otenização" da moeda, ao desvincular-se o índice medidor da inflação dos índices de correção monetária, que passariam a ser distintos para os diversos setores. Neste conjunto, o fator salário não é congelado, mas indiretamente reprimido na medida em que se proíbe o aumento de preços (e, posteriormente, a sua repercussão integral nos aumentos autorizados), sendo que se impõe aos servidores públicos da União — Distrito Federal — um regime de reajuste de acordo com os desempenhos das receitas líquidas.
Por outro lado, para assegurar o processo de desindexação, exige-se a eliminação da expectativa inflacionária contida nos preços e se impede a estipulação de correção monetária para certos contratos para períodos inferiores a 90 dias.
O congelamento de preços, enquanto não se lhe estabeleça prazo, é presumido como provisório. Assim, de um lado, o art. 8.° da Lei 7.730 fala em "prazo indeterminado" e o § 2.° do art. 14 menciona que "encerrado o período de congelamento...", ao referir-se ao reajuste de aluguéis. E não poderia ser de outro modo, pois um congelamento sem prazo e sem presunção de encerramento pressuporia uma economia totalmente controlada, com extinção completa da livre concorrência e disciplina rígida de todos os fatores formadores de preços, o que significaria, de fato, o fechamento da economia nacional a todos os mercados externos.
O congelamento previsto tem o caráter jurídico de um tabelamento (art. 8.°, § 1.*: "O congelamento de preços equipara-se, para todos os efeitos, ao tabelamento oficial"). Trata-se, portanto, de bloqueio de preços em determinado nível, independentemente de qualquer compatibilização com sua evolução e as respectivas variações de produção e comercialização, atendidos certos pressupostos. Assim, o congelamento é determinado tendo em vista uma data — 14.1.89 — e para a sua revisão ou suspensão não estão previstos critérios (apenas os representantes das classes empresariais e dos trabalhadores devem ser ouvidos, deles, portanto, não dependendo a decisão, que cabe ao Ministro da Fazenda — art. 12, I, da Lei 7.730). Posteriormente, a MP 48, de 19.4.89, reforça a instrumentalidade do congelamento como bloqueio e tabelamento, ao submetê-lo renovadamente à decisão ministerial e ao excluir da eventual revisão de preços reajustes e aumentos salariais concedidos a partir de 16.1.89 em percentual superior à variação do IPC desde fevereiro/89, bem como reajustes compensatórios previstos pela própria Lei 7.730 (art. 3.° e seu parágrafo único da MP 48). Nenhuma palavra sobre critérios, salvo o de exclusão retromencionada. O que se fixa são apenas periodicidades (90 dias, salvo autorização específica do Ministro da Fazenda) e exclusão de percentuais que excedam o IPC no reajuste salarial, desde a última revisão (art. 4.°, I e II, da MP 48). Curiosamente, uma medida provisória subsequente (MP 51, de 27.4.89), no seu art. 1.°, volta a autorizar o Ministro da Fazenda a rever, em caráter especial, o congelamento de preços, o que já estava previsto pelo art. 12 da Lei 7.730, desta feita, porém, sem mencionar a necessidade de serem ouvidos os representantes das classes empresariais e trabalhadoras. O que nos deve fazer concluir que, ao menos no que se refere à revisão em caráter especial e à liberação de preços de produtos ou serviços específicos, inclusive por setor, o Ministro da Fazenda tem o juízo total dos critérios, sem precisar ouvir ninguém.
Por último, embora com isso não se deva supor uma apreciação abrangente de todas as normas atinentes ao Plano Verão, por intermédio de Nova Medida Provisória (MP 52, de 27.4.89) restaura-se o art. 11 da Lei Delegada 4, de 26.9.62, com que se pune, com multa de 500 a 200.000 BTN's, atos que se referem a desrespeito a tabelamento e a fórmulas de reajuste disciplinadas por lei, regulamento, instrução ministerial, ou por órgão ou entidade competente (art. 11, alíneas a e r), entre outros. A coligação dos instrumentos legais do "Plano Verão" com dispositivos da Lei Delegada 4, que a MP 52 supõe vigente e constitucional na sua integridade, mormente com dispositivos que consagram um rígido sistema de sanções, aponta para o sentido dirigista que acaba tomando, no seu envolver, o programa de estabilização econômica.
Senão vejamos:
O congelamento ocorre pela terceira vez na vida constitucional brasileira. As eventuais dúvidas sobre a sua estrita constitucionalidade, ainda sob o regime da Constituição de 1967/69, foram levadas de roldão, por ocasião do "Plano Cruzado", sob a alegação de uma legitimidade popular explícita, ainda que difusa. Criou-se, com isso, uma espécie de costume constitucional, que fez admitir o "Plano Bresser" e acabou por induzir a uma espécie de reconhecimento por omissão no caso do "Plano Verão", já sob o regime da nova Constituição.
O congelamento em si, ainda que equiparado a tabelamento, não significa uma medida dirigista. A equiparação a tabelamento diz respeito aos seus efeitos, mas não é a mesma coisa. Congelar preços é medida limitada no tempo que estabelece um freio momentâneo na escalada de preços, com o fato de proporcionar ao próprio mercado uma espécie de transparência dos seus mecanismos, obscurecidos que ficam nos processos inflacionários indexados. Por isso é importante que preveja a participação concertada de todos os segmentos econômicos, coordenados pelo Poder Público. Mas não deve extrapolar para fórmulas centralizadoras da formação de preços, que passam a ditar sua formação contra as regras do mercado, isto é, da livre concorrência.
A livre concorrência de que fala a atual Constituição, como um dos princípios da ordem econômica (art. 170-IV), não é a do mercado concorrencial oitocentista, de estrutura atomística e fluida, isto é, exigência estrita de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de um ou uns sobre outros. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental competitivo que admite gradações, tanto de pluralidade quanto de fluidez. É este elemento comportamental — a competitividade — que define a livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base da formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve gerar estratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada (cf. Alberto Pinheiro Xavier, "Repressão aos abusos do poder econômico", in Curso de Direito Empresarial, vol. 3.°, São Paulo, 1976, p. 80).
Ora, é aqui que entra a distinção entre intervencionismo e dirigismo. O primeiro é atitude flexível, que visa a estimular o mercado e a definir as regras do jogo. Já o segundo se caracteriza por uma atitude rígida, que impõe autoritariamente certos comportamentos (Pinheiro Xavier, p. 82). Neste há uma direção central da economia que funciona na base de um plano geral obrigatório que todos executam; a entidade autora do plano determina a necessidade dos sujeitos e a sua prioridade, fixa os níveis de produção e de preços e opera direta ou indiretamente a distribuição dos bens produzidos. No primeiro, a produção é fixada pelos produtores, a repartição opera pela circulação livre dos bens e a formação dos preços ajusta-se pelas regras do mercado. Mas não exclui a intervenção do Estado para estimular convergências de base e o estabelecimento de compromissos para além de simples conjunções verbais (cf. Antônio Menezes Cordeiro, Direito da Economia, 1.º vol., Lisboa, 1986, pp. 158 e ss.).
Nestes termos, o congelamento deve ser entendido como medida de intervenção de caráter excepcionalíssimo que visa adequar o sistema da ordem econômica (cujos fundamentos estão na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano) aos princípios da livre concorrência e da defesa do consumidor, quando ocorram desvios graves de funcionamento, como é o caso de uma hiperinflação. Trata-se, assim, de medida de direito econômico cuja base constitucional está no art. 170, IV e V. Tem caráter compulsório, devendo ser transitória, propiciar uma transparência do mercado para o próprio mercado, estimular ajustes entre os seus próprios agentes, cuja participação não pode excluir, sendo acompanhada de instrumentos de fiscalização nos termos em que a Constituição entende esta função.
Ora, assim compreendido, o congelamento de que trata a Lei 7.730 e outras normas que se seguiram a ela, tem aspectos de duvidosa constitucionalidade que devem ser realçados. A começar do art. 8.° que congela os preços "por prazo indeterminado". Esta indeterminação e sua correspondente delimitação sendo atribuída ao Ministério da Fazenda (art. 12) geram, de um lado, uma insuportável incerteza e segurança no comportamento dos agentes econômicos, de outro, criam uma discricionariedade sem parâmetros, posto que cabe ao Ministro o juízo total de oportunidade. Se é verdade, como assinala Arnoldo Wald ("O Direito do Desenvolvimento", in RT 383/11) que as normas de direito econômico exigem reações imediatas, que não se coadunam com as longas tramitações legislativas e representam, em certo sentido, o triunfo do poder discricionário da administração, não menos verdade é que esta discricionariedade tem de estar balizada pela lei sob pena de se caracterizar uma indevida delegação de poderes e consequente instauração de arbítrio administrativo.
Em segundo lugar, assinale-se que, como vimos, se o art. 12 da Lei 7.730 previa ao menos que representantes das classes empresariais e trabalhadoras devessem ser ouvidos para efeito de suspensão ou revisão do congelamento, o art. 1.° da MP 51, de 27.4.89, conferiu exclusivamente ao Ministro a competência para rever, em caráter especial, o congelamento. Com isso se alijou de vez (salvo talvez para a suspensão) a participação dos agentes econômicos. Ademais, se o objetivo de um congelamento é conferir transparência ao mercado, a ausência total de critérios legais, salvo as proibições de incorporação nos preços de aumentos salariais em determinada porcentagem, acaba por torná-lo de novo obscuro, posto que substitui as obscuridades geradas pela hiperinflação indexada por um arbítrio administrativo que passa a ditar o quem, o como, o porquê e o quanto das revisões (arts. 3.° e 4° da MP 48, de 19.4.89).
Por fim, a equiparação do congelamento, para todos os efeitos, ao tabelamento oficial merece uma consideração mais detida. Os §§ 2.° e 3." do art. 12 da Lei 7.730 fazem menção, respectivamente, a produtos sujeitos ao controle oficial e a preços efetivamente praticados em 14.1.89. Em nenhum dos casos o tabelamento previsto deve ser entendido como instrumento de dirigismo econômico. Ou seja, em ambos não se trata de fixação de preços, a priori, pelo Poder Público, mas, de um lado, autorização de preços conforme proposta dos próprios agentes: é o sentido da função fiscalizadora do Estado, que se limita, no caso do CIP, a exigir a prévia apresentação de aumentos programados (Dec. 63.196/68) para autorização posterior de sua prática; de outro, é o sentido correspondente, no caso dos preços praticados em 14.1.89, que devem ser ajustados pelo próprio mercado para eliminar expectativas inflacionárias, o que pressupõe um processo de entendimento entre os próprios agentes. Assim, quando se equipara para os seus efeitos, congelamento e tabelamento, o que se tem em vista é a defesa do consumidor e do comportamento competitivo. Ou seja, o tabelamento, nos quadros da ordem econômica constitucional retro-apresentados, só pode ser entendido como instrumento balizador de preços para efeito de repressão ao aumento arbitrário de lucros (art. 173, § 4.º, da CF) enquanto uma forma de comportamento que afeta a regra de congelamento. Não tem nem pode ter, portanto, o sentido que lhe atribui a Lei Delegada 4, que se refere a fixação a priori de preços nos quadros de uma economia dirigida, com seu rígido sistema de sanções, por todos os motivos tornada inconstitucional com o advento da nova Constituição de 1988.
Este sistema, que consta do art. 1.º da MP 52, de 27.4.89, é inconstitucional, já por tomar como vigente uma lei dirigista, incompatível com o regime da nova ordem econômica. Ademais, ainda que se admitisse a constitucionalidade da Lei Delegada 4, o mencionado art. 1.º da MP 52 instaura um sistema de sanções por si inconstitucional. Conquanto o caput do restaurado art. 11 sujeita a multas o infrator, sem prejuízo de sanções penais, o rol dos delitos, embora não penais, deve estar subordinado ao princípio da tipicidade. O princípio, ademais, no âmbito do direito econômico, apresenta peculiaridades que exigem rigor e rigidez ainda maiores, posto que configura, como ilícitas, certas condutas ou atividades prima facie perfeitamente harmônicas com o direito como vender, comprar, reter em estoque, transferir locação, exportar, importar, formar empresas etc. Em consequência, na fixação dos delitos e das penas ele deve ser absolutamente claro, posto que se trata de um ilícito artificial em que o indivíduo não tem a sua consciência como guia (cf. Jean Hemard, "Aspect du Droit Ëconomique Français", in Revue de Science Criminelle et de Droit Penal Comparé, 1957, p. 29, apud José Frederico Marques, "Direito Penal Econômico — Princípios sobre a interpretação de suas normas — do conceito de monopólio", in Poder Econômico: exercício e abuso — Direito antitruste brasileiro, Ed. RT, São Paulo, 1985, p. 477).
Ora, uma leitura simples dos ilícitos configurados pela MP 52 aponta, inicialmente, para tipos em branco, que se completam por disposições provenientes da autoridade administrativa, estas incertas e variáveis e além do mais etéreas e difusas, como é, por exemplo, o caso da alínea n ("descumprir ato de intervenção, norma ou condição de comercialização ou industrialização estabelecidos") ou da alínea a ("vender ou expuser à venda mercadorias ou contratar ou oferecer serviços por preços superiores aos oficialmente tabelados, aos fixados pelo órgão ou entidade competente, aos estabilizados em regime legal de controle ou ao limite de variações previsto em plano de estabilização econômica, assim como aplicar fórmulas de reajustamento de preços diversas daquelas que forem pelos mesmos estabelecidas"), ou da alínea j ("dificultar ou impedir a observância das resoluções que forem baixadas em decorrência desta lei"). Outras envolvem conceitos indeterminados que descrevem condutas em si perfeitamente lícitas, como "favorecer ou preferir comprador ou freguês, em detrimento de outros, ressalvados os sistemas de entrega ao consumo por intermédio de distribuidores ou revendedores" — alínea d —, ou "subordinar a venda de um produto à compra simultânea de outro produto ou à compra de uma quantidade imposta" — alínea i — conduta que dependendo das circunstâncias (quem as determinaria?!): venda a varejo, venda no atacado, produtos tecnicamente vinculados, bem poderia caracterizar perfeita licitude. Outras ainda exigem condutas indiscriminadamente compulsórias, sem nenhuma atenção as situações conjunturais e a regras de mercado, como, por exemplo, "impedir, restringir ou limitar a produção, comercialização ou distribuição de bens ou a prestação de serviços no País" — alínea p — o que acaba por exigir do empresário, em relação a qualquer bem ou serviço, um comportamento desesperado de produzir e vender a todo transe na expectativa de, assim, não estar incorrendo no pseudotipo.
Por outro lado, o balanceamento das penas — multas de 500 a 200.000 BTN's — não aferiu de modo algum a proporção entre a gravidade das condutas proibidas e as correspondentes sanções, tudo ficando ao pleno arbítrio (e não à discricionariedade) do aplicador. A distância entre dois extremos exigiria obviamente uma correta tipificação ao menos dos parâmetros da discricionariedade. Sua ausência cria, para o empresário, um verdadeiro clima de terror, e, para ,o aplicador, um instrumento de poder, posto que, contra toda a expectativa do Estado Democrático de Direito retro-apresentada, transforma uma função fiscalizadora numa função de dominação, autocrática e arbitrária.
Pelo exposto, pode-se concluir que, tanto no tocante à tipificação dos ilícitos, quanto no tocante às sanções, a MP 52 fere princípios constitucionais relevantes como os constantes nos incs. XLVI, XXXIX, do art. 5.° da Constituição. Além disso, faz-se uso, para estabelecer ilícitos e sanções de um instrumento — a medida provisória — manifestamente imprópria para este tipo de disciplina, posto que sua provisoriedade torna seus preceitos incertos e inseguros, ferindo-se a isonomia, posto que pode-se punir hoje alguém por uma conduta que, passados 30 dias, será retroativamente lícita (cf. Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, Parecer inédito sobre "Minuta de Medida Provisória n. 2", janeiro de 1989).
Em conclusão, a análise da constitucionalidade do chamado "Plano Verão" leva-nos a considerar que o congelamento de preços, como instrumento de política econômica e meio excepcional de defesa do consumidor e da livre concorrência, vem produzindo medidas normativas de manifesta inconstitucionalidade, como são as que exemplificadamente foram apresentadas. Isto posto, podemos agora passar a responder sucintamente os quesitos formulados na consulta.
III — Resposta aos quesitos da consulta
1. Os arts. 3.º e 4.º da MP 48 são constitucionais?
Nos dois artigos, no caput do 3° e no inc. I do 4°, o Ministro da Fazenda é competente, nos termos do art. 12 da Lei 7.730, para autorizar expressamente a primeira revisão de preços, após a publicação da MP 48 e a alterar a periodicidade de revisões posteriores, fixada em 90 dias. Esta competência lhe é atribuída sem qualquer parâmetro. Atribuísse-lhe tanto o juízo sobre as condições, circunstanciais e estruturais, como sobre os efeitos condicionados. Ora, se, como dissemos anteriormente, o objetivo do congelamento é conferir transparência ao próprio mercado, a ausência de parâmetros legais para o exercício de ato discricionário torna o mercado de novo obscuro, porque sujeito à arbitrariedade do Poder Público. A garantia da liberdade exige, assim, que a lei configure os atos da administração de modo a torná-los mensuráveis, previsíveis e controláveis. Atribuir uma competência em branco, ainda que por instrumento, com força de lei, é usá-lo apenas para "legitimar" equivocadamente finalidades do Poder Público. Isto fere, a nosso ver, o princípio inscrito no art. 37 da Constituição. Ou seja, admitida a constitucionalidade do congelamento, este está adstrito ao princípio da legalidade que não se contrapõe à discricionariedade, mas a informa e lhe dá limites.
Além disso, o parágrafo único do art. 3.° e o inc. II do art. 4.° impõem restrição à própria revisão dos preços que podem obrigar, no limite, os agentes econômicos a negociar seus produtos com prejuízo, o que fere o sentido da ordem econômica que consagra o regime da livre iniciativa e do livre mercado. Ao se cercear o agente econômico no que se refere à repercussão dos salários nos preços, o Poder Público acaba por interferir no princípio constitucional da "busca do pleno emprego" (art. 170, VIII), pois força o empregador a tomar medidas indesejáveis.
Concluímos, pois, pela inconstitucionalidade dos referidos artigos da MP 48.
2. O art. 174 da CF autoriza a instauração de um dirigismo econômico?
A questão foi discutida largamente no curso da exposição. Em poucas palavras deve-se reconhecer que a Constituição repudia o dirigismo econômico. Onde quer que se admitam a livre iniciativa e a propriedade privada dos bens de produção, não há lugar para tal dirigismo, entendido como uma direção geral da economia que funciona na base de um plano geral obrigatório para executantes e destinatários.
3. O art. 1.º da MP 51 contempla uma delegação ao Ministro da Fazenda? Em caso afirmativo, essa delegação encontra fundamento constitucional?
O art. 51 autoriza o Ministro da Fazenda a rever, em caráter especial, o congelamento de preços, bem assim os preços de produtos ou serviços específicos, inclusive por setor, e os contratos de qualquer natureza. A competência dos Ministros de Estado é para expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos, como prevê o art. 87, parágrafo único, inc. II, da Constituição. Ora, o congelamento e sua revisão são objeto da lei. Sendo congelamento uma medida transitória, sua revisão faz parte do seu conteúdo. Se a lei instaura o congelamento, deve caber a ela fixar prazo e parâmetro de sua revisão. Dentro destes marcos é que deveria ocorrer a atividade ministerial, por meio de instruções. O art. 51 contém, portanto, a nosso ver, uma delegação sem base constitucional.
4. É constitucional dispositivo legal que preveja multa cujo dimensionamento apresenta tal amplitude que implique em meio indireto de inibição do exercício da atividade econômica?
Como já fizemos ver, por meio deste dispositivo da MP 52, especificamente ficam feridos os incs. XLVI e XXXIX do art. 5° da Constituição.
5. Ë constitucional dispositivo legal que deixa ao Executivo (pela sua administração direta e indireta) total margem de decisão na aplicação concreta da penalidade de multa (com a dimensão indicada no quesito anterior) sem fixar os parâmetros que devem pautar sua fixação concreta?
Como já fizemos ver, este dispositivo da MP 52 cria para o empresário um verdadeiro clima de terror e, para seu aplicador, um instrumento de poder que transforma uma função fiscalizadora numa função de poder, ao arrepio do Estado Democrático de Direito.
6. São constitucionais os dispositivos da MP 52, que: a) restauram a Lei Delegada 4/62; b) estabelecem multa de 500 a 200.000 BTN's; c) que o fazem sem indicar os critérios de dimensionamento a serem seguidos pelo aplicador; d) que introduzem na definição dos tipos de infração conceitos absolutamente indeterminados sujeitos a preenchimento de caráter totalmente subjetivo pelo aplicador?
Os quesitos b e c já foram respondidos nas questões 4 e 5. Quanto ao quesito a, não há dúvida de que a restauração da Lei Delegada 4/62 esbarra no regime da ordem econômica constitucional, que não admite o dirigismo econômico. Quanto ao quesito d, a indeterminação dos tipos ademais de condutas que, em si, não constituem ilícitos, atenta contra a exigência de tipicidade, implícita para a configuração de ilícitos desta natureza, na garantia constitucional do art. 5.°, XXXIX.
É o nosso parecer.
São Paulo, 9 de maio de 1989
Fonte: Revista de Direito Público, n.º 91, RT, São Paulo: 1989, pp. 76/86.