Tercio Sampaio Ferraz Jr
1. O tema em tela é antigo. Largamente discutido na doutrina e na jurisprudência, conheceu uma aparente estabilização com a edição da Súmula 584, baixada antes da Constituição de 1988, cujo teor é o seguinte: "ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração".
Essa estabilização, contudo, não tem sido assim tão tranquila, tendo merecido largas discussões em face dos seus pressupostos jurisprudenciais e doutrinários. Afinal, à época, a Súmula já despertara intensa polêmica, por afetar negativamente os princípios da anterioridade e da irretroatividade. Tanto que a jurisprudência foi, paulatinamente, reinterpretando lhe o sentido. O próprio Supremo, em algumas ocasiões, chegou a afastar-lhe a aplicação, por entendê-la retroativa (RE 103.553-PR, rel. Min, Octavio Gallotti; ERE 103.553-PR, rei. Min. Carlos Caldeira), tendo sido ela objeto de estudo crítico do Min. Velloso (Temas de Direito Público, ed. Del Rey, 1994).
2. O problema que se enfrenta está, em termos simples, na definição de qual o momento de ocorrência do fato gerador do Imposto de Renda, bem como de qual a lei aplicável aos rendimentos auferidos durante o ano em que lei nova é publicada.
Conforme a Súmula 584 e em razão dos acórdãos que a fundamentavam, a lei publicada no período-base alcançaria os rendimentos do mesmo período, tendo em vista que não haveria ocorrência do fato gerador no período-base. Estes seriam apenas estimativa de renda do exercício financeiro seguinte. Assim, o fato gerador ocorreria no primeiro instante do dia 1° de janeiro do ano em que ocorre a declaração.
Com o advento do CTN, a Súmula começou a sofrer restrições quanto à sua aplicação integral, pois, segundo a doutrina e a jurisprudência, ficou assentado, ao menos, que o fato gerador do IR e a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda se daria no último instante do período base, sem prejuízo dos debates sobre o peso a ser conferido aos eventos ocorridos sucessivamente durante todo o período. Como argumentou Luciano Amaro, se "a lei põe a consequência [pagamento do imposto] no mês seguinte, no trimestre seguinte ou no ano seguinte - isto não desloca a causa [aquisição da renda] para o mês, trimestre ou ano seguinte" (Cadernos de Pesquisas Tributárias, n° 11, 1986, p. 375). E, na Representação n. 1451-DF, o relator, Min. Moreira Alves, dizia: "Portanto, se, em virtude da legislação vigente, quando da ocorrência do fato gerador do Imposto de Renda (no caso, 31-12-1986), deu este nascimento a obrigação de dinheiro..." (RTJ, 127/804).
Não obstante, a aplicação (parcial) da Súmula ainda lança uma visão divergente sobre o tema. Embora voto vencido, o Min. I. Galvão sustenta que "a nova lei pode viger no mesmo período em que foi editada, incidindo sobre os fatos jurídicos posteriores à sua vigência, vedando-se, tão somente, a cobrança (ou a exigência) do tributo no mesmo exercício" (v. RTJ 143/681). Na verdade, o Ministro dá à Súmula uma interpretação diferente da que lhe deu origem. Aceita que o fato gerador do IR ocorre no último instante do ano-base (e não no primeiro instante do período seguinte, como acontecia na jurisprudência original), mas admite a sua aplicação na medida em que lei editada ainda no ano-base não deixa de ser anterior ao fato gerador (não se lhe opondo a irretroatividade: o fato era pendente) e o princípio da anterioridade apenas impede que o imposto seja cobrado no mesmo exercício (em 1° de janeiro ela é lei vigente e se aplica ao fato pendente que se consumou no dia 31 de dezembro).
Posta nesses termos, a questão, afinal, é, em termos da Constituição: pode a lei impor obrigações tributárias a fatos ocorridos antes de sua vigência (CF, art. 150, III, a) e/ou a fatos ocorridos no exercício em que é editada (art. 150, III, b)?
3. Para discuti-la faz mister uma menção ao direito fundamental à segurança e aos princípios da irretroatividade e da não-surpresa que, na lei suprema de 1988 ganharam contornos de maior relevo.
Em seu voto como relator no RE n. 141.602 - PE (RTJ 143/680), o Min. Pertence, citando Misabel Derzi, contrapõe-se ao entendimento de que a anterioridade requerida constitucionalmente estabeleça não mais que um prazo de cobrança e pagamento, o que anularia o sentido mais profundo do princípio da não-surpresa.
Trata-se de um posicionamento de grande ponderação. A anterioridade, como a irretroatividade, é expressão do direito à segurança. Esta, além de direito fundamental, é um dos valores básicos do Estado Democrático de Direito, como se vê na CF, em seu Preâmbulo. Contra o espírito intervencionista da Constituição anterior, que via no Estado um guardião da racionalidade econômica e sobrepunha sua força ao exercício da cidadania, a vigente CF põe em relevo a segurança enquanto submissão do Estado à lei e delimitação clara e eficaz de sua atuação, freio importante da arbitrariedade. A legalidade (lata e stricta) é uma de suas manifestações. Mas não só; a ela se acrescem a irretroatividade, em geral, a irretroatividade específica e a anterioridade, no plano tributário.
Ambos os princípios têm a ver com o fator tempo na configuração dos eventos vitais. Trata-se do tempo cronológico, caracterizado pela irreversibilidade de um momento indefinido no passado que se projeta para um momento indefinido no futuro, e que tem uma qualidade entrópica (tudo morre), como se vê pela segunda lei da termodinâmica (Cf. François Ost: "Le temps, quatrième dimension des droits de 1'homme", in Journal dês Tribunaux, 99 - 2). Neste inelutável do tempo físico introduz-se a cultura (ética, direito) corno a capacidade de retomada reflexiva do passado e antecipação reflexiva do futuro. É a capacidade de reinterpretar o passado (sem anulá-lo ou apagá-lo) - por exemplo, pela responsabilização por aquilo que aconteceu - e de orientar o futuro (sem impedir que ele ocorra) - por exemplo, usando-o como finalidade reguladora da ação -. Entre o passado e o futuro o tempo cultural aparece, assim, como duração, cuja experiência se dá no presente, vivido como um contínuo. A duração, deste modo, liga o passado e o futuro: torna o passado (que não é mais) algo ainda interessante e faz do futuro (que ainda não ocorreu) um crédito, base da promessa.
A questão está em como estabelecer este liame e dar consistência à duração, isto é, evitar que um passado, de repente, se torne estranho, um futuro, algo opaco e incerto, e a duração, uma coleção de surpresas desestabilizadoras da vida. Afinal, se o sentido de um evento passado pudesse ser alterado ou o sentido de um evento planejado pudesse ser modificado ao arbítrio de um ato presente, a validade dos atos humanos estaria sujeita a uma insegurança e uma incerteza insuportáveis.
A não-retroatividade da lei tem a ver com este problema (Ost). Trata-se de respeitar o passado em face das alterações legais, precavendo-se de tornar ilusórias, retrospectivamente, as expectativas legítimas (boa-fé, promessas, acordos) contidas no evento acontecido, por força da revogação. O princípio da irretroatividade resgata e sustém um passado em face do futuro, garantindo essas expectativas legítimas em face da lei nova. O sentido de um evento passado adquire, assim, um contorno próprio, conforme a legislação então vigente, tornando-se imune ao sentido que lhe atribua a lei posterior, ressalvadas as alterações in bonam partem.
Já a anterioridade diz respeito à duração. A salvaguarda contra a surpresa exige a periodicidade, que confere aos eventos um mínimo de durabilidade. Por isso, em todas as culturas, o tempo é dividido e contado. Trata-se de dar ao tempo presente uma consistência, fazendo dele um todo extenso e compacto, entre um começo e um fim, dentro do qual os eventos são solidários. Sem essa divisão e essa contagem, o homem não conseguiria planejar a sua ação. O princípio da anterioridade periodiza o tempo e lhe dá um sentido de unidade, protegendo os eventos que dentro dela acontecem contra alterações legais que ocorram no período. Não se trata de impedir as revisões legais, mas de garantir as mudanças que elas trazem contra o sobressalto e a surpresa. Sem esta garantia, os eventos não duram (perdem o sentido da duração) e se tornam insignificantes (perdem legitimidade). O estabelecimento de períodos (um dia, um mês, um ano), dentro dos quais a lei nova não produz efeitos, é, assim, vital para o implemento da segurança jurídica.
4. Ora, estas observações permitem iluminar peculiarmente os princípios da irretroatividade e da anterioridade, em sede tributária, na CF.
O entendimento do tema à luz da CF de 1988 deve começar por um esclarecimento da vigência e eficácia normativas, envolvidas nos referidos princípios.
O art. 150, III, alíneas a e b da CF utiliza-se das expressões "início da vigência" e "haja sido publicada a lei". O termo vigência conhece explicações diferentes na doutrina, ora aproximando-se ora afastando-se de eficácia. Pode-se entender que ambas as noções devam ser compreendidas a partir do fenômeno da validade (Ferraz Jr. Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo, 1994, 4.3.2. pp. 196 ss.).
Que uma norma vale significa, no senso comum jurídico, uma adequação formal ao sistema normativo (norma produzida conforme as regras de competência nele estabelecidas) e uma adequação material (norma produzida conforme princípios, conteúdos, mens legis, fins do sistema), presumindo-se o sistema conforme uma estrutura hierárquica.
A norma válida, via de regra, é também a norma dotada de império ou força, isto é, impõe-se antes de tudo e a despeito de qualquer controvérsia (lex prima fade valet). Mas o império ou força não se confunde com a validade. Mesmo a norma inválida pode, em determinadas circunstâncias, estar e até ser dotada de império (por exemplo, a norma inconstitucional assim declarada incidenter tantum, enquanto não revogada ou enquanto não tiver sua eficácia suspensa). É a sua imperatividade que levanta a questão da vigência e da eficácia.
Vigência significa que a norma vale (exigibilidade da conduta) a partir de um certo momento (início de vigência). A vigência tem, pois, a ver com o tempo de validade. O tempo de validade é sempre prospectivo. Uma norma não vale para trás. Vale sempre de um ponto, no tempo, para frente. O tempo é o tempo cronológico, que corre de um momento para o futuro. Uma norma, assim, não pode valer para trás. Promulgada, a norma vale e, publicada, conta-se daí a sua vigência. A vigência pode ser posposta (o prazo pode contar a tantos dias da sua publicação, mas sempre para frente, não para trás). Não há, pois, como contar este tempo antes de sua publicação: isto decorre de uma impossibilidade lógica, pois mesmo que se quisesse "retroagir" a vigência, a cronologia o impediria - o tempo é irreversível.
Mas ela pode ter eficácia retroativa. A partir do momento em que ela vale, isto é, é vigente, seus efeitos podem retroagir e a norma, imperar sobre o passado; A eficácia tem a ver com a possibilidade de produzir efeitos. Esta possibilidade é prospectiva ou retroativa. Nada impede que, a despeito da cronologia (vigente a partir de um momento em direção ao futuro), o destinatário da norma possa considerá-la, a partir de quando ela vale, como produzindo efeitos sobre fatos e atos já sucedidos. Neste sentido, a sua força ou império pode atingir o passado. É o fenômeno da retroatividade cuja possibilidade é regulada pelo princípio da irretroatividade.
Para entender a exclusão da eficácia retroativa (irretroatividade), é preciso ademais distinguir entre eficácia e incidência. Eficácia não é incidência (configuração in concreto de um direito ou de um fato) mas possibilidade de incidência. Eficácia não é obediência e aplicação concretas mas possibilidade (fática - efetividade - ou jurídica - eficácia técnica) de obediência e aplicação. A norma não é eficaz porque é obedecida e aplicada, mas porque preenche os requisitos (sociais e normativos) para ser aplicada e obedecida (donde, por exemplo, a distinção entre eficácia plena, limitada e contida e a distinção entre eficácia social e técnica). Neste sentido, a eficácia é condição de incidência. Sem eficácia (possibilidade de incidir) não há incidência.
Retroatividade tem a ver com incidência normativa. Quando uma norma eficaz produz o efeito previsto sobre fato ocorrido no passado, diz-se que ela incide retroativamente. Incidência significa que a um fato acontecido, posterior ou anterior à vigência, deu-se a configuração normativa (cf. Ferraz Jr., op. cit., 4.3.4. p. 249). Tratando-se, por exemplo, de uma configuração subjetiva fala-se em direito adquirido. Se, de uma configuração objetiva, de ato jurídico perfeito e acabado. Aperfeiçoada esta incidência, a Constituição a protege contra a retroatividade. A questão, porém, é mais complexa.
Assim, o princípio de irretroatividade, nos termos do art. 5° - XXXVI, tem a ver com a incidência subjetiva e objetiva (direito adquirido e ato jurídico perfeito). Ocorrida a incidência de norma válida, vigente e eficaz, uma norma nova, vigente a partir de sua publicação, não pode atingir (eficácia) a incidência anterior. Presume-se que esta incidência anterior tenha sido plena. A plenitude da incidência é conceito que depende do atendimento de regras de incidência: trata-se da questão de delinear o que seja o direito adquirido e o ato jurídico perfeito e acabado.
Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967, RT, 1968, t. V, p. 63) já assinalava, porém, com propriedade, a dificuldade de se submeter a uma mesma regra - da irretroatividade - o direito privado e os diversos ramos do direito público. Quanto a estes, devia-se encarar a existência de outras regras constitucionais. No caso do direito tributário, ao teor da Constituição de 1967, o princípio da legalidade estrita conjugava-se com a regra da irretroatividade. Assim, a proibição de instituir ou aumentar tributos sem lei que os estabeleça ou os aumente tinha de ser lida em conjunto com a proibição de incidência sobre efeitos já produzidos por atos jurídicos perfeitos. A noção de já produzidos levantava o problema da consumação dos atos e dos atos pendentes.
Na CF vigente, contudo, o contribuinte, além desta irretroatividade específica, é protegido também pela irretroatividade do art. 150, III, a. Esta não está adstrita ao ato jurídico perfeito (pois, então, teríamos um bis in idem). Prende-se, antes, à doutrina dosfacta (no dizer de Pontes de Miranda, referindo-se, na CF de 1969, à irretroatividade penal). Isto é, o contribuinte só pode ser cobrado (eficácia) por força de lei incidente ao tempo do fato, quer no que concerne aos pressupostos típicos, quer quanto à alíquota. Nenhum fato (para maior clareza, nenhum evento) ocorrido antes da vigência da lei nova pode ser apanhado por ela para compor o fato-tipo que ela institui. Aqui a proteção ao contribuinte é mais ampla, pois não está em questão o ato jurídico perfeito e acabado. Do mesmo modo que a lei penal há de ser a do momento em que ocorre o fato punível (segundo ela), não podendo ter efeitos sobre eventos passados, assim também a lei que aumenta ou institui tributos não produz efeitos (não se pode cobrar) sobre fatos geradores (geradores conforme a lei nova) ocorridos antes de sua vigência.
A distinção significa que a proteção conferida, genericamente, pelo art. 150, III, a alcança mais do que atos jurídicos perfeitos e acabados. E isto faz sentido, em sede de teoria geral do direito, na medida em que um fato não precisa ser ato perfeito para ser fato jurídico, isto é, sofrer a incidência de norma vigente e eficaz.
Esta distinção não é estranha à jurisprudência do STF. O Min. Moreira Alves (RT 127/801), num sentido semelhante à distinção entre a proteção estrita a atos jurídicos perfeitos e a proteção mais genérica a eventos (jurídicos), distingue, com o mesmo Pontes de Miranda (Comentários), entre "noção ampla de ato jurídico perfeito" e a noção estrita. Assim, ato jurídico perfeito seria apenas Uma espécie de fato jurídico pretérito. Qualquer fato, ocorrendo no tempo e no espaço, entra em algum sistema jurídico. O ato jurídico perfeito e acabado é um deles. Donde, a proteção contra a retroatividade, genericamente, deveria ter sido formulada "[a lei nova] não incidirá sobre os fatos jurídicos pretéritos, inclusive atos jurídicos perfeitos" (o texto entre aspas é de Pontes, apud Moreira Alves).
De modo expressivo, afirma também o Min. Velloso (RE n° 183.130 - 8 - Paraná, ao final), "tratando-se de lei que estabeleça incidência tributária, o princípio [da irretroatividade] é estabelecido tout court. É dizer, é mantido de forma ampla, sem referência a direito adquirido, ao ato jurídico perfeito ou a coisa julgada: art. 150, III, a".
Em síntese, com base nessas assertivas e nos argumentos que as sustentam, deve-se concluir que o princípio da irretroatividade, na Constituição vigente, conhece duas hipóteses: uma, de proteção ao ato jurídico perfeito e acabado (art. 5°, XXXVI) e outra, de proteção a fatos (eventos) pretéritos. Esta última está contida na irretroatividade da lei penal (art. 5°, XXXIX: "não há crime sem lei anterior que o defina", isto é, a lei que venha a definir fato como crime não se aplica a eventos pretéritos), bem como na irretroatividade tributária (art. 150, III, a: a lei nova, que institui - ou aumenta - tributos não incidirá sobre eventos pretéritos que ela tipifique como geradores, independentemente de constituírem atos jurídicos perfeitos e acabados).
O princípio da anterioridade, por sua vez, tem a ver com vigência e eficácia num determinado período. Aqui há, na jurisprudência do STF, duas posições antagônicas (v. RTJ143/680 e seguinte). Uma (Min. Pertence) diz: "O 'cobrar', a que se refere o art. 150, e o 'exigir', a que alude a norma específica do art. 195, par. 6°, a meu ver, não podem ser reduzidos a uma mera regra de retardamento da exigibilidade ou mesmo do lançamento da exação tributária", pois isto anularia o princípio da não-surpresa. Isto é, antes do prazo de 90 dias ou no prazo do exercício, não surgem deveres, direitos, obrigações. Outra (Min. limar Galvão) não confere ao princípio esta extensão. A CF, ao distinguir, em sede tributária, entre irretroatividade (letra a) e anterioridade (letra b), deixaria insuscetível de dúvida "que a nova lei pode viger no mesmo exercício em que foi editada, incidindo sobre os fatos jurídicos posteriores à sua vigência, vedando-se, tão-somente, a cobrança (ou a exigência) do tributo no mesmo exercício".
A divergência tem origem na Súmula 584 que, embora divulgada oficialmente bem depois da reforma tributária de 1965/66, fundou-se na interpretação de que o tributo é calculado sobre a renda ou lucro auferido no ano-base, mas que, por ficção interpretativa, era considerada auferida no exercício financeiro subsequente. A ficção estava em considerar a renda obtida no ano-base mera estimativa da renda, conforme já percebia a doutrina (Caderno de Pesquisas Tributárias, v. 11/21).
O tema tem a ver com o entendimento da anterioridade.
Importante notar, inicialmente, que a tese adotada pela Comissão de Estudos Constitucionais, em seu anteprojeto de constituição (art. 72, IV), propunha: “compete à União instituir impostos sobre: IV - renda e proventos de qualquer natureza, cujo fato gerador coincidirá com o término do exercício financeiro da União". O posicionamento histórico era bastante claro. Mas o texto aprovado na Constituinte foi menos explícito: veda-se cobrar tributos "b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;". É verdade que, conjugando-se o dispositivo citado com a interpretação histórica, não seria difícil descobrir o seu sentido. Mas o problema persistiu, mormente em face do art. 105 do CTN.
Discuta-se a questão. Inicialmente, tenha-se que a incidência é aí secundária. Isto é, não importa se ocorreu ou não a incidência ou se esta pode ainda vir a ocorrer. A anterioridade proíbe que a norma vigente (publicada num exercício financeiro) possa produzir efeitos (eficácia como condição de incidência) no mesmo exercício financeiro, seja sobre fatos/atos ocorridos, no período, antes de sua vigência, seja sobre aqueles que, ainda no período, venham a ocorrer após a vigência. A partir da vigência, os fatos ocorridos no período são considerados geradores, mas o efeito previsto (possibilidade de "cobrar" o tributo) não os alcança se ocorridos no período. A norma válida, a partir de um certo momento (vigência), configura (tipologicamente) certos fatos como geradores, mas sobre nenhum deles (se ocorridos no mesmo exercício financeiro em que a norma se tomou vigente) há possibilidade de produção de efeitos (eficácia). Se, para eles, não há eficácia, não se preenche a condição de incidência.
Tome-se, ademais, o disposto no art. 104 do CTN ("Entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorre a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio e a renda..."). Se entendemos "entrar em vigor" como "passar a ter vigência" (a lei teria sido publicada mas, por força do CTN, a data de início estaria posposta), fica claro que ela só vale para o que vier a acontecer no período seguinte. Se entendemos que "vigor" significa "eficácia", do mesmo modo a possibilidade de produzir efeitos só se dá para eventos a partir do exercício seguinte.
Aqui, no entanto, aparece uma discussão sobre fatos pendentes.
5. Reza o art. 105 do CTN: "A legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do art. 116".
Ora, este artigo trata da aplicação da legislação tributária, em seu conjunto, não de cada lei. Em seu conjunto, seria preciso levar em conta também os princípios (da anterioridade e da irretroatividade) e o fenômeno da ultratividade. Ademais, distinguir eficácia, como condição da incidência, da própria incidência. Ainda que se tomasse a incidência como aplicação efetiva da lei por via de lançamento, há de se entender que o lançamento não pode ocorrer se a lei não for eficaz. Lei ineficaz não pode produzir efeitos, portanto veda o lançamento. Se a lei é ineficaz para os fatos geradores ocorridos no exercício, sobre eles não pode haver lançamento (v. CTN art. 144).
O art. 105 do CTN tem sido invocado para justificar a possibilidade de aceitar a lei tributária que institua ou aumente tributo e que tenha sido publicada no curso do exercício, como capaz de produzir efeitos sobre fatos geradores pendentes de consumação, sem que os princípios da anterioridade e da irretroatividade estivessem sendo feridos.
Para discutir essa tese, vale a pena uma consideração sobre o fator tempo na constituição do fato gerador. A doutrina (Becker) costuma dizer que as coordenadas do tempo podem condicionar a realização de uma hipótese de incidência à contemporaneidade ou à sucessividade num prazo. Quando a hipótese consiste num estado de fato, por exemplo, na medida igual ao ano civil, a hipótese realiza-se no último momento do dia 31 de dezembro e sobre ela incide a norma vigente no primeiro momento do dia 1° de janeiro do novo ano (Teoria Geral do Direito Tributário, São Paulo, 1972, p. 302). O legislador pode definir este prazo em um ano, um semestre, um dia, não importa. A hipótese só se integraliza no ultimo momento, posto que coordenada por um tempo sucessivo, em que a realização é gradativa: cada evento deve ter ocorrido no período e o fato só se completa com o último deles.
Aqui toma sentido a noção de fatos geradores pendentes. Pendentes no tempo cronológico com sentido cultural, humano, os eventos só se completam quando termina o prazo, mas o término do prazo apenas lhes dá um sentido solidário, não os altera como fatos nem os anula. O princípio da anterioridade, assim, impede que os eventos componentes de um fato gerador, mesmo pendente de um momento final, sejam atingidos por uma lei publicada durante o período formador. Do contrário, romper-se-ia a solidariedade entre os eventos como um contínuo segmentado num tempo determinado. Destarte, a aplicação da lei nova a fatos geradores pendentes é possível como regra, mas desde que não fira a anterioridade, que se lhe sobrepõe como princípio constitucional. Portanto, se o prazo for anual, se a lei estiver vigente antes do momento final, ela só atingirá fatos pendentes a iniciarem-se no período seguinte. A anterioridade é uma proteção contra a regra geral da pendência. Sem ela, os eventos, na sucessividade, ficariam à mercê do arbítrio e da surpresa, permitindo-se que o poder dele dispusesse à sua comodidade ("quomodo" da imposição: Hamilton Dias de Souza, in Estudos sobre o Imposto de Renda, São Paulo, 1994, p. 264).
Ora, no caso do imposto de renda, se a doutrina e a jurisprudência têm por certo que o fato gerador se completa ao final do exercício, há de se ter por certo também que, embora pendente no momento em que é publicada a lei, esta não se aplica aos seus eventos formadores (porque ocorridos no período), por força da anterioridade. Assim, se um contribuinte vem praticando atos (eventos) conforme a legislação vigente no período e sobrevêm, antes de seu término, lei nova, aqueles eventos e os que se sucedem até o último momento do exercício formam um todo solidário (dentro de um segmento temporal) que não pode ser rompido sob pena de surpresa.
6. Mesmo, entretanto, que se admitisse, por ficção, que o ano-base é mero padrão estimativo e que o fato gerador ocorra no primeiro dia do exercício seguinte (assim Alberto Xavier e a jurisprudência que fundamentou a Súmula 584), ainda assim os eventos ocorridos durante aquele período (ano-base), à luz do art. 150 da CF, não seriam atingidos.
Afinal, pela irretroatividade, é cada fato-evento sucessivo que está protegido contra a lei a eles posterior, na sua singularidade. Protege-se a expectativa legítima neles contida enquanto fatos pretéritos. Por ela impede-se que eles sejam atingidos ainda que componentes do fato gerador-tipo, assim definido pela nova lei. Ocorridos antes da lei nova, ainda que no contexto de uma pendência conforme a nova lei, disto os exclui o princípio.
Faz pleno sentido, destarte, a observação de Luciano Amaro: "Se, em razão da irretroatividade, lei de setembro não pode atingir atos ou fatos de agosto, seria absurdo sustentar que, 'por força' da anterioridade, a mesma lei de setembro onerasse os mesmos acontecimentos de agosto, como se, num passe de mágica, a proteção do indivíduo (anterioridade) pudesse transformar-se em arma letal contra o seu direito de não submeter-se a leis retroativas" (Cadernos de Pesquisas Tributárias, n° 11, São Paulo, 1986, p. 373). Ou, como definiu o Min. Célio Borja, relator da ADIn n° 513 - DF (RTJ 144/746, decisão unânime), "o artigo 150 da Constituição tornou explícito que a lei não pode impor obrigações tributárias a fatos ocorridos antes de sua vigência (inc. III, alínea a) nem, tampouco, a fatos ocorridos no exercício em que editada (inc. III, b)".
A menção, nesse voto, a fatos ocorridos no exercício em que editada, aos quais não pode haver imposição de obrigações alcança, certamente, os fatos pendentes, sujeitos à ocorrência do prazo final, mas compondo, em termos de duração, uma conjunção solidária. Por força da proteção da anterioridade, a incidência sobre eles (aplicação imediata da lei a fatos pendentes) está excluída. Destarte, cobrar, conforme a lei vigente no exercício em que se dá a declaração, tributo referente a fatos ocorridos no ano-base, fere a anterioridade. Isto tem conseqüências para a irretroatividade. Como observa Luciano Amaro, a anterioridade, daquela forma entendida, qualifica o princípio: "se a lei tributária cria ou majora tributo não sujeito àquele princípio [anterioridade], a irretroatividade é simples; se cria ou majora tributo por ele acobertado, a irretroatividade é qualificada, pois não basta a antecedência da lei em relação ao fato jurígeno, exigindo-se essa antecedência em relação ao ano (ou exercício) da realização do fato" (op. cit., p. 371 s.).
Por todo o exposto e concluindo, pode-se dizer, em síntese, que pela anterioridade estão protegidos todos os eventos ocorridos durante o exercício enquanto compondo um segmento temporal. Pela irretroatividade, até a publicação da lei nova, cada evento está protegido, não podendo, como na lei penal, vir a submeter-se ao novo fato-tipo instituído. Com isto se pretende ter trazido à questão, ainda tumultuada na jurisprudência, algum esclarecimento de orientação.
Fonte: Revista Dialética de Direito Tributário, n . 65, Fevereiro de 2001, Dialética, São Paulo: 2001, pp. 123-131.
(Digitalizado e conferido por Ana Paula Vendramini Segura)