Anterioridade e Irretroatividade da Lei Tributária

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

1. Em dezembro de 1989, uma lei promulgada relativa à incidência do Imposto de Renda sobre Exportações incentivadas, estabelecia a exigência do tributo à alíquota de 18% no exercício de 1989, tendo em vista que a majoração da alíquota (de 6% para 18%) teria ocorrido por lei publicada no mesmo exercício (Lei na 7.988, de 29.12.1989). A majoração, conforme o seu artigo primeiro, ocorreria "a partir do exercício financeiro de 1990, correspondente ao período-base de 1989".

Essa formulação legal pareceria vir ao encontro da Súmula 584, baixada antes da Constituição de 1988, cujo teor é o seguinte: "ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração".

Assim, à primeira vista, a aplicação da Súmula à referida lei garantiria a constitucionalidade da referida majoração. Essa aplicação, contudo, tem merecido largas discussões em face dos seus pressupostos jurisprudenciais e doutrinários. Afinal, à época em que foi editada, a Súmula já despertara intensa polémica, por aferar de modo controverso os princípios da anterioridade e da irretroatividade. Tanto que a jurisprudência foi, paulatinamente, reinterpretando-lhe o sentido. O próprio Supremo Tribunal Federal, em algumas ocasiões, chegou a afastar-lhe a aplicação, por entendê-la retroativa (RE na 103.553-PR, rei. Min. Octavio Gallottí; ERE n2 103.553-PR, rei. Min. Carlos Caldeira), tendo sido ela objeto de estudo crítico do Min. Velloso (Temas de direito público, Ed. Del Rey, 1994).

2. O problema que se enfrenta está, em termos simples, na definição de qual o momento de ocorrência do fato gerador do Imposto de Renda, bem como de qual a lei aplicável aos rendimentos auferidos durante o ano em que lei nova é publicada.

Conforme a Súmula nº 584 e em razão dos acórdãos que a fundamentavam, a lei publicada no período-base alcançaria os rendimentos do mesmo período, tendo em vista que não haveria ocorrência do fato gerador no período-base. Esses seriam apenas estimativa de renda do exercício financeiro seguinte. Assim, o fato gerador ocorreria no primeiro instante do dia 1º de janeiro do ano em que ocorre a declaração.

Com o advento do Código Tributário Nacional, a Súmula começou a sofrer restrições quanto à sua aplicação integral, pois, secundo a doutrina e a jurisprudência, ficou assentado, ao menos, que o fato gerador do IR e a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica da renda se daria no último instante do período base, sem prejuízo dos debates sobre o peso a ser conferido aos eventos ocorridos sucessivamente durante todo o período. Como argumentou Luciano Amaro, se "a lei põe a consequência [pagamento do imposto] no mês seguinte, no trimestre seguinte ou no ano seguinte — isso não desloca a causa [aquisição da renda] para o mês, trimestre ou ano seguinte" (Cadernos de pesquisas Tributárias, n° 11, 1986, p. 375). E, na Representação n. 1451 — DF, o relator, Min. Moreira Alves, dizia: "Portanto, se, em virtude da legislação vigente, quando da ocorrência do fato gerador do imposto de renda (no caso, 3-12-1986), deu este nascimento a obrigação de dinheiro..." (RTJ 127/804).

Não obstante, a aplicação (parcial) da Súmula ainda lança uma visão divergente sobre o tema. Embora voto vencido, o Min. I. Galvão sustenta que "a nova lei pode viger no mesmo período em que foi editada, incidindo sobre os fatos jurídicos posteriores à sua vigência, vedando-se, tão-somente, a cobrança (ou a exigência) do tributo no mesmo exercício" (v. RTJ 143/681). Na verdade, o ministro dá à Súmula uma interpretação diferente da que lhe deu origem. Aceita que o fato gerador do IR ocorre no último instante do ano-base (e não no primeiro instante do período seguinte, como acontecia na jurisprudência original), mas admite a sua aplicação uma vez que a lei editada ainda no ano-base não deixa de ser anterior ao fato gerador (não se lhe opondo a irretroatividade: o fato era pendente) e o princípio da anterioridade apenas impede que o imposto seja cobrado no mesmo exercício (em 1º de janeiro ela é lei vigente e se aplica ao fato pendente que se consumou no dia 31 de dezembro).

Posta nesses termos, a questão, afinal é, em termos da Constituição: pode a lei impor obrigações tributárias a fatos ocorridos antes de sua vigência (CF, artigo 150, III, a) e/ou a fatos ocorridos no exercício em que é editada (artigo 150, III, b)?

3. Para discuti-la faz mister uma menção ao direito fundamental à segurança e aos princípios da irretroatividade e da não surpresa que, na lei suprema de 1988, ganharam contornos de maior relevo.

Em seu voto como relator no RE na. 141.602-PE (RTJ 143/680), o Min. Pertence, citando Misabel Derzi, contrapõe-se ao entendimento de que a anterioridade requerida constitucionalmente estabeleça não mais que um prazo de cobrança e pagamento, o que anularia o sentido mais profundo do princípio da não surpresa.

Trata-se de um posicionamento de grande ponderação. A anterioridade, como a irretroatividade, é expressão do direito à segurança. Esta, além de direito fundamental, é um dos valores básicos do Estado Democrático de Direito, como se vê na Constituição Federal, em seu Preâmbulo. Contra o espírito intervencionista da Constituição anterior, que via no estado um guardião da racionalidade econômica e sobrepunha sua força ao exercício da cidadania, a vigente CF põe em relevo a segurança como submissão do Estado à lei e delimitação clara e eficaz de sua atuação, freio importante da arbitrariedade. A legalidade (lata e stricta) é uma de suas manifestações. Mas não só; a ela se acrescem a irretroatividade, em geral, a irretroatividade específica e a anterioridade, no plano tributário.

Ambos os princípios têm a ver com o fator tempo na configuração dos eventos vitais. Trata-se do tempo cronológico, caracterizado pela irreversibilidade de um momento indefinido no passado que se projeta para um momento indefinido no futuro, e que tem uma qualidade entrópica (tudo morre), como se vê pela segunda lei da termodinâmica (cf. François Ost: "Le temps, quatrième dimension des droits de l'homme", m Journal des Tribunaux, 99-2). Nesse tempo físico introduz-se a cultura (ética, direito) como a capacidade de retomada reflexiva do passado e antecipação reflexiva do futuro. É a capacidade de reinterpretar o passado (sem anulá-lo ou apagá-lo) — por exemplo, pela responsabilização por aquilo que aconteceu – e de orientar o futuro (sem impedir que ele ocorra) – por exemplo, usando-o como finalidade reguladora da ação. Entre o passado e o futuro o tempo cultural aparece, assim, como duração, cuja experiência se dá no presente, vivido como um contínuo. A duração, desse modo, liga o passado e o futuro: torna o passado (que não é mais) algo ainda interessante e faz do futuro (que ainda não ocorreu) um crédito, base da promessa.

A questão está em como estabelecer esse liame e dar consistência à duração, isto é, evitar que um passado, de repente, se torne estranho, um futuro, algo opaco e incerto, e a duração, uma coleção de surpresas desestabilizadoras da vida. Afinal, se o sentido de um evento passado pudesse ser alterado ou o sentido de um evento planejado pudesse ser modificado ao arbítrio de um ato presente, a validade dos atos humanos estaria sujeita a uma insegurança e uma incerteza insuportáveis.

A não retroatividade da lei tem a ver com esse problema (Ost). Trata-se de respeitar o passado em face das alterações legais, precavendo-se de tornar ilusórias, retrospectivamente, as expectativas legítimas (boa-fé, promessas, acordos) contidas no evento acontecido, por força da revogação. O princípio da irretroatividade resgata e sustém um passado em face do futuro, garantindo essas expectativas legítimas em face da lei nova. O sentido de um evento passado adquire, assim, um contorno próprio, conforme a legislação então vigente, tornando-se imune ao sentido que lhe atribua a lei posterior, ressalvadas as alterações in bonam partem.

Já a anterioridade diz respeito à duração. A salvaguarda contra a surpresa exige a periodicidade, que confere aos eventos um mínimo de durabilidade. Por isso, em todas as culturas, o tempo é dividido e contado. Trata-se de dar ao tempo presente uma consistência, fazendo dele um todo extenso e compacto, entre um começo e um fim, dentro do qual os eventos são solidários. Sem essa divisão e essa contagem, o homem não conseguiria planejar a sua ação. O princípio da anterioridade periodiza o tempo e lhe dá um sentido de unidade, protegendo os eventos que dentro dela acontecem contra alterações legais que ocorram no período. Não se trata de impedir as revisões legais, mas de garantir as mudanças que elas trazem contra o sobressalto e a surpresa. Sem essa garantia, os eventos não duram (perdem o sentido da duração) e se tornam insignificantes (perdem legitimidade). O estabelecimento de períodos (um dia, um mês, um ano), dentro dos quais a lei nova não produz efeitos, é, assim, vital para o implemento da segurança jurídica.

4. Ora, essas observações permitem iluminar peculiarmente os princípios da irretroatividade e da anterioridade, em sede tributária, na Constituição Federal (CF).

O entendimento do tema à luz da Constituição Federal de 1988 deve começar por um esclarecimento da vigência e eficácia normativas, envolvidas nos referidos princípios.

O artigo 150, III, alíneas a e b da CF utiliza-se das expressões "início da vigência" e "haja sido publicada a lei". O termo vigência conhece explicações diferentes na doutrina, ora se aproximando ora se afastando de eficácia. Pode-se entender que ambas as noções devam ser compreeidas a partir do fenómeno da validade (Ferraz Jr. Introdução ao estudo do direito. São Paulo, 1994, 4.3.2. p. 196 e ss.).

Que uma norma vale significa, no senso comum jurídico, uma adequação formal ao sistema normativo (norma produzida conforme as regras de competência nele estabelecidas) c uma adequação material (norma produzida conforme princípios, conteúdos, mens legis, fins do sistema), presumindo-se o sistema conforme uma estrutura hierárquica.

A norma válida, via de regra, é também a norma dotada de império ou força, isto é, impõe-se antes de tudo e a despeito de qualquer controvérsia (lex prima facie valet). Mas o império ou força não se confunde com a validade. Mesmo a norma inválida pode, em determinadas circunstâncias, estar e até ser dotada de império (por exemplo, a norma inconstitucional assim declarada incidenter tantum, enquanto não revogada ou enquanto não tiver sua eficácia suspensa). É a sua imperatividade que levanta a questão da vigência e da eficácia.

Vigência significa que a norma vale (exigibilidade da conduta) a partir de um certo momento (início de vigência). A vigência tem, pois, a ver com o tempo de validade. O tempo de validade é sempre prospectivo. Uma norma não vale para trás. Vale sempre de um ponto, no tempo, para a frente. O tempo é o tempo cronológico, que corre de um momento para o futuro. Uma norma, assim, não pode valer para trás. Promulgada, a norma vale e, publicada, conta-se daí a sua vigência. A vigência pode ser posposta (o prazo pode contar a tantos dias da sua publicação, mas sempre para a frente, não para trás). Não há, pois, como contar esse tempo antes de sua publicação: isso decorre de uma impossibilidade lógica, pois mesmo que se quisesse "retroagir" a vigência, a cronologia o impediria — o tempo é irreversível.

Mas ela pode ter eficácia retroativa. A partir do momento em que ela vale, isto é, é vigente, seus efeitos podem retroagir e a norma imperar sobre o passado. A eficácia tem a ver com a possibilidade de produzir efeitos. Essa possibilidade é prospectiva ou retroativa. Nada impede que, a despeito da cronologia (vigente a partir de um momento em direção ao futuro), o destinatário da norma possa considerá-la, a partir de quando ela vale, como produzindo efeitos sobre fatos e atos já sucedidos. Nesse sentido, a sua força ou império pode atingir o passado. Ê o fenômeno da retroatividade cuja possibilidade é regulada pelo princípio da irretroatividade.

Para entender a exclusão da eficácia retroativa (irretroatividade), é preciso ademais distinguir entre eficácia e incidência. Eficácia não é incidência (configuração in concreto de um direito ou de um fato), mas possibilidade de incidência. Eficácia não é obediência e aplicação concretas, mas possibilidade (fática — efetividade — ou jurídica — eficácia técnica) de obediência e aplicação. A norma não é eficaz porque é obedecida e aplicada, mas porque preenche os requisitos (sociais e normativos) para ser aplicada e obedecida (donde, por exemplo, a distinção entre eficácia plena, limitada e contida e a distinção entre eficácia social e técnica). Nesse sentido, a eficácia é condição de incidência. Sem eficácia (possibilidade de incidir) não há incidência.

Retroatividade tem a ver com incidência normativa. Quando uma norma eficaz produz o efeito previsto sobre fato ocorrido no passado, diz-se que incide retroativamente. Incidência significa que a um fato acontecido, posterior ou anterior à vigência, deu-se a configuração normativa (cf. Ferraz Jr. op. cit. 4.3.4. p. 249). Tratando-se, por exemplo, de uma configuração subjetiva, fala-se em direito adquirido. Se, de uma configuração objetiva, de ato jurídico perfeito e acabado. Aperfeiçoada essa incidência, a Constituição a protege contra a retroatividade. A questão, porém, é mais complexa.

Assim, o princípio de irretroatividade, nos termos do artigo 5a — XXXVI, tem a ver com a incidência subjetiva e objetiva (direito adquirido e ato jurídico perfeito). Ocorrida a incidência de norma válida, vigente e eficaz, uma norma nova, vigente a partir de sua publicação, não pode atingir (eficácia) a incidência anterior. Presume-se que essa incidência anterior tenha sido plena. A plenitude da incidência é conceito que depende do atendimento de regras de incidência: trata-se da questão de delinear o que seja o direito adquirido e o ato jurídico perfeito e acabado.

Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967, RT, 1968, t. V, p. 63) já assinalava, porém, com propriedade, a dificuldade de se submeter a uma mesma regra — da irretroatividade — o direito privado e os diversos ramos do direito público. Quanto a estes, devia-se encarar a existência de outras regras constitucionais. No caso do direito tributário, ao teor da Constituição de 1967, o princípio da legalidade estrita conjugava-se com a regra da irretroatividade. Assim, a proibição de instituir ou aumentar tributos sem lei que os estabeleça ou os aumente tinha de ser lida em conjunto com a proibição de incidência sobre efeitos já produzidos por atos jurídicos perfeitos. A noção de já produzidos levantava o problema da consumação dos atos e dos atos pendentes.

Na Constituição Federal vigente, contudo, o contribuinte além dessa irretroatividade específica, é protegido também pela irretroatividade do artigo 150, III, a. Esta não está adstrita ao ato jurídico perfeito (pois, então, teríamos um bis in idem). Prende-se, antes, à doutrina dos facta (no dizer de Pontes de Miranda, referindo-se, na Constituição Federal de 1969, à irretroatividade penal). Isto é, o contribuinte só pode ser cobrado (eficácia) por força de lei incidente ao tempo do fato, quer no que concerne aos pressupostos típicos, quer quanto à alíquota. Nenhum fato (para maior clareza, nenhum evento) ocorrido antes da vigência da lei nova pode ser apanhado por ela para compor o fato-tipo que ela institui. Aqui a proteção ao contribuinte é mais ampla, pois não está em questão o ato jurídico perfeito e acabado. Do mesmo modo que a lei penal há de ser a do momento em que ocorre o fato punível (segundo ela), não podendo ter efeitos sobre eventos passados, assim também a lei que aumenta ou institui tributos não produz efeitos (não se pode cobrar) sobre fatos geradores (geradores conforme a lei nova) ocorridos antes de sua vigência.

A distinção significa que a proteção conferida, genericamente, pelo artigo 150, III, a alcança mais do que atos jurídicos perfeitos e acabados. E isso faz sentido, em sede de teoria geral do direito, uma vez que um fato não precisa ser ato perfeito para ser fato jurídico, isto é, sofrer a incidência de norma vigente e eficaz.

Essa distinção não é estranha à jurisprudência do STF. O Min. Moreira Alves (RT 127/801), num sentido semelhante à distinção entre a proteção estrita a atos jurídicos perfeitos e a proteção mais genérica a eventos (jurídicos), distingue, com o mesmo Pontes de Miranda (comentários), entre "noção ampla de ato jurídico perfeito" e a noção estrita. Assim, ato jurídico perfeito seria apenas uma espécie de fato jurídico pretérito. Qualquer fato, ocorrendo no tempo e no espaço, entra em algum sistema jurídico. O ato jurídico perfeito e acabado é um deles. Donde a proteção contra a retroatividade, genericamente, deveria ter sido formulada "[a lei nova] não incidirá sobre os fatos jurídicos pretéritos, inclusive atos jurídicos perfeitos" (o texto entre aspas é de Pontes, apud Moreira Alves).

De modo expressivo, afirma também o Min. Velloso (RE nº 183.130-8, Paraná, ao final), "tratando-se de lei que estabeleça incidência tributária, o princípio [da irretroatividade] é estabelecido tout court. É dizer, é mantido de forma ampla, sem referência a direito adquirido, ao ato jurídico perfeito ou a coisa julgada: artigo 150, III, a".

Em síntese, com base nessas assertivas e nos argumentos que as sustentam, deve-se concluir que o princípio da irretroatividade, na Constituição vigente, conhece duas hipóteses: uma de proteção ao ato jurídico perfeito e acabado (artigo 5º — XXXVI) e outra de proteção a fatos (eventos) pretéritos. Esta última está contida na irretroatividade da lei penal (artigo 5º — XXXIX: "não há crime sem lei anterior que o defina, isto é, a lei que venha a definir fato como crime não se aplica a eventos pretéritos), bem como na irretroatividade tributária (artigo 150, III, a:, a lei nova, que institui — ou aumenta — tributos não incidirá sobre eventos pretéritos que ela tipifique como geradores, independentemente de constituírem atos jurídicos perfeitos e acabados).

O principio da anterioridade, por sua vez, tem a ver com vigência e eficácia num determinado período. Aqui há, na jurisprudência do STF, duas posições antagónicas (v. RTJ 143/680 e seguinte). Uma (Min. Pertence) diz: "O 'cobrar', a que se refere o artigo 150, e o 'exigir', a que alude a norma específica do artigo 195, § 6º, a meu ver, não podem ser reduzidos a uma mera regra de retardamento da exigibilidade ou mesmo do lançamento da exação tributária", pois isso anularia o princípio da não-surpresa. Isto é, antes do prazo de 90 dias ou no prazo do exercício, não surgem deveres, direitos, obrigações. Outra (Min. Ilmar Galvão) não confere ao princípio esta extensão. A Constituição Federal, ao distinguir, em sede tributária, entre irretroatividade (letra a) e anterioridade (letra b), deixaria insuscetível de dúvida "que a nova lei pode viger no mesmo exercício em que foi editada, incidindo sobre os fatos jurídicos posteriores à sua vigência, vedando-se, tão-somente, a cobrança (ou a exigência) do tributo no mesmo exercício".

A divergência tem origem na Súmula nº 584 que, embora divulgada oficialmente bem depois da reforma tributária de 1965/66, fundou-se na interpretação de que o tributo é calculado sobre a renda ou lucro auferido no ano-base, mas que, por ficção interpretativa, era considerada auferida no exercício financeiro subsequente. A ficção estava em considerar a renda obtida no ano-base mera estimativa da renda, conforme já percebia a doutrina (Cadernos de Pesquisas Tributárias, vol. 11/21). O tema tem a ver com o entendimento da anterioridade.

Importante notar, inicialmente, que a tese adotada pela Comissão de Estudos Constitucionais, em seu anteprojeto de constituição (artigo 72, IV), propunha: "Compete à União instituir impostos sobre: IV — renda e proventos de qualquer natureza, cujo fato gerador coincidirá com o término do exercício financeiro da União". O posicionamento histórico era bastante claro. Mas o texto aprovado na Constituinte foi menos explícito: veda-se cobrar tributos "(b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;". É verdade que conjugando-se o dispositivo citado com a interpretação histórica, não seria difícil descobrir o seu sentido. Mas o problema persistiu, mormente em face do artigo 105 do Código Tributário Nacional (CTN).

Discuta-se a questão. Inicialmente, tenha-se que a incidência é aí secundária. Isto é, não importa se ocorreu ou não a incidência ou se esta pode ainda vir a ocorrer. A anterioridade proíbe que a norma vigente (publicada num exercício financeiro) possa produzir efeitos (eficácia como condição de incidência) no mesmo exercício financeiro, seja sobre fatos/atos ocorridos no período antes de sua vigência, seja sobre aqueles que, ainda no período, venham a ocorrer após a vigência. A partir da vigência, os fatos ocorridos no período são considerados geradores, mas o efeito previsto (possibilidade de "cobrar" o tributo) não os alcança se ocorridos no período. A norma válida, a partir de um certo momento (vigência), configura (tipologicamente) certos fatos como geradores, mas sobre nenhum deles (se ocorridos no mesmo exercício financeiro em que a norma se tornou vigente) há possibilidade de produção de efeitos (eficácia). Se, para eles, não há eficácia, não se preenche a condição de incidência.

Tome-se, ademais, o disposto no artigo 104 do CTN ("Entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorre a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o património e a renda..."). Se entendemos "entrar em vigor" como "passar a ter vigência" (a lei teria sido publicada, mas, por força do CTN, a data de início estaria posposta), fica claro que ela só vale para o que vier a acontecer no período seguinte. Se entendemos que "vigor" significa "eficácia", do mesmo modo a possibilidade de produzir efeitos só se dá para eventos a partir do exercício seguinte.

Aqui, no entanto, aparece uma discussão sobre fatos pendentes.

5. Reza o artigo 105 do CTN: "A legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do artigo 116".

Ora, esse artigo trata da aplicação da legislação tributária em seu conjunto, não de cada lei. Em seu conjunto, seria preciso levar em conta também os princípios (da anterioridade e da irretroatividade) e o fenômeno da ultratividade. Ademais, distinguir eficácia, como condição da incidência, da própria incidência. Ainda que se tomasse a incidência como aplicação efetiva da lei por via de lançamento, há de se entender que o lançamento não pode ocorrer se a lei não for eficaz. Lei ineficaz não pode produzir efeitos, portanto veda o lançamento. Se a lei é ineficaz para os fatos geradores ocorridos no exercício, sobre eles não pode haver lançamento (v. CTN artigo 144).

O artigo 105 do CTN tem sido invocado para justificar a possibilidade de aceitar a lei tributária que institua ou aumente tributo e que tenha sido publicada no curso do exercício, como capaz de produzir efeitos sobre fatos geradores pendentes de consumação, sem que os princípios da anterioridade e da irretroatividade estivessem sendo feridos.

Para discutir essa tese, vale a pena uma consideração sobre o fator tempo na constituição do fato gerador. A doutrina (Becker) costuma dizer que as coordenadas do tempo podem condicionar a realização de uma hipótese de incidência à contemporaneidade ou à sucessividade num prazo. Quando a hipótese consiste num estado de fato, por exemplo, na medida igual ao ano civil, a hipótese realiza-se no último momento do dia 31 de dezembro e sobre ela incide a norma vigente no primeiro momento do dia 1º de janeiro do novo ano (Teoria geral do direito tributário, São Paulo, 1972, p. 302). O legislador pode definir esse prazo em um ano, um semestre, um dia, não importa. A hipótese só se integraliza no último momento, posto que coordenada por um tempo sucessivo, em que a realização é gradativa: cada evento deve ter ocorrido no período e o fato só se completa com o último deles.

Aqui toma sentido a noção de fatos geradores pendentes. Pendentes no tempo cronológico com sentido cultural, humano, os eventos só se completam quando termina o prazo, mas o término do prazo apenas lhes dá um sentido solidário, não os altera como fatos nem os anula. O princípio da anterioridade, assim, impede que os eventos componentes de um fato gerador, mesmo pendente de um momento final, sejam atingidos por uma lei publicada durante o período formador. Do contrário, romper-se-ia a solidariedade entre os eventos como um contínuo segmentado num tempo determinado. Destarte, a aplicação da lei nova a fatos geradores pendentes é possível como regra, mas desde que não fira a anterioridade, que se lhe sobrepõe como princípio constitucional. Portanto, se o prazo for anual, se a lei estiver vigente antes do momento final, ela só atingirá fatos pendentes a iniciarem-se no período seguinte. A anterioridade é uma proteção contra a regra geral da pendência. Sem ela os eventos, na sucessividade, ficariam à mercê do arbítrio e da surpresa, permitindo-se que o poder dele dispusesse à sua comodidade ("quomodo" da imposição: Hamilton Dias de Souza, in Estudos sobre o imposto de renda, São Paulo, 1994, p. 264).

Ora, no caso do Imposto de Renda, se a doutrina e a jurisprudência têm por certo que o fato gerador se completa ao final do exercício, há de se ter por certo também que, embora pendente no momento em que é publicada a lei, esta não se aplica aos seus eventos formadores (porque ocorridos no período), por força da anterioridade. Assim, se um contribuinte vem praticando atos (eventos) conforme a legislação vigente no período e sobrevêm, antes de seu término, lei nova, aqueles eventos e os que se sucedem até o último momento do exercício formam um todo solidário (dentro de um segmento temporal) que não pode ser rompido sob pena de surpresa.

6. Mesmo, entretanto, que se admitisse, por ficção, que o ano-base é mero padrão estimativo e que o fato gerador ocorra no primeiro dia do exercício seguinte (assim Alberto Xavier e a jurisprudência que fundamentou a Súmula 584), ainda assim os eventos ocorridos durante aquele período (ano-base), à luz do artigo 150 da Constituição Federal, não seriam atingidos.

Afinal, pela irretroatividade, é cada fato-evento sucessivo que está protegido contra a lei a eles posterior, na sua singularidade. Protege-se a expectativa legítima neles contida como fatos pretéritos. Por ela se impede que eles sejam atingidos ainda que componentes do fato gerador tipo, assim definido pela nova lei. Ocorridos antes da lei nova, ainda que no contexto de uma pendência conforme a nova lei, disso os exclui o princípio.

Faz pleno sentido, destarte, a observação de Luciano Amaro: "Se, em razão da irretroatividade, lei de setembro não pode atingir atos ou fatos de agosto, seria absurdo sustentar que, 'por força' da anterioridade, a mesma lei de setembro onerasse os mesmos acontecimentos de agosto, como se, num passe de mágica, a proteção indivíduo (anterioridade) pudesse transformar-se em arma letal contra o seu direito de não se submetera leis retroativas' (Cadernos de Pesquisas Tributárias, n. 11, São Paulo, 1986, p. 373). Ou, como definiu o Min. Célio Borja, relator da ADIn nº 513-DF (RTJ 144/746, decisão unânime), "o artigo 150 da Constituição tornou explícito que a lei não pode impor obrigações tributárias a fatos ocorridos antes de sua vigência (inciso III, alínea a) nem, tampouco, a fatos ocorridos no exercício em que editada (inciso III, b)".

A menção, nesse voto, a fatos ocorridos no exercício em que editada, aos quais não pode haver imposição de obrigações, alcança, certamente, os fatos pendentes, sujeitos à ocorrência do prazo final, mas compondo, em termos de duração, uma conjunção solidária. Por força da proteção da anterioridade, a incidência sobre eles (aplicação imediata da lei a fatos pendentes) está excluída. Destarte, cobrar, conforme a lei vigente no exercício em que se dá a declaração, tributo referente a fatos ocorridos no ano-base, fere a anterioridade. Isso tem consequências para a irretroatividade. Como observa Luciano Amaro, a anterioridade, daquela forma entendida, qualifica o princípio: "se a lei tributária cria ou majora tributo não sujeito àquele princípio [anterioridade], a irretroatividade é simples; se cria ou majora tributo por ele acobertado, a irretroatividade é qualificada, pois não basta a antecedência da lei em relação ao fato jurígeno, exigindo-se essa antecedência em relação ao ano (ou exercício) da realização do fato"'(op. cit., p. 371 e ss.).

Em síntese, pela anterioridade estão protegidos todos os eventos ocorridos durante o exercício, compondo um segmento temporal. Pela irretroatividade, até a publicação da lei nova, cada evento está protegido, não podendo, como na lei penal, vir a submeter-se ao novo fato tipo instituído.

7. Ora, no caso da exigência de tributo à alíquota de 18%, aumentada por lei publicada no mesmo exercício (Lei nº. 7.988, de 20 de dezembro de 1989), só pode esta atingir fatos geradores que venham a ocorrer a partir do primeiro dia do exercício seguinte. Até 20 de dezembro, todos os eventos ocorridos estão excluídos de incidência por força da irretroatividade. Excluídos de incidência, a eles não se aplica o fato gerador, modificado pela lei nova. E aos eventos ocorridos após a lei, até o fim do exercício, também não se aplica ela por comporem, no período, um segmento temporal solidário.

A distinção entre ano-base e ano do exercício, aquele como mero padrão estimativo, faz com que a não surpresa, garantida pela anterioridade, perca sentido. No caso da lei supra citada, o contribuinte que praticou atos na expectativa de uma alíquota de 6%, fê-lo dentro de um período protegido pela anterioridade. Ademais, na certeza de que cada evento não poderia ser atingido pela lei nova (irretroatividade). A distinção ano base/ano do exercício cria uma enorme insegurança. Durante o "ano-base" ninguém saberia como agir, tudo ficando ao arbítrio da lei que estivesse vigente no período seguinte. Cada evento planejado e ocorrido à alíquota de 6%, em 20 de dezembro do mesmo ano, virou evento à alíquota de 18%. E os eventos, desta data até 31 de dezembro, estariam fora do segmento temporal garantido pela anterioridade. Em 1º de janeiro, a legalidade passaria a ser retroativa e o período anterior nada valeria: cada ato, no presente, estaria sujeito às incertezas do futuro.

Em síntese, deve-se reconhecer que em confronto com a Constituição anterior, a vigente Constituição Federal traz uma alteração expressiva. Assim, a noção de "mero padrão estimativo" é a visão de quem olha o passado com os olhos do futuro e se permite cancelar o sentido do passado quando o futuro ocorre. Trata-se, pois, de uma concepção retroativa da lei, que fere a certeza e a segurança. Só um Estado autoritário (Emenda nº 1, de 1969), que impusesse um planejamento à iniciativa privada, admite uma tal retroatividade, em nome da racionalização da economia. Ora, a Constituição de 1988, em nome do Estado Democrático de Direito, afastou essa perspectiva. Nela. o ano-base não pode ser mera estimativa para os desígnios do poder tributante, mas é o período em que cada evento está a gerar obrigações conforme a lei vigente e eficaz no período.

Fonte: Debate sobre a Constituição de 1988. São Paulo: Paz e Terra, 2001, pp. 155-168.

Texto digitado e organizado por: Andrea Cristina Godoy Zamur.