Algumas observações em torno da cientificidade do direito segundo Miguel Reale

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

A mais recente publicação de Miguel Reale inclui-se no da epistemologia jurídica e representa a projeção e a ação de sua obra anterior "Filosofia do Direito",

O livro é apresentado sob a forma de ensaios, que guardam, no entanto, uma seqüência orgânica, cuja linha diretora é o problema da fundação da ciência do direito como ciência (cf. Prefácio do autor). O primeiro deles intitula-se e coloca o problema da experiência jurídica. Esta não é entendida em termos de simples categoria histórica destinada à compreensão das circunstâncias temporais que suscitaram sua tematização em determinado momento do pensamento jurídico, mas de problema epistemológico fundamental (pág. 3). A análise do autor inicia-se por uma aproximação teorética, onde são apontadas as três perspectivas filosóficas fundamentais da experiência jurídica, que se delineiam perante o binômio Filosofia-Experiência, a partir de Kant: a posição imanente, para a qual os problemas jurídicos estão permanentemente inseridos na história, só sendo explicáveis segundo os valores inerentes que os constituem; a posição transcendente, segundo a qual ao empírico e temporal se opõe um plano de paradigma, modelos estáticos que não participam das contingências histórico-sociais; a posição transcendental, para qual toda análise do fenômeno jurídico possui necessariamente um aspecto genético e outro de referibilidade às suas condições a priori de possibilidade e validade. A terceira posição, analisada e enfatizada pelos neokantianos, teve seus horizontes ampliados, a partir da fenomenologia. Com Husserl há um novo conceito de transcendental, que estende o campo da aprioridade a todo e qualquer dado da realidade, tanto às formas condicionantes da ciência como às formas condicionantes das manifestações espontâneas do mundo vital. Com Martin Heidegger acentua-se a historicidade essencial do ser do homem (Dasein), permitindo-se a colocação do problema da experiência jurídica em termos de uma conotação concreta da categoria lógica de possibilidade transcendental com as de finalidade e temporalidade, nos planos da práxis e da história.

À luz deste enfoque inicial, descortinam-se as considerações do A., que começam com a análise da experiência jurídica como experiência pré-categorial em termos de "ordenação objetiva das vontades" e de "preservação das subjetividades intocáveis", experiência esta que vem a se correlacionar intimamente com a experiência jurídica científica, culminando numa totalidade em que as objetivações do cientista do direito, incompreensíveis sem uma referência à experiência, ordenadora espontânea do homem, torna-se parte integrante e ingrediente fundamental da própria experiência jurídica.

Este caráter múltiplo da experiência obriga a adoção de um método de análise capaz de captá-la enquanto objetivação histórica de intencionalidades constituintes do direito, ou seja a adoção de uma atitude fenomenológica que não culmina, porém, numa subjetividade transcendental, à maneira de Husserl, mas numa "experiência reflexa" que "se reflete" por sua vez no desenvolvimento histórico da cultura. Daí resulta que os elementos essenciais do direito — fato, valor e norma — sejam ao mesmo tempo categorias epistemológicas e ingredientes históricos constituintes da sua experiência.

Esta análise permite e exige uma compreensão integral no direito como processo fático-axiológico-normativo, como experiência histórico-cultural, que é ao mesmo tempo um dado da "natureza" e um "construído" das contribuições criadoras da sistemática jurídica. Isto possibilita uma discriminação entre jurisprudência ou ciência do direito e dogmática jurídica sem o conseqüente esfacelamento do objeto jurídico: há, na pesquisa do direito, um "momento abstrativo de determinação dos princípios e estruturas, em razão dos quais os modelos jurídicos são pensados em unidades sistemáticas, com sentido geral de realizabilidade e há o consequente momento de atualização funcional daqueles modelos, mediante técnicas e processos destinados a interpretá-los e aplicá-los nos distintos campos de sua incidência" (pág. 127-128).

Esta análise pressupõe uma dualidade no conceito de modelo, que constitui o núcleo central do ensaio n.° VII. A compreensão da experiência jurídica em termos de modelo é a de uma "estrutura normativa que ordena fatos segundo valores, numa qualificação tipológica de comportamentos futuros, a que se ligam determinadas consequências" (pág. 162). Quando esses modelos exprimem um sentido volitivo que estrutura normativamente os fatos sociais em função de valores, temos o que o A. denomina "modelos jurídicos"; quando exprimem estruturas teoréticas, referidas aos modelos jurídicos, cujo valor eles procuram atualizar e captar em sua plenitude, temos os "modelos de Direito ou dogmáticos", que são os modelos da Ciência do Direito.

A compreensão dos "modelos jurídicos" como estruturas volitivas tridimensionais possibilita uma superação da dualidade entre direito-norma e direito-conduta, pois o direito aparece para o A. ao mesmo tempo como norma e situação normada. A norma jurídica não é uma simples estrutura lógico-formal, mas um "modelo ético-funcional", de caráter prospectivo e concreto. Daí a distinção necessária entre "juízo lógico" e o "valor" expresso pelo juízo, que formam na sua unidade a norma jurídica, bem como a distinção entre a validade da norma isolada e a sua validade enquanto inserida no complexo do sistema. A norma jurídica, enquanto atualidade dinâmica de fatos e valores, está inserida numa temporalidade que lhe é própria, gerada pela experiência jurídica, como "duração significativa", caracterizada pelo descontínuo renovar-se e das soluções normativas (pág. 225).

As implicações desta análise na hermenêutica jurídica são evidentes. A interpretação não visa a coisas, mas à "intencionalidade" — no sentido lógico — dirigida a coisas. O ato interpretativo não se reduz, assim, à pura explicitação lógico-formal das proposições normativas, mas torna-se a busca do significado nelas objetivado, tendo presente os fatos e os valores dos quais as normas promanam. O ato interpretativo revela-se assim como um correlato do ato normativo, que parte de fatos e valores para instituir um significado.

O livro culmina com dois ensaios, um sobre experiência moral e experiência jurídica, e outro sobre a pena de morte.

Do resumo que apresentamos não se pode inferir, por certo, a amplitude global dos problemas tratados. O A. realiza neste livro uma obra de cunho prevalecentemente técnico e especializado, em que afloram à superfície as linhas gerais do seu pensamento, rastreadas em pesquisas exaustivas e na maturidade de sua própria experiência.

Fundamental nos pareceu a colocação do problema das estruturas e dos modelos jurídicos e sua implicação na hermenêutica, e na dogmática, assunto tratado de maneira nova e original e que não havia merecido, até hoje, maior atenção por parte da filosofia jurídica em todo o mundo. A compreensão da experiência jurídica em termos de modelos representa um superamento da distinção entre "fonte formal" e "fonte material" e um reexame completo da teoria das fontes do direito.

Oportuna e esclarecedora para o pensamento do autor nos pareceu outrossim a especificação do conceito de "fato" no seu tridimensionalismo, com a referência ao "Tatbestand" alemão e a configuração da noção de "fato-tipo".

Interessante e atual a discussão sobre sistema e problema no direito, hoje questão fundamental na ordem do dia das disputas internacionais e que põe em jogo diretamente o caráter científico da ciência do direito. O A. entra na controvérsia, salvaguardando a cientificidade da jurisprudência através de uma compreensão mais ampliada da racionalidade. A divergência do A. a esse respeito em relação à tópica jurídica de Theodor Viehweg parece-nos localizar-se sobretudo na orientação do seu pensamento, ligado à filosofia dialético-transcendental, em oposição à perspectiva aristotélica de Viehweg, que opõe a uma noção restritiva de "ciência" a noção de "prudência". Este ponto é, justamente, a nosso ver, aquele que merece uma consideração mais demorada.

Os representantes do ideal positivista de ciência, escreve Hans Albert (Theorie und Prognose in den Soziahoissenschaften, in Logik der Sozialwissenschaften, ed. por E. Topitsch, Kõln-Berlin 1965, p. 126), costumam ver como tarefa essencial de uma ciência a descrição do comportamento dos objetos em determinado campo objetivo, a explicação deste comportamento e a criação da possibilidade do seu prognóstico ou previsão. Pois um sistema que seja capaz de explicar os modos, precisos de comportamento dos fenômenos, deve ser igualmente capaz de prevê-los. Ora, diante da análise da ação humana, onde aparece uma gama enorme de comportamentos possíveis, com a necessidade do estabelecimento de "prognósticos alternativos" para modos diversos de comportamento, faz mister indagar da possibilidade de um sistema capaz de satisfazer a tais "prognósticos".

Segundo a perspectiva positivista, a ciência tem de se voltar para um sistema axiomático-dedutivo de proposições, para cuja confirmação, no caso de uma teoria empírica, os "experimentos mentais" (Gedankenexperimenten) teriam, porém, um valor meramente subsidiário: na verdade, quanto menores os "campos lúdicos de variabilidade" (Variabilitäts-spielräume) permitidos pela teoria, tanto maior seria sua capacidade empírica.

Se compararmos, entretanto, as teorias das chamadas "ciências do espírito" com a estrutura sistemática mencionada, observamos que elas se afastam deste modelo teórico num ponto essencial: ao invés de reivindicar hipóteses genéricas de validade espaciotemporal ilimitada, elas se prendem, expressa ou latentemente, a determinadas épocas ou culturas. Disto resulta uma certa relativização, que pode pôr em dúvida o próprio valor científico das ciências sociais e a fortiori da ciência do direito.

Diante disto haveria três procedimentos possíveis (cf. Hans Albert, op. cit., p. 137): a relativização histórica, obtida pelo levantamento explícito do relacionamento espaciotemporal do direito; a relativização analítica, que refere o direito à sua condicionalidade lógica; e a relativização estrutural, que pretende evidenciar a relação do direito com sua condicionalidade empírica.

O segundo procedimento corresponde à concepção dos representantes das chamadas teorias "puras". Estas procuram orientar-se pela "correção lógica", pela ausência da contradição em seu sistema de proposições, como único critério, colocando o valor da teoria, como instrumento analítico, em primeiro plano.

Em princípio, tanto M. Keale como T. Viehweg negam este procedimento. A ciência do direito tem a ver, em princípio, com proposições, que têm uma natureza peculiar. Neste sentido fala M. Reale de uma tipologia jurídica estrutural, pela qual a experiência do direito nunca se reduz às diversas experiências sociais, delas extraindo "o sentido normativo do fato" e não o conteúdo do fato em sua especificidade (op. cit, p. 33), estabelecendo com elas, entretanto, um relacionamento concreto, em virtude do qual se dá na experiência do direito mesma uma tensão (dialética) contínua, cuja estrutura se torna, então, ao mesmo tempo estável e dinâmica, universal e particular, sistemática e problemática., (op. cit., p. 35).

Do mesmo modo Viehweg: na análise estrutural do direito, aceitou-se, "sobretudo em sequência das intenções dos séculos 17 e 18, durante muito tempo, que a estrutura formal do direito grosso modo podia ser entendida como uma conexão dedutiva, explicável, principalmente, pela lógica dedutiva. Esta concepção seria própria de uma época, que considerou o papel da interpretação não como primordial, mas como secundário. Pois é, sem dúvida, evidente, que a interpretação tende a perturbar sensivelmente o rigor do sistema dedutivo" (cf. Rechtsphilosophie ais Grundlagenforschung, in ARSP Vol. 47/4, Neuwied-Berlim, 1961, p. 527; cf. também Topik una Juriisprudenz, München 1965, p. 53 ss.).

O procedimento adotado por M. Reale envia-nos à validade concreta dos modelos no direito, à sua historicidade intrínseca. O conceito de modelo significa para ele, se tomado em si mesmo, a articulação dos pressupostos teoréticos com a atualização da experiência, em termos operacionais (cf. op. cit., p. 167). Os modelos não são estruturas abstratas, mas concretas: há entre eles e a experiência uma "correspondência isomórfica" e os "modelos dogmáticos", devendo-se acentuar o seu caráter histórico-dinâmico e tridimensional. A ciência do direito teria a ver, portanto, com uma sistemática concreta e intrínseca, que resulta da lógica mesma das coisas (op. cit., p. 137-8).

Neste sentido, os modelos, para Reale, têm certamente uma função motivacional e de estabelecimento de garantias, mas isto não constitui razão suficiente para negar-lhes função cognoscitiva e científica (cf. op. cit., p. 115).

Outra é a concepção de Viehweg. Como Reale, reconhece ele a correlação necessária entre as teorias jurídicas e a práxis jurídica, Tais teorias constituiriam mesmo uma parte do ethos e este resulta do mero costume, da tradição e da moralidade (Rechtsphilosophie ais Grundlagenforschung, p. 524). O pensamento jurídico, que se ocupa com os problemas jurídicos, não seria, neste sentido, exprimível num sistema dedutivo, o que, porém, não significa que "a ele falte todo e qualquer sistema, toda e qualquer articulação significativa, não significando igualmente que a lógica dedutiva seja absolutamente dispensável, mas apenas que o seu acento formal repousaria em outra forma lógica, por exemplo na lógica redutiva" (op. cit., p. 528). (Neste sentido, a crítica de Reale, segundo a qual Viehweg nega cientificidade à Jurisprudência por considerá-la carecedora de unidade sistemática — M. Reale, 07?. cit., p. 136 — mereceria uma fundamentação mais ampla).

As teorias jurídico-dogmáticas contém, de um lado, elementos cognoscitivos, mas estes têm, por outro, primordialmente, uma "função não-cognocitiva" (Viehweg, Ideologie und Rechtdogmatik in Ideologie und Recht ed. por W. Maihofer, Frankfurt a.M. 1968, p. 86). Seu sistema preposicional conteria proposições ideológicas (em sentido não-marxista), de natureza cripto-normativa, das quais decorreriam consequências programáticas, no sentido político e social. Elas deveriam prever, em todo caso, que, com sua ajuda, uma problemática social determinada seria solucionável sem exceções perturbadoras (op. cit. p. 87). Viehweg fala, neste sentido, de "teorias com função social" (op. cit. p. 86).

Tanto M. Reale quanto T. Viehweg admitem que o pensamento jurisprudencial trabalha com invariantes relativas do meio cultural e social, e que, na prática, o jurista é obrigado a orientar-se por tais estruturas relativamente invariáveis, sem que esteja em seu poder estabelecer condições absolutamente genéricas e científicas, em termos de ciência exata. Mesmo em relação aos meios de que o jurista se utiliza, a doutrina de Reale não se afasta muito da de Viehweg. Pois não vemos, ao menos no campo prático, uma oposição decisiva entre o caráter ideológico das teorias com função social de Viehweg e o conceito funcional de modelo de Reale. Ambos possibilitam a captação da vida jurídica em sua estrutura vivente.

A diferença entre eles está, a nosso ver, na amplitude teórica das respectivas doutrinas. A perspectiva dialético-transcendental de M. Reale não nega o caráter científico às estruturas do direito. A oposição kantiana entre um mundo do ser e um mundo do dever-ser (Krttik der reinen Vernnunft, A-663, B-661), que a dialética de implicação-polaridade de Reale relaciona, sem anulá-los reciprocamente, faz-se presente em todo o seu pensamento, não implicando uma separação entre o científico e o não-científico, mas uma classificação dos modos de ciência. A cientificidade repousa, em ambos os casos, na possibilidade de uma objetivação genericamente válida das estruturas (cf. Reale, op. cit. p. 138, 117: o saber científico, entendido como "tarefa de objetivação progressiva").

O sentido desta "objetivação" deve ser determinado com cuidado, pois é justamente no seu caráter específico que está localizada a possibilidade de uma compreensão mais ampliada da cientificidade, em M. Reale. "Objetivação" deve ser entendida, em princípio, a nosso ver, no sentido que lhe atribui a chamada "filosofia transcendental". Se tomarmos, de um lado, o conceito geral de ciência, veremos que ele significa para Reale um sistema de proposições, leis e princípios, uma "unidade das conexões fundantes" (a "Einheit dês Begründungszusammenhanges" de Husserl, Logische Untersuchungen, Tübingen, 1968, I, p. 15), proposições que têm por tema um determinado campo do ser (cf. Reale: "Filosofia do Direito", S. Paulo 1962, p 65). Ora, da diversidade dos campos do ser resulta uma diversidade das formas de ciência. De outro lado, porém, e isto é o fundamental, conceitos como "objetivo" ou "objetivação" não significam, desde Kant, outra coisa senão "posto" ou "posição" por parte de um sujeito. Na perspectiva transcendental, portanto, a ciência "é" sempre e tão somente a partir da atividade (intencional, como afirmaria mais tarde a fenomenologia) de uma subjetividade constituinte. Miguel Reale concebe, porém, esta subjetividade na esfera do histórico, pois, para ele, a subjetividade constituinte é aquela do "Dasein" histórico do homem. Daí resulta um devir intencional, que tende, necessariamente, enquanto desenvolvimento, a um fim: a história do mundo deve, neste sentido, ser entendida em suas interpretações múltiplas como hermenêuticas dos diversos dados temporais, os quais se referem ao seu próprio vir-a-ser dialético-tensional (a tensão entre sujeito e objeto), em circunstâncias determinadas (cf. Reale, Filosofia do Direito, p. 324; cf. também Ontognoseologia, fenomenologia e reflexão crítico-histórica, in "Revista Brasileira de Filosofia", Fasc. 62, 1966, p. 154-5: "a correlação sujeito-objeto, vista como 'síntese transcendental', é antes a condição possibilitante das indeterminadas sínteses empírico-positivas que constituem a trama da experiência humana"; p. 199-200: "entre subjetividade e objetividade não se verifica, em verdade, mera possibilidade de 'referências' destinadas a se confirmarem reciprocamente, à luz de uma crítica da história, pois nessa ideia mesma já está implícita a de que a intencionalidade co-implica o mundo das objetividades, e que sem estas aquela seria simples forma vazia e insignificante").

No processo das objetivações, a possibilidade de se obter uma forma invariante e ao mesmo tempo dinâmica do mundo do direito, o que fundaria a sua cientificidade, é correlata com a idéia de que é o homem o fundamento constitutivo — o único valor que se põe a si mesmo — para a construção de uma ciência objetiva. O ser do homem aparece como estando em uma gênese envolvente, a qual por sua vez é instaurada por um constituir-se a si mesmo do ser do homem. A objetivação, portanto, resulta de uma atividade da experiência "reflexa", que "se reflete" por sua vez no desenvolvimento histórico da cultura (Reale, O direito como experiência, p. 53, 47 ss.). A cientificidade, que se funda na possibilidade de objetivação, não pode, pois, ignorar, tendo mesmo de pressupor, necessariamente, uma referência à atividade intencional da subjetividade.

A perspectiva aristotélica de Viehweg pretende, ao contrário, permanecer ligada, tanto quanto possível, ao "mundo real", sem que se procure voltar à subjetividade.

Em Aristóteles, a cientificidade é atribuível apenas ao conhecimento universal. A sensação coloca-nos diante daquilo que depende das condições espaço-temporalmente inconstantes. Enquanto o universal não é determinado, o objeto sensível permanece incerto. (An. Post. II, 19, 100 a 15). O particular, na sensação, é sempre ilimitado, isto é, indeterminado. Deste modo, o progresso necessário que vai do ilimitado ao limitado mostra-se como a condição constitutiva da ciência. O universal, entretanto, não é como que uma soma ou resumo dos dados da experiência, mas um "limite" em cuja estabilidade ou determinabilidade repousa a estabilidade da própria experiência. O universal, porém, se diferencia não apenas do particular mas também do genérico (An. Post. I, 11, 77 a 26-31), pois a generalidade é também uma espécie de indeterminabilidade, e neste sentido, objeto de um pensamento retórico ou tópico e não de um científico ou apodítico. A cientificidade em Aristóteles estaria assim num ponto intermediário entre a particularidade e a generalidade.

A lógica apodítica enquanto epistemologia formal significa, a nosso ver, um certo distanciamento da subjetividade, o que explica, aliás, a crítica de Husserl, segundo a qual a indagação regressiva sobre a atividade primordial da subjetividade, que se iniciara com Sócrates e Platão, cai em esquecimento com a filosofia aristotélica (Cf. Formale und transzendentale Logik, Halle 1929, p. 7, 197).

A diferenciação entre pensamento tópico e apodítico implica, segundo nos parece, a oposição acentuada por Viehweg entre scientia e prudentia; a cientificidade, nesta perspectiva, não mais se caracterizará em função da atividade da subjetividade. Neste sentido escreve O. Ballweg — certamente bastante influenciado por Viehweg — que a ciência (scientia) tem um caráter não-histórico, pois a ciência "se construit elle-même ses conditions et dépend de moins en moins des conditions historiques" (Science, Prudence et Philosophie du Droit, in ARSP, Vol. 1965 LI/4, p. 550). O critério da cientifidade estaria na unidade metodológica, no "método de mensuração comparativa" (op. cif., p. 552). O desenvolvimento em razão de uma cientificidade cada vez maior estaria em função da possibilidade de aplicação de uma mensuração cada vez mais exata (op. cit, p. 553).

A concepção de Ballweg tem seus fundamentos na perspectiva aristotélica de Viehweg. Pois a exatidão só pode ser alcançada à vista de um aparelho conceitual unívoco. Ora, é a univocidade do aparelho conceitual que possibilita o procedimento apodítico. A equivocidade, ao contrário, implica a necessidade de um procedimento tópico (dialógico). A busca da cientificidade exigiria, assim, uma neutralidade axiológica progressiva e, em conseqüência, uma "des-subjetivação" da metodologia, pois o método axiológico postula uma relação (dialógica) a um sujeito. A referibilidade a valores enfatiza o papel da interpretação, justamente porque todo aparelho conceituai axiológico traz em si, necessariamente, uma certa equivocidade. A cientificidade mais intensa possível, na perspectiva aristotélica de Viehweg, estaria, a nosso entender, à vista da argumentação supra, numa eliminação progressiva da dialogicidade e na sua substituição pela apodicidade ("uma quota tão grande quanto possível de scibilia e pouca credibilia" — Viehweg: Ideologie und Rechtsdomatik p. 90). Nessa perspectiva ainda, um saber que seja dialógico não é ainda científico, mas pré-científico.

Podemos agora ver em que sentido as perspectivas teoreticamente diferentes de M. Reale e T. Viehweg implicam concepções diversas do caráter teorético das mesmas estruturas jurídicas.

O relativismo histórico de Reale, que se funda numa perspectiva transcendental, vê na jurisprudência uma espécie de ciência. Embora a jurisprudência não tenha o mesmo caráter das ciências exatas, não lhe devemos negar cientificidade, na medida em que esta se funda, em princípio, na consciência "como possibilidade originária de síntese" (Reale: "Ontogno-seologia, Fenomenologia . . . " p. 164), o que nos permite atribuir às estruturas jurídicas uma certa objetividade.

Por outro lado, o relativismo estrutural de Viehweg, que se funda numa perspectiva aristotélica, nega cientificidade à jurisprudência. A relativização espácio-temporal da jurisprudência significa para ele a relativização do campo de aplicação e não do seu caráter científico. A investigação empírica das condições da jurisdicidade aclara as condições de sua aplicação, mas não pode explicar as suas condições científicas. A possibilidade de uma cientifização da jurisprudência estaria talvez numa "desideologização da dogmática jurídica". Mas, mesmo neste caso extremo, teríamos, provavelmente, uma mera redução a um "mínimo ideológico". O mundo do direito libertar-se-ia, nesta hipótese, da reflexão ideológica: mas não porque ele se teria tornado ideologicamente neutro, mas porque o "mínimo ideológico", de antemão posto fora de todo e qualquer questionamento, teria sido dogmatizado de modo tecnicamente perfeito (Viehweg:Ideologie und Rechtsdogmatik, p. 96).

Com esta análise, quisemos sobretudo determinar os limites, dentro dos quais se encerram as bases de uma teoria da ciência e a partir dos quais se inicia a construção científica, bem como estabelecer em que medida esses pressupostos últimos e imanentes, pelo modo específico em que são dados, não só possibilitam, mas também exigem uma determinada construção. Neste sentido, não oferecemos nenhuma tentativa de solução ao problema de caráter teorético do direito, nem desejamos oferecê-lo, pois isto significaria não só algo que ultrapassaria os limites de uma análise desta espécie, bem como a tornaria impossível enquanto tal.

Fonte: Revista Brasileira de Filosofia, vol. XIX, São Paulo: 1969, pp. 220-230.