A tutela dos Interesses Difusos - Painel - DEBATES

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Des. Weiss de Andrade — Senhoras e Senhores, a Associação Paulista de Magistrados, o Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, o Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP e o Instituto "Pimenta Bueno" de Direito Constitucional, encerram hoje o seu primeiro Seminário — ao que se sabe, o 1.° Seminário Nacional a respeito da Proteção dos Interesses Difusos. E, nesse painel, estão hoje presentes os seguintes professores: Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Prof. Cândido Dinamarco, Prof. Waldemar Mariz de Oliveira Jr., Prof. Antônio Magalhães Gomes Filho, Prof. Renato Guimarães Jr. e Prof. Jackson Gouveia de Barros, representando o PROCON. O Prof. Renato Guimarães Jr. representa o Ministério Público, como também o Prof. Antônio Magalhães Gomes Filho; o Prof. Waldemar Mariz é do Tribunal de Alçada como o é também o Prof. Cândido Rangel Dinamarco. E o Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr. representa a FIESP. A Profa. Ada Pellegrini Grinover, a quem se deve praticamente a coordenação do curso, teve a gentileza de solicitar que eu fosse o coordenador desses debates. Mas em nome da Associação Paulista de Magistrados e como uma. homenagem aquela que realmente organizou este curso, eu solicitaria que a coordenação ficasse nas mãos da Profa. Ada Pellegrini Grinover. É a homenagem e o agradecimento que a Associação Paulista de Magistrados presta a uma mestra de tanto valor e de tanta significação na vida cultural de São Paulo.

Profa. Ada Pellegrini Grinover — Desembargador Weiss de Andrade, não fosse a amizade que nos une e o respeito mútuo que temos um para com o outro e eu ficaria por demais desvanecida com essas suas palavras e com esse gesto tão amável, tão simpático, de me transferir a coordenação do painel. Mas sei que tudo se deve exatamente à nossa amizade e isso também os ouvintes, os participantes da Mesa bem o sabem, de forma que saberão redimensionar as palavras ditas com relação à minha participação nesse trabalho, já que se tratou de um trabalho coletivo que envolveu diversas instituições e para cujo sucesso tantas e tantas pessoas têm colaborado. Mas eu agradeço a deferência e fico extremamente honrada com ela.

Inicialmente, e agradecendo ainda a presença tão prestigiosa de tantas personalidades ilustres e representativas neste painel, eu passo a palavra ao Prof. Tércio Sampaio Ferraz Jr., na sua qualidade de representante da FIESP.

Prof. Tércio S. Ferraz Jr. — Cumprimentando rapidamente a Mesa e o auditório, esclareço inicialmente que, apesar de estar aqui na qualidade de representante da FIESP, não consigo, por assim dizer, separar a minha qualidade de professor de Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito, aqui na Faculdade, quando vou tecer alguns comentários sobre um tema tão abrangente e atual como este. De modo que, de fato, formalmente, estou aqui na qualidade de representante da FIESP — mas quanto ao conteúdo é inevitável que eu acabe falando como professor de direito. E, quanto à minha colocação inicial, diria o seguinte: o interessante é que este tema venha a aflorar agora, nesta segunda metade do século XX, com essa intensidade pelo menos. É óbvio que temas dessa natureza sempre os podemos encontrar na história, através de algum elemento, de alguns indícios de que já eram tratados, já eram percebidos — mas ele aflora, sem dúvida, na época atual. E isto me parece estar ligado ao tipo de sociedade na qual vivemos, que é a chamada sociedade de massa, conceito bastante difícil de ser determinado, principalmente por ter uma carga pejorativa muito grande. Tradicionalmente a oposição entre massa, de um lado, e elite de outro, por exemplo, leva-nos a pensar na massa como algo pejorativamente considerado: a massa, e tudo que é massificado, é algo mau e aquilo que é elitário, elitista, é algo considerado bom. De início eu afastaria essa visão qualitativa. Diria, apenas para que nós nos entendêssemos, que proteção de direitos difusos ou mesmo a idéia de um direito difuso, ou a idéia até do difuso, está muito ligada a esta sociedade de massa, cuja característica primordial, do ângulo quantitativo, é o aumento demográfico crescente. Uma sociedade de massa é sem dúvida uma sociedade onde a presença quantitativa é marcante. É óbvio, entretanto, que uma sociedade de massas não é apenas uma sociedade demograficamente grande, mas é também uma sociedade onde a uniformidade social prevalece sobre a universidade. Portanto é aquela sociedade onde a tendência é tratar o indivíduo em termos uniformes, seja formalmente, seja materialmente. Uma sociedade de massas é uma sociedade onde se tendem a dirimir as relações jurídicas clássicas, que acompanhavam a cultura ocidental — pelo menos desde os romanos ou, até, antes deles — como relações pessoais (não vou dizer individuais); a sociedade de massas é uma sociedade onde essas relações pessoais tendem a se dirimir, onde não conseguimos mais perceber o ser humano como pessoa, onde somos tratados todos uniformemente. Isto se observa em diversos institutos que vêm surgindo nos últimos anos, de uma maneira crescente: por exemplo, o contrato de adesão é típico neste sentido, porque não somos mais tratados como pessoas, mas uniformemente, em grupos. O mesmo ocorre com contratos coletivos de trabalho. Essas noções mostram que estamos diante de um fato diferente, socialmente falando. E na sociedade de massas há uma inversão não apenas na chamada relação jurídica — as pessoas desaparecem como tais — mas há também uma transformação na própria idéia de direito. A sociedade de massas é uma sociedade de tutela; é uma sociedade onde mais do que os aspectos éticos do justo e do injusto — neste sentido ético do direito e do não direito, do jurídico e do antijurídico — são substituídos por aspectos formalistas — do legal e ilegal, do formalmente lícito e do formalmente ilícito — onde a tutela jurídica se transforma numa tutela de controle da uniformidade. O importante é saber como controlar as massas, tendo em vista a persecução de certos fins. Trata-se de uma sociedade eminentemente formalista, onde a concepção de objetivos é muito mais importante do que, por exemplo, o respeito à experiência e à tradição, em que existe o princípio de que os fins acabam orientando, pelo menos, a escolha dos meios preponderantes. É nessa sociedade que mais vemos aparecer noções como essa, de interesses difusos. É nessa sociedade — e esse é o aspecto sob o qual eu gostaria de tratar a questão — é nessa sociedade que aflora de modo problemático a noção da responsabilidade, que é primordial quando se pensa em proteção do meio ambiente, em defesa do consumidor.

A teoria da responsabilidade — não vou me estender neste assunto — é marcadamente, pela tradição do direito, personalista: isto é, ela nasceu, cresceu e se desenvolveu enquanto o direito regulava relações interpessoais, vinculando-se à idéia da pessoa e a suas extensões, à liberdade, à vontade livre, à possibilidade da manifestação dessa vontade, etc.. Vinculando-se a teoria da responsabilidade à pessoa, era óbvio que no momento em que a sociedade se transformasse, a idéia, por exemplo, da responsabilidade objetiva ou responsabilidade pelo risco, aparecesse como uma espécie de exceção à idéia matriz que era a responsabilidade com liberdade, a responsabilidade baseada no comportamento da pessoa. Essa idéia da responsabilidade objetiva, então, acabou, pouco a pouco, se desvinculando da primeira, procurando outros critérios: o critério do risco. E a responsabilidade objetiva, que primordialmente era uma espécie de exceção à regra, vai pouco a pouco tomando conta da noção de responsabilidade. E, nessa sociedade de massas, a idéia do risco começa a ser muito mais importante do que a idéia de liberdade. De fato, ela é que começa a tomar conta do direito. Eu diria — talvez assim, apenas para abusar da generalização — que hoje em dia vivemos muito mais em função do risco do que em função da liberdade. E toda a questão da proteção do direito e do modo pelo qual nós vemos os nossos direitos e, em conseqüência, a própria idéia de interesses difusos vive muito mais em função dessa responsabilidade voltada para o risco do que voltada para a liberdade. Apenas a título de curiosidade, eu, que costumo ir de minha casa ao meu trabalho, todo dia a pé, pela Avenida Paulista, tenho tempo de notar o comportamento do motorista diante da sinalização do trânsito. Talvez essa seja uma peculiaridade do brasileiro — e em boa parte é — mas pelo menos isto me chama a atenção: o nosso sinal semafóríco, e todas as regras de trânsito que ele transmite, ou que ele no caso representa, deveriam ser uma espécie de divisor de responsabilidades. O sinal confere as responsabilidades respectivas ao motorista, ao passante, ao pedestre. No entanto, nota-se que o sinal de trânsito, no Brasil, pela pressão da sociedade de massas — não do ponto de vista estritamente jurídico-dogmático, mas do ponto de vista sociológico-jurídico — dificilmente pode ser considerado uma espécie de divisor das responsabilidades no sentido da liberdade; ele é muito mais um divisor das responsabilidades no sentido de risco. Para ser bastante claro, o sinal verde significa que o risco do atropelamento ou de uma trombada é menor, o amarelo significa que o risco cresce e o vermelho significa que ele é bastante grande. O aspecto da obrigação, e portanto da responsabilidade no sentido da liberdade, da imputação pelo ato, é sensivelmente secundário na consciência do motorista e, até mesmo, do pedestre. O sinal de trânsito serve como uma espécie de distribuidor de riscos.

Vivemos, portanto, numa sociedade de massas onde a noção do risco é uma noção fundamental. E isto está provocando uma imensa transformação no próprio direito. Pois bem, quando começamos a pensar na proteção de certos interesses difusos, como por exemplo, os interesses relativos ao meio ambiente, ao ar puro — o direito de respirar ar puro aqui ou acolá — percebemos que nesse tipo de sociedade em que estamos vivendo, a questão da liberdade, a questão da pessoa ficou para trás. Estamos diante de uma sociedade onde o problema do risco começa a ser fundamental. E, em termos de risco, entramos numa era em que o direito começa a ser objeto de cálculo, isto é, ele é eminentemente normativo — é norma. A noção de direito subjetivo perde um pouco o seu sentido ligado à pessoa — ele se torna muito mais norma e a idéia de cálculo acaba prevalecendo. Essa idéia de cálculo torna possível a observação em termos de juntar interesses para verificar quais aqueles que merecem ser protegidos, tendo em vista o menor risco possível. Mas essa idéia de cálculo, no entanto, acaba nos levando a imensos paradoxos. Isto porque, embora a sociedade de massas imponha essa visão do direito como um distribuidor de riscos e a visão da sociedade como submetida a uma tutela baseada em normas e não em direitos preexistentes, é inevitável que a sociedade, ainda assim, seja composta de pessoas. De modo que, em direito, o resultado paradoxal é o de que quando eu, particularmente, até mesmo no âmbito da FIESP, sou obrigado a examinar questões relativas a interesses desse gênero, como os interesses difusos — problemas do meio ambiente, ou problemas de defesa do consumidor — eu me sinto um pouco perplexo porque percebo que o direito não está conseguindo oferecer crité-rios que, de fato, ainda possam proteger a pessoa. Todos os crité-rios que se nos oferecem visam a distribuir riscos, isto é, a pessoa é passada sensivelmente para trás. E ela é sensivelmente passada para trás, por exemplo, na medida em que questões dessa natureza são imediatamente endereçadas para o caminho do Direito Público. Isto é, a sociedade de massas é uma sociedade que tende a uma publicização do direito e mais a mais a uma estatização crescente do direito. E toda vez que se tenta criar condições para a pessoa ou os grupos se manifestarem, as dificuldades são bastante grandes — eu não quero entrar em aspectos processuais — mas vejo dificuldades graves em projetos como este do Célio Borja, sobre o qual certamente falarão nesta reunião.

A minha intenção foi apenas colocar o problema da sociedade de massas, o problema da responsabilidade objetiva e a questão de uma sociedade voltada para a distribuição de riscos e não para a proteção de direitos. Acho que na discussão da proteção de direitos difusos, é preciso ter esse cuidado, para saber se estamos realmente falando de direitos, no sentido tradicional, ou se estamos simplesmente julgando a distribuição dos riscos dentro da sociedade.

Profa. Ada P. Grinover — Agradeço ao Prof. Tércio S. Ferraz e passo a palavra ao Prof. Cândido Dinamarco, que aqui comparece como Juiz do Tribunal de Alçada — ex-membro do Ministério Público e, também, professor desta Casa.

Prof. Cândido Dinamarco — Prezados colegas, a minha colocação, nesse segmento do Painel, é uma colocação eminentemente processualista. Pretendo inserir essa problemática da tutela de interesses coletivos no contexto das tendências atuais do direito processual. A ciência do processo principiou a se colocar, como é de todos sabido, na segunda metade do século passado. E, como é natural, houve um trabalho, um trabalho bastante empolgado dos processualistas, no sentido de proclamarem a independência científica e metodológica do direito processual. Essa evolução levou à afirmação da existência de uma relação jurídica processual, à afirmação da autonomia do direito de ação, primeiro como direito concreto, depois como direito abstraio de agir. Levou à formulação de regras, princípios particulares ao direito processual, e levou, afinal, a uma certa exacerbação dos valores inerentes ao processo, à jurisdição e a seus institutos, em geral. Parece-me que agora é o momento de, com a tranquilidade de quem já está convicto da meta conquistada — a proclamação dessa autonomia científica e metodológica — parar e voltar os olhos ao direito material, no sentido de que o processualista possa conscientizar-se dos desdobramentos de uma visão puramente instrumental do direito processual. O processo como instrumento é uma afirmação bastante corrente, hoje em dia, mas me parece que precisamos tirar disso duas ilações. Precisamos ver os dois lados dessa afirmação. Um deles é o do instrumento que não deve ser supervalorizado, do instrumento que não deve passar acima do. seu objetivo, como se fosse ele um valor em si mesmo. A todo momento vemos essa afirmação e, na prática dos processos, vê-se isso

* Realizado a título de encerramento do "Seminário Sobre a Tutela dos Interesses Coletivos", aos 15-12-1982, na Faculdade de Direito da USP.

Coordenação do Dês. Weiss de Andrade, com a participação de Ada Pellegrini Grinover, António Magalhães Gomes Filho, Cândido R. Dina-marco, Jackson Gouveia de Barros, Renato Guimarães Jr., Tércio Sampaio Ferraz Jr., Waldemar Mariz de Oliveira Jr.

Fonte: A tutela dos Interesses Difusos, Max Limonad, São Paulo: 1983, pp. 153-157.