A regulação nas bolsas

Raymundo Magliano e Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Desde sua implantação modernizada, as Bolsas de Valores brasileiras têm sofrido crises conjunturais periódicas, que apontam claramente para problemas localizados em sua estrutura. Na luta constante para viabilizar um mercado florescente, o que se tem visto é uma sucessão de tentativas semi-frustradas no sentido de vencer a forte dependência dos dinheiros arrecadados institucionalmente, de superar a indisposição crônica do investidor para aplicar seu minguado capital, de conquistar um mínimo de autogestão, jurídica e administrativa, capaz de fazer das Bolsas uma realidade autêntica e consolidada.

Nos últimos meses, o mercado futuro tem aparecido como mais uma esperança de viabilização, marcando uma expectativa talvez promissora de bons negócios para o investidor. Anunciado, no roldão fácil do entusiasmo nacional, como uma alternativa até salvadora, ele conheceu muito breve, no entanto, as agruras de uma ameaça de descontrole. Houve em pouco tempo uma alta vertiginosa do preço de algumas ações. Isto criou uma espécie de euforia que, rapidamente, conduziu o mercado a uma oscilação que saía dos parâmetros normais. Diante da expectativa de descontrole, a Bolsa tentou reformular alguns critérios para as margens de operação. Perante esta sóbria iniciativa de auto-regulação, no entanto, a CVM reagiu heteronomamente, estabelecendo, por sua conta e tirocínio, as regras que lhe pareciam cabíveis para estruturar adequadamente o mercado futuro.

Este pequeno incidente manifesta, a nosso ver, o problema da regulação do mercado entre nós.

A Bolsa como sistema social

O mercado bursátil é um sistema de interações institucionalizadas, predominantemente voltadas para operações de compra e venda de valores (as ações coladas), realizadas em lugar determinado (pregão), operadas por mediadores (corretores) e que visam à troca de poupança. Trata-se, pois, de um sisterna social, sujeito a pressões que fazem parte do seu padrão normal de funcionamento. Neste sentido, podemos dizer que o mercado de Bolsa é um sistema constituído dos seguintes elementos: os trocadores de poupança (aplicadores), ou seja, aqueles agentes, que, ao trocar títulos, visam a uma renda variável, e os mediadores, entendidos como o agente que põe em relação os trocadores de poupança, fundados na confiança institucionalizada (legal ou de falo) que inspira. Dentro do sistema este papel cabe ao corretor, isto é, o agente que tem a exclusividade na mediação, ou seja, nas operações de compra e venda de ações cotadas. Sua função é garantir a confiabilidade institucionalizada das trocas de poupança.

Todo sistema tem um funcionamento normal. Este normal significa a presença e manutenção, num certo grau, de certas variáveis ou qualidades essenciais do sistema. No caso do sistema da Bolsa, temos: a cotação, que é a fixação do preço certo, a troca de poupança, ou seja, a permuta de rendas não consumidas, e a institucionalização, ou a confiança da comunidade nas operações realizadas no sistema que, de uma forma implícita, se vê aprovado globalrnente, independente do fafo de existirem opiniões divergentes sobre sua credibilidade. A ausência total de qualquer dessas variáveis pode levar o sistema a um grande desequilíbrio ou crise: No dia a dia das Bolsas, observam-se desequilíbrios parciais, que fazem parte da sua vida. Estes desequilíbrios são operados por fatores que afetam as variáveis essenciais. Esses fatores são as chamadas pressões .

Mecanismos reguladores

O mercado de ações funciona normalmente sob pressão. As pressões manifestam-se de formas variadas. Elas são insuportáveis quando o seu sistema não tem condições de enfrentá-las. Para evitar que isto ocorra, há necessidade de mecanismos reguladores. Entre eles, podemos distinguir dois tipos fundamentais: os mecanismos preventivos e os repressivos.

Os primeiros são defesas que procuram adequar as pressões à capacidade de funcionamento do mercado, na medida em que impedem que certas pressões atinjam diretamente as suas variáveis essenciais. Assim, uma crise ministerial gera pressões políticas que um mercado regulado teria capacidade de absorver sem repercussões do gênero crise,como diminuição expressiva da liquidez, oscilações descontroladas das cotações e abalo na confiabilidade da insituição.

Dentre os mecanismos preventivos, poderíamos mencionar, por exemplo, a atividade das corretoras quanto a aconselhar, interpretar os acontecimentos, direcionar os investimentos, acabando por estabelecer filtros prévios para as influências imediatas ( mecanismo preventivo institucional) . Também os Conselhos de Administração das Bolsas de Valores, quando estabelecem normas tentando evitar sobrecarga (suspensão de ações cotadas, quando a informação é insuficiente, como aconteceu com ações da Petrobrás, Light, Servix), estão atuando como reguladores preventivos. Ou ainda, a própria mentalidade capitalista, a ideologia da economia de mercado e o espírito de investimento previnem, de certo modo, pressões de origem variada, possibilitando à Bolsa o equilíbrio necessário.

Já os mecanismos repressivos, por sua vez, são defesas que procuram adequar o funcionamento dos mercados às pressões já ocorridas, na medida em que reforçam punitivamente a capacidade de resposta do sistema. Têm uma atuação a posteriori, corrigindo e minimizando os riscos provocados por desvios em pautas de comportamento. Quanto a eles, dentre os mais evidentes, temos, por exemplo, a ação normativa da CVM quando, no recente episódio das ações da Vale do Rio Doce, decidiu punir o corretor interveniente.

Os mecanismos reguladores, do ponto de vista dos seus agentes de controle, podem localizar-se dentro do sistema ou fora dele. Como diz Nelson Eizirik em seu livro O Papel do Estado na Regulação do Mercado de Capitais há dois grandes modelos de regulação aplicáveis a qualquer mercado, inclusive o de capitais: a) a regulação de modo voluntário, que chamamos de auto-regulação, realizada em geral pelas próprias Bolsas de Valores, no contexto de um mercado de capitais; e b) a regulação jurídica, posta através de normas jurídicas, via de regra nor meio da atuação de agências reguladoras.

O funcionamento de um sistema baseado na regularão voluntária é o caso da Inglaterra, onde predomina a auto-regulação, efetuada através das Bolsas de Valores, teoricamente quase não existindo regulação governamental.

Alguns fatores próprios do mercado de capitais na Inglaterra favorecem a auto-regulação: o mercado financeiro é bastante antigo, com uma tradição consolidada na negociação de títulos; o mercado caracteriza-se por um alto grau de concentração (há apenas uma Bolsa de Valores) e sofisticação; existe um corpo de normas jurídicas válidas para todo o país; todas as transações com títulos ocorrem na Bolsa.

A regulação jurídica é o sistema utilizado nos Eslados Unidos, onde a Securities and Exchange Comission (agência federal encarregada da administração da legislação) foi criada em 1934 no período de reformas do New Dcal como uma resposta à crise de 1929; historicamente, foi um sistema de regulação para impedir a repetição da crise.

Um dos objetivos principais, desta criação era fornecer aos investidores as informações necessárias no caso de ofertas públicas de vendas de títulos, proibindo práticas fraudulentas e ampliando a doutrina do disclosure também para títulos transacionados no mercado secundário.

Um dos falores que torna eficiente e duradoura a SEC no contexto norte-americano baseia-se na existência de investidores ativos na defesa de seus interesses e, conseqüentemente, no desenvolvimento crescente das ações judiciais. O sistema jurídico daquele país, onde os juízes não só interpretam, mas também criam o direito, ajuda sobremaneira a definir e determinar a responsabilidade dos administradores e acionistas controladores e induzi-los a urn comportamento honesto.

A regulação no mercado brasileiro

No Brasil, como se sabe, temos a Comissão de Valores Mobiliários — CVM — como uma autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda, com poderes para disciplinar e fiscalizar o mercado e as companhias abertas, enfim, uma agência governamental especializada em exercer a função de polícia do mercado para evitar abusos (vide artigo 4.° da exposição de motivos da lei que a criou). Sua importância como agência reguladora qualifica o sistema brasileiro nos moldes de uma regulação jurídica, de natureza heterônoma, com mecanismos de atuacão basicamente repressivos.

A CVM teve sua fonte de inspiração na SEC americana. Ditada por uma decisão político-econôrnica, sua atuacão, contudo, tem sofrido dificuldades intermitentes. Na verdade, a experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora os traços de outras culturas, quando estas encontram uma possibilidade de ajuste nos seus quadros de vida.

Até certo ponto, faltam à regulação jurídica norte-americana adaptada ao nosso sistema respaldes importantes na tradição cultural brasileira. Como uma sociedade de origens nitidamente personalistas, os vínculos de pessoa a pessoa sempre foram decisivos, com acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional e uma espécie de atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras e racionalizadoras. Disto resulta uma certa tibieza em nossas formas de organização e de todas as associações que impliquem solidariedade e ordenação entre os membros. Como diz Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, "em terra onde todos são barões não é possível acordo colelivo durável, a não ser por uma forma exterior respeitável e temida."

É óbvio que, neste quadro, o mercado bursátil brasileiro tem dificuldades de implantar-se e regular-se. Faltando-nos o reconhecimento da importância do esforço humilde, anônimo e desinteressado, e estimulando a organização racional, temos, em consequência, uma evidente precariedade organizacional que traz a preponderância de formas disciplinadoras fundadas em excessiva centralização do poder e na obediência. Como, porém, a simples obediência, enquanto princípio de disciplina, não é continuamente praticável, o que ocorre é uma instabilidade crônica do mercado, no sentido de sua definitiva implantação e na possibilidade de sua regulação.

Ademais, do nosso personalismo social decorre o fato de que a Bolsa brasileira, embora como um mercado capitalisla devesse pressupor competição e cooperação, revela, na verdade, rivalidade e prestância. Os dois primeiros são comportamentos orientados, ainda que de modo diverso, para um objetivo material comum, o qual montem, então, os indivíduos unidos ou separados. Já na rivalidade e na prestâcia o que une e desune é o dano ou benefício que uma parte possa trazer à outra: o objetivo material e secundário, o que conta são as relações pessoais. Disto seguem os evidentes regionalismos e as lulas personalistas, entre facções que observamos, por exemplo, no relacionamento entre a Bolsa do Rio de Janeiro e a de São Paulo, com evidentes prejuízos para a sua organização em moldes capitalistas.

Em consequência, para que a regulação jurídica, nos moldes da CVM, ou até mesmo uma auto-regulação, pudesse atuar plenamente no mercado brasileiro, seria necessário não tanto o aperfeiçoamento dos mecanismos repressivos, mas muito mais a presença eficiente do que chamamos antes de mecanismos preventivos, isto é, aqueles que procuram adequar as pressões à capacidade do funcionamento das Bolsas.

O mercado bursátil nacional tem, obviamente, mecanismos desta espécie. Mas quando visam à prevenção de pressões insuportáveis, notamos que eles nascem em primeiro lugar da necessidade de refrear e de conter os excessos particulares momentâneos e só, mais raramente, da pretensão de associar permanentemente as forças ativas. Assim é que, na recente Resolucão nº. 19 da CVM, que disciplinou o mercado futuro, a simples leitura de suas normas mostra que o intuito primordial é conter os excessos e, secundariamente, estabelecer as condições de cooperação e competição. Deste modo, a Resolução preocupa-se em estabelecer limites e padrões operacionais, prevenindo-se antes os prováveis excessos especulativos e, apenas indiretamente, orientando os investimentos.

Esta característica da regulação do nosso mercado de ações pode ser insatisfatória, frustrante, mas é uma realidade da qual não podemos fugir. Ela não é apenas típica para o mercado, mas atravessa nossa vida social em todas as suas dimensões. Está presente, portanto, nas problemáticas política e econômica. Já tem de ser reconhecida, nestes termos como um obsláculo que se enfrenta todas as vezes que se tenta, entre nós, qualquer processo de modernização nos moldes dos sistemas desenvolvidos.

Texto digitado e organizado por: Gabriela Faggin Mastro Andréa.