A ponta do "iceberg"

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Muito se tem falado de crise no momento em que vivemos. Há quem diga que o Brasil estaria até mesmo às portas de uma grave agitação popular, capaz de reverter os processos e lançar-nos a todos num redemoinho sem fim. Na verdade, tanto da parte das oposições quanto da parte do governo nota-se um tom de insegurança a marcar atitudes e decisões, que aponta para algumas questões de incontornável relevância: que perspectivas existem realmente na abertura encaminhada pelo governo? Que pensam os militares disso? Ate que ponto as classes políticas têm condições de viabilizar os projetos que lhes são exigidos? Como se comportaria a sociedade civil em caso de malogro da abertura?

Do pano de fundo para todas estas interrogações sobre o futuro do País, um problema parece sobressair, o qual, embora abstrato e sem colorido, resume dramaticamente todas as nossas incertezas: qual a sociedade que queremos e podemos propor? Nesta simples indagação estão contidas, talvez, todas as dúvidas que assaltam o atual projeto de abertura. Afinal objetlva-se com ele a instauração do Estado de Direito, da plena normalização democrática, mas também uma nação que possa prosseguir sobre suas próprias pernas a caminhada em busca da independência econômica e da Justiça social.

O que se observa, entretanto, é que as dúvidas estão sendo maiores que nossa capacidade de resposta. Por exemplo, qualquer expectativa de plena realização da abertura envolve, necessariamente, uma indagação a respeito das relações entre a Nação e o Estado. Estas relações, contudo, permanecem obscuras na medida em que continuamos a falar em segurança e em desenvolvimento como qualidades globais e desejáveis do processo de democratização, sem que se perceba em que medida a sociedade brasileira como tal as incorpora. As dimensões atingidas pela desigualdade entre grupos e indivíduos chega, em alguns casos, às raias do in­suportável, sem que se consiga sequer localizar os seus centros produtores, a fim de desmobilizá-los mais rapidamente. Afinal, a desigualdade é econômica de modo manifesto, mas ela é também política, social e cultural, de onde se segue a dúvida que assalta a Revolução de 64 desde os seus primórdios: por onde começar?

Estas indagações, de ordem Institucional, não se limitam, no entanto, à esfera do político profissional, seja do governo ou oposição. Na realidade, a própria sociedade civil parece buscar, dentro de si, respostas coerentes a problemas que afetam sua própria organização. Quando se assiste às manifestações coletivas contra a carestia, pelos trabalhadores, em favor dos direitos sindicais, pela preservação ecológica, contra usinas nucleares etc. está em jogo a própria liberdade do cidadão, do homem comum envolvido pelo seu cotidiano. Esta liberdade, entretanto, admite uma gama de significações, como a tolerância perante os outros, a aceitação de minorias de todos os tipos, o inconformismo individual, mas também a disponibilidade econômica, política, cultural de agir dentro de certos padrões e até fora deles. Estas diferentes formas e mesmo graus de liberdade existem, obviamente, de maneira desigual nos diversos grupos sociais. A sociedade brasileira, contudo, parece sofrer, ela propila, uma espécie de crise de identidade quando confunde sua liberdade com um irracional consumismo que mal consegue encobrir a miséria agressiva que emerge, como a ponta de um "iceberg".

Por tudo isto podemos imaginar que esta angústia geral que parece tomar conta, pouco a pouco, da população não é apenas fruto de uma inflação de 100% nem de uma dívida externa colossal ou de um aumento irracional e imprevisível dos preços do petróleo. Ela nasce, antes, desta incerteza que desponta em cada um quando se vê confrontado com o país formal que lhe pintam e o país real que lhe impingem.

Fonte: Folha de São Paulo, Sábado, 5 de julho de 1980.