A noção de Norma Jurídica na obra de Miguel Reale

A noção de Norma Jurídica na obra de Miguel Reale
Explicação do conceito da norma jurídica na obra do Filósofo do Direito

Miguel Reale
Tercio Sampaio Ferraz Jr.

l. TEXTO DA NORMA, NORMA E SITUAÇÃO NORMADA

Embora o positivismo jurídico radical não corresponda à concepção mais aceita pela doutrina, a compreensão dominante da norma continua a vê-la como um imperativo acabado e dado antes do caso concreto ao qual ela se aplica. Daí a tendência em confundir o texto da norma com a própria norma, ou, pelo menos, a tendência em admitir que a palavra da norma exprime, basicamente, de modo suficiente e adequado, a sua validez. Um sintoma disto podemos observar na constante atribuição à norma do caráter de generalidade, mesmo quando esta não é entendida num sentido estritamente lógico-formal. Alípio Silveira, por exemplo, afirma que a norma é, por natureza, geral, procedendo por abstração, por fixação de tipos, e esclarece: ela se refere "a uma classe inteira ou série de casos, em número indefinido; e não a pessoas determinadas, nem a relações individualmente consideradas, nem a casos concretos. A partir daí é fácil inferir uma oposição entre norma e realidade, em que esta é captada como um conglomerado concreto de elementos heterogêneos ou singularmente homogêneos, juridicamente não ordenado. Esta oposição não é radical, pois a realidade participa da norma, na medida em que a lógica jurídica dominante (que não é estritamente formal) a concebe não propriamente como texto, mas como contexto, onde os elementos fálicos estão abstratamente representados em termos de média uniforme, despojada de caracteres específicos. Assim, a aplicação da norma à realidade concreta é vista, na maior parte das vezes, não como processo silogístico, mas como um processo de adaptação, entendido como uma "operação valorativa e prudencial". Embora não radical, a oposição estabelecida insiste, contudo, em ver na norma algo distinto da realidade, onde a situação normada aparece como um terceiro obtido em função do ato interpretativo.

Este é, esquematicamente, o quadro em que se desenvolve a análise crítica de Miguel Reale. Nele estão incluídas as contribuições da jurisprudência sociológica de Ehrlich, Duguit, Roscoe Pound, os princípios exegéticos da escola da "livre investigação" de Gény e do "Direito livre", da "jurisprudência axiológica" de Westermann e Reinhardt que se propõe um reexame da antiga "jurisprudência dos interesses" de Heck, sem falar do "realismo americano", assim como da "lógica do humano e do razoável" de Recaséns Siches. Sua crítica não se volta, pois, contra o formalismo conceptual vigente ainda nos primeiros anos deste século, mas sim contra uma certa indecisão existente ainda na doutrina atual, que permite que a combatida concepção da "normatividade jurídica abstrata", expulsa pela porta da frente, entre, sorrateira, pela porta dos fundos. A nós nos interessa, pois, menos a sua oposição ao normativismo formalista de Kelsen, presente nas suas primeiras obras e, em parte, também nas últimas, muito mais a sua visão crítica do "normativismo concreto", porque nela não apenas se evidencia a complexidade das estruturas normativas — e que já encontramos, por exemplo, em Lask — mas sobretudo propõe a superação de uma concepção dispersiva e incapaz de fazer frente à chamada "crise do direito", entendida principalmente como "perda de confiança nas soluções normativas", que provoca um "inegável desajuste ou conflito entre as condições existenciais e as normas jurídicas vigentes".

O reexame da estrutura da norma jurídica em Miguel Reale tem um dos seus pontos básicos na reinterpretação da própria "realidade", à qual o "direito" se refere. O neokantismo, como sabemos, para evitar as tendências reducionisías do sociologismo e do psicologismo jurídicos, considera esta "realidade" como produto de um processo de transformação, cujas condições estão na estrutura do pensamento. Conforme a forma categorial da síntese, um mesmo "dado material", onde o processo de transformação se inicia, aparece-lhe, no resultado do processo, ou como "natureza", ou como "cultura", isto é, ou como fenômeno social condicionado por leis de causalidade ou como situação juridicamente significativa. Para muitos juristas esta fórmula revela-se bastante apropriada, pois a "situação" juridicamente relevante, em face da totalidade dos acontecimentos, parece efetivamente o resultado de uma transformação que se produz através de juízos guiados por critérios de direito. Nesta concepção, portanto, o "material dado", ou seja. um acontecimento qualquer, é algo não diferenciado e sem forma, o qual adquire o sentido de uma ação humana apenas na medida em que o referimos a um sentido transcendental, por exemplo, a norma jurídica. As próprias normas, portanto, ao contrário do que se dá no sociologismo ou no psicologismo, não são meros reflexos daquilo que já se contém no "material", mas envolvem uma posição constitutiva por parte de quem as emana ou positiva. Se isto, de um lado, garante para a norma um estatuto próprio e particular, de outro esvazia o mundo dos fatos e, em consequência, a própria relação entre estes e a norma, concebida abstratamente no seu aspecto puramente lógico-transcendental.

Ora, no pensamento de Miguel Reale, o "fato" não é jamais tomado como "um pretenso fato puro originário", como um "dado bruto recebido ab extra", mas significa "aquilo que já existe num dado contexto histórico"; o "fato", de um modo geral, é, para ele, "uma porção do real à qual se refere um conjunto de qualificações", ou, expresso numa linguagem fenomenológica, "a base de um complexo convergente de significações, que pressupõem um eidos, isto é, uma "essência", inconfundível com o "fato", como tal". Nestes termos, sob o prisma da norma (em elaboração), "fato" quer dizer "tanto o dado de natureza ou um acontecimento independente da vontade humana, como os eventos e realizações resultantes dela (os objetos histórico-culturais) inclusive os modelos jurídicos enquanto já positivados, isío é, já feitos pelo homem".Há no conceito de "fato" uma "nota de tipicidade", embrionária e de natureza axiológica, não sendo, portanto, algo que, em dado momento, passa a fazer parte do mundo jurídico, mas sim algo "já dotado de sentido".

Esta concepção de "fato" permite, assim, a Miguel Reale, uma reinterpretação da estrutura da norma na sua referência à "realidade". A norma deixa de ser aí um a priori, dado antes do caso concreto, um "esquema" ou "medida" de validez da "realidade", para sem um "modelo funcional" que contém em si mesmo o "fato", em outras palavras, que envolve em si, como componente integrante, intrínseco e necessário, o momento situacional. Deste modo, enquanto no normativismo abstrato, a norma se contrapõe ao caso concreto em termos de ajuste ou desajuste, isto é, a norma, confundida com o seu texto, é um tipo geral oposto à individualidade concreta, à qual ela tem de ser adaptada, no normativismo concreto de Reale, a norma se conexiona intimamente com a sua "realizabilidade". Por conseguinte, se é possível afirmar-se que a norma jurídica, enquanto texto, e um "juízo lógico" ou "proposição normativa" onde este é visto como simples "suporte ideal", graças ao qual "uma dada porção da experiência humana é qualificada especificamente como "experiência jurídica", é preciso, por outro lado, dizer-se que a norma alberga, na sua estrutura, um campo que lhe é próprio e um programa que constituiu o seu sentido (prospectivo)". Em outras palavras, sua concepção de norma coloca dentro dela mesma a problemática da relação "direito" e "realidade". Com isto se elimina a oposição que se observa mesmo em certas concepções do normativismo concreto, entre o "direito como norma" e o "direito como conduta". O direito é, para Reale, "a norma e mais a situação norma da", isto é, a "situação norma da" não é um terceiro, em relação à própria norma e à realidade concreta, mas constitui, com a norma, in concreto, uma totalidade significativa. Com esta compreensão da norma, o campo de seu repertório — o "complexo fático" — não pode ser analisado separadamente por uma sociologia cega para um momento normativo, nem o programa que lhe é imanente e que lhe confirma e lhe garante o sentido — o "complexo axiológico" — pode ser objeto de uma consideração desligada do próprio repertório, nem, finalmente, a própria norma, enquanto texto, pode ser entendida, se reduzida a um mero "suporte ideal", sob pena de incorrermos num formalismo abstrato.

Não basta, entretanto, mostrar, topologicamente, que a norma constitui, por si, uma estrutura complexa, onde diferentes elementos se contrapõem e se implicam numa totalidade. É preciso uma demonstração de qualidade hermenêutica desta estrutura, para que não se incorra nos defeitos que apresenta, por exemplo, a concepção dialética de Schindler ou a teoria do "valer-para" de Lask, que se revelam impotentes, quando examinadas nas suas bases ontológicas, para superar o problema que a própria complexidade estrutural do Direito coloca e que redunda na desorganização do pluralismo jurídico e na desintegração do seu sistema. Isto nos conduz, pois, à análise, que Reale denomina "fenomenológica" do ato interpretativo.

2. DIMENSÃO HERMENÊUTICA DA ESTRUTURA NORMATIVA

A interpretação, diz Reale, é sempre "um momento de inter-subjetividade": "o meu ato interpretativo procurando captar e trazer a mim o ato de outrem, não para que eu mesmo signifique, mas para que eu me apodere de um significado objetivamente válido". O ato de interpretação, portanto, implica uma duplicidade inicial, onde dois elementos polares — sujeito e objeto — estão postos um diante do outro. Esta polaridade, entretanto, não significa um abismo irredutível, donde a constatação é uma unidade precária, de natureza meramente lógica, mas sim uma integração aberta, em que os elementos constituem uma síntese: para o intérprete, aquilo que se interpreta consiste em "algo objetivo", mas aquele não se limita a reproduzi-lo, mas contribui, de certa maneira, para "constituí-lo em seus valores expressivos". Num segundo momento, contudo, esta duplicidade inicial se esclarece como "intersubjetividade", na medida em que o "algo objetivado" a que se dirige o ato interpretativo não é uma coisa mas um outro ato: as "intencionalidades objetivadas" constituem o domínio próprio da interpretação. "Inter-subjetividade" significa, pois, uma vinculação entre dois elementos que se põem distintamente, mas ao mesmo tempo se interpenetram e se limitam.

A consequência disto, para a hermenêutica, é a correlação assinalada por Reale entre o ato interpretativo e o ato normativo, "não se podendo, senão por abstração e como linha de orientação da pesquisa, separar a regra e a situação regrada". O instante de encontro de ambos, se dá propriamente na norma jurídica, entendida não como atualização de um valor prévio e absoluto, mas como momento de uma experiência estimativa específica, em que o complexo fático e o complexo axiológico se sintetizam, graças à interferência decisória do Poder. Ora, dada a natureza peculiar da participação do Poder na "normo gênese jurídica", a imperatividade da norma passa a distinguir-se tanto do querer psicológico do legislador quanto de uma validez absoluta que se especifica, resultando, ao contrário, do "processo de objetivação de valores", que se realiza, por sua vez, através de "manifestações concretas da vontade". A norma não é, assim, um "comando de ordem volitiva", mas "uma prescrição de caráter axiológico, que não obriga em virtude do puro querer de quem emana a norma, mas sim em virtude da pressão objetiva que os valores exercem no meio social". Desta concepção do ato normativo, segue-se a impossibilidade, para o intérprete, de fazer abstração da "nota de prescritividade valorativa ínsita na estrutura da fórmula objetivada". Ou seja, o intérprete, ao compreender a norma, refaz o caminho da "fórmula normativa" ao "ato normativo": tendo presentes os "fatos" e os "valores" dos quais a norma promana, bem como os "fatos" e os "valores" supervenientes, ele a compreende, a fim de aplicar em sua plenitude o "significado nela objetivado".

A dimensão hermenêutica da estrutura da norma torna-se, pois, evidente. De um lado, a "realidade", ou melhor, o "complexo fático", inseparável da norma nos quadros da sua normatividade, revela-se hermeneuticamente como componente constitutivo da própria norma. De outro, o "complexo axiológico" evidencia, igualmente, a sua qualidade constitutiva no plano hermenêutico. A dimensão hermenêutica da norma é, na verdade, um aspecto particular da correlação sujeito-objeto, toda interpretação implicando uma compreensão da estrutura da norma e vice-versa. Isto é, não só o ato interpretativo se correlaciona a uma tomada de posição perante o "ser mesmo do direito", mas também a análise estrutural da norma exige a dimensão hermenêutica: "toda norma, por ser sempre representação de um valor e objeto de volição, jamais pode deixar de ser interpretada, não podendo haver norma que dispense interpretação (essencialidade do ato interpretativo)". A norma se clarifica, neste sentido, como "modelo jurídico" enquanto "estruturação volitiva do sentido normativo dos fatos sociais", referido a "modelos dogmáticos", enquanto "estruturas teoréticas" que procuram captar e atualizar o valor da norma na sua plenitude. Os "modelos jurídicos" não são puras abstrações, ou seja, não são meros esquemas ideais, pois a normatividade que eles expressam abstratamente se articula necessariamente com "fatos" e "valores", configurando-lhes o caráter de "modelos operacionais". Eles resultam de um "trabalho de aferição de dados da experiência", tendo em vista a determinação de um tipo de comportamento possível e também necessário à convivência humana. Do mesmo modo, os "modelos dogmáticos" também não são nem puras abstrações nem meros esquemas de aplicação, mas envolvem "uma certa opção ou preferência", resultante da aferição objetiva dos elementos analisados, correspondendo a uma "intencionalidade teórico-compreensiva", cuja natureza é também operacional. Na concepção de modelo de Reale, pois, existe uma articulação dos pressupostos teoréticos com a atualização da experiência, em termos operacionais. Com isto é possível e mesmo necessário correlacionar o "momento abstrativo" do estabelecimento volitivo da regra com o "momento dogmático" da sua compreensão, o que implica, em última análise, a superação do entendimento da Dogmática Jurídica no sentido de mera aplicação prática.

Este correlacionamento, ademais, não se dá na forma de um recorte isolado no fluxo da experiência jurídica. Ele não é estático, o que o tornaria abstrato, em que pese o caráter concreto-operacional dos elementos postos em relação. Ao contrário, o próprio movimento entre ambos, submetidos ao que Reale denomina de "dialética de implicação-polaridade", é dinâmico. Esta dinamicidade peculiar localiza-se na sua natureza essencialmente axiológica. Os valores, para ele, não podem ser concebidos sem a sua permanente referibilidade histórica, na medida em que transcendem cada forma de objetivação normativa, no ato mesmo em que a tornam possível. Assim, se de um lado, a norma jurídica assinala um "momento conclusivo", mas não isolado e abstrato, visto achar-se inserida num "processus" sempre aberto à superveniência de novos fatos e novas valorações, isto exige, por outro, por parte do intérprete, uma atitude "histórico-cultural" que vai, por assim dizer, para além de uma semântica ingênua, no sentido de que as palavras da norma podem assumir um significado não previsto pelo legislador. A temporalidade própria do direito, afirma Reale, não é, pois, necessariamente sucessiva e linear, "podendo comportar tanto a interpenetração como a simultaneidade das formas e fases". O próprio ato interpretativo, por isso, significa, ao mesmo tempo, a sobrevivência de formas temporais passadas e a projeção das significações passadas no futuro, no sentido da sua atualização prospectiva.

A dimensão hermenêutica da estrutura da norma revela, deste modo, para a pesquisa científica do direito, a integração do "momento de abstração conceitual" e o "momento técnico ou operacional", não havendo interpretação e aplicação da norma que não implique o sentido da totalidade do ordenamento, "nem apreciação de um fato que juridicamente não se resolva em sua qualificação, em função da tipicidade normativa que lhe corresponde". A concepção de Reale da estrutura da norma, acolhendo no seu interior as exigências axiológicas e as condicionalidades existenciais que nela se transformam nas razões imanentes da normatividade, diríamos, hermenêutica, permite, pois, uma visão organizada dos fenômenos de positivação e de aplicação do direito. No ponto intermediário de convergência, a norma não é vista como condição a priori de uma decisão, condição cuja certeza garante a certeza da decisão, mas é, ela própria, o produto de um processo decisório multidimensional. Isto abre caminho para um reexame do direito como uma constelação de fatores em comunicação.

3. ESTRUTURA DA NORMA E PROCESSO DE COMUNICAÇÃO

No seu O direito como experiência, que nos parece sua obra mais importante e que nos serve de base para exame do seu pensamento, Miguel Reale, ao encerrar sua análise sobre o tempo no direito, afirma-lhe o caráter não necessariamente sucessivo ou linear. Segue-se daí, continua ele, a possibilidade de que a Cibernética venha abrir novas perspectivas para a compreensão do tempo social e histórico, pois, de acordo com McLuhan "a sincronização instantânea de numerosas operações, própria da automação, tornam sem sentido o modelo mecânico das operações em sequência linear". Nestes termos, conclui Reale, os "modelos jurídicos" obedecem a uma "temporalidade concreta", caracterizada por um permanente "renovar-se ou refazer-se das soluções normativas". Este entendimento do modelo jurídico, que implica a sua operacionalidade, não exclui a linguagem cibernética, embora a ela não se reduza.

A palavra cibernética, originalmente, não se referia aos problemas linguísticos. O seu modelo inicial é o da "retro-alimentação". O princípio da "retro-alimentação" permite a conservação da situação de estabilidade em sistemas fechados. Dado o fato de que inúmeros fenômenos biológicos, ou melhor, fisiológicos podiam ser esclarecidos através dele — por exemplo a temperatura do corpo — a cibernética passou a ocupar-se cada vez mais com o homem, sobretudo no terreno da teoria da informação, cuja aplicabilidade aos problemas linguísticos é patente. Para Wiener, a "informação" não é nem matéria nem energia, mas um terceiro. O modelo linguístico aí subjacente é o modelo "ontológico" tradicional, na medida em que à palavra (sinal gráfico ou fonético) atribui-se a qualidade especial: "informação". Isto se revela com clareza no campo jurídico. Wiener esclarece que, para que os cidadãos possam ter uma estimativa prévia segura dos seus direitos e deveres, é exigida a possibilidade de previsão das decisões judiciais em cada caso dado. Isto pressupõe que as normas, mais especificamente, as leis sejam claras. Segue-se, daí, a obrigação, para o legislador, de produzir enunciados claros e unívocos, de tal modo que não apenas o jurista, mas qualquer pessoa pudesse interpretá-los de um único modo. O próprio Wiener reconhece o caráter ideal desta concepção, afirmando mesmo que, na verdade, qualquer conceito jurídico novo só se torna inteligível e toma um sentido determinado depois de passar por um processo de precisão, através da jurisprudência.

A aplicação da cibernética ao direito é vista, por isso, pelos próprios juristas com alta dose de ceticismo. A doutrina tradicional concebe o papel do juiz, no processo comunicativo, em termos de mero receptor passivo, em que pesem as teorias sobre a participação ativa da jurisprudência na produção do direito. Por parte do legislador estabelece-se a exigência supramencionada de clareza e precisão. É evidente que esta exigência, nos quadros tradicionais, não pode ser mantida. Mesmo um legislador dotado de uma fantástica imaginação não pode prever todas as situações futuras. Por isso, o juiz, que não pode furtar-se a uma decisão, ou se vê obrigado a recusar relevância jurídica a um fato não previsto ou a "criar", ele próprio, um modelo novo, capaz de resolver o problema, mas, de algum modo, sem deixar de prender-se aos modelos normativos vigentes. Este dilema se funda numa concepção da linguagem, onde a relação norma-realidade tem de ser abstratamente colocada, e que culmina no problema da lacuna. Na doutrina tradicional, cada expressão conceitual de um comportamento refere-se a um comportamento "real". Isto pressupõe que esta referência seja clara e conhecida por todos. Sabemos, entretanto, que na própria literatura jurídica, isto não se dá. Há uma tendência generalizada, sobretudo na civilista, em admitir que a lei se serve, necessariamente, de expressões genéricas, o que exige do aplicador da lei um trabalho de interpretação e de concretização do preceito abstrato. Do ângulo da teoria da ciência, esta exigência, entretanto, não é vista como uma limitação, mas, ao contrário, como uma conquista do progresso científico: o processo de abstração, numa comunidade linguística, indica o caminho do progresso, assinalando o uso de expressões abstratas um alto grau de desenvolvimento. A abstração torna-se, neste sentido, um instrumento de precisão da comunicação. No plano jurídico, a utilização de conceitos abstratos está unida a possibilidade de cobrir-se a desproporção entre o logos limitado e o ilimitado das situações concretas, ou pelo menos, à possibilidade conferida ao juiz de cobrir, por meio da analogia, o vácuo normativo. A utilização da analogia, entretanto, como vimos, revela-se, ao contrário, como um fator de insegurança, na medida em que não há nem pode haver uma delimitação precisa do princípio da semelhança. Isto coloca o juiz ou o advogado ou o promotor, enquanto receptores no processo comunicativo, na difícil situação de procurar, através de comparações aproximadas, a relação entre casos concretos, referidos a padrões abstratos, dificuldade que qualquer jurista pode perceber já no compendiar as revistas especializadas e que reproduzem catálogos de decisões, remetidas a índices de termos-chave, necessariamente incompletos e imperfeitos.

A este modelo linguístico e epistemológico aqui esboçado vincula-se, pois, a Dogmática Jurídica tradicional, prendendo-se ao princípio de divisão dos poderes, que, em termos comunicológicos, implica uma concepção abstrata do sistema jurídico enquanto sistema de comunicação. Prevalecendo aí o aspecto técnico-formal de vigência da norma, cujo sistema se ordena, basicamente, segundo uma escala linear e hierárquica, a doutrina tradicional torna-se cega para a exigência de operabilidade e comunicação do discurso jurídico. Uma superação deste ponto de vista só se produz por uma recolocação do problema da linguagem jurídica em termos comunicológicos, em cuja base está uma concepção concreta da norma, tal como a encontramos em Miguel Reale. Esta recolocação pressupõe uma perspectiva semiótica, onde as funções pragmáticas, semânticas e sintáticas da linguagem são vistas de um ângulo integrador, que encontramos esboçado na concepção de norma de Miguel Reale, vista como um "modelo volitivo tridimensional concreto e dinâmico". Esta concepção permite, desde logo, um relacionamento novo dos componentes do processo de comunicação do direito, na medida, por exemplo, em que se supera a visão abstrata da dogmática jurídica como mero receptor passivo que simplesmente aplica a norma "emitida" pelo legislador lato sensu. Mas, sobretudo, a ideia de que à regra jurídica é inerente a informação da "exigência de uma opção axiológica havida como essencial a uma conduta típica", nos remete necessariamente ao sentido operacional do direito.

Este sentido operacional implica que as regras de comportamento e seus objetivos não são fixados a priori (isto é, o Direito não é um a priori formal da vida social, à maneira neokantiana) mas são resultado de um processo. A palavra resultado não nos deve confundir. Ela deve ser entendida no sentido de "opção axiológica", pois para Reale, todo valor, inerente à norma, é escolhido, não pertencendo a ela por natureza. Assim, valores, uma vez escolhidos na positivação normativa, podem mudar, ou porque os fatos que eles iluminavam são outros ou porque os objetivos que eles prescreviam se transformaram. Ora, isto explica a possibilidade de proliferação de objetivos e o consequente aparecimento de conflitos em larga escala. Ora, o sentido operacional do modelo jurídico está justamente na inversão desta possibilidade, na medida em que, na solução normativa, o número de objetivos se reduz, tornando-se possível o controle dos conflitos. Este sentido operacional não se localiza, pois, nem nas proposições valorativas — não se deve matar — nem nas proposições fáticas — há homens que matam outros homens — mas é algo peculiar à norma — quem matar será punido.

Fonte: FERRAZ JR., Tércio Sampaio. “A Noção de Norma Jurídica na Obra de Miguel Reale”. In: Textos Clássicos de Filosofia do Direito. "Publicação em Homenagem ao Professor Miguel Reale". 1ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981, p. 150-161.

Texto organizado e corrigido por: Victor Alexandre El Khoury M. Pereira.