A morte da democracia

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

Oito cientistas políticos de renome internacio­nal apresentaram-se nas páginas deste jornal para dizer que a democracia está morrendo. O primeiro deles, Samuel Huntington, se não lhe assinou o epitáfio, começou por deitar-lhe a primeira pá de terra, numa cova que já parece bem funda.

Uma frase sua, especificamente, chama a atenção: "em países com um nível um pouco supe­rior de desenvolvimento, que estão começando a mover-se mais ativamente na modernização e na industrialização, há indícios substanciais de que os sistemas democráticos podem agir para retar­dar o crescimento econômico. Tememos o Brasil, que apresentou um crescimento espetacular nos últimos sete ou oito anos. Teria tido grande dificuldade em consegui-lo com um regime democrá­tico".

A intenção não é tomar aqui o tema já tão discutido das relações entre o desenvolvimento político e econômico, nem tentar uma ressurreição de um regime que está parecendo um Lázaro polí­tico, para quem não restaria senão a esperança de um milagre. Mas como a democracia tem sido, desde os tempos da Antiguidade, um tema de im­pacto, deixá-lo navegar assim ao sabor das ondas é torná-lo presa fácil de uma pirataria que ainda sabe onde estão seus tesouros.

Há, por assim dizer, uma teoria clássica da democracia que vê no controle do poder político pelo povo a pedra angular do regime. Governo do povo, pelo povo e para o povo, e uma sentença já desgastada pelas desilusões que o tempo carrega, mas que ainda expressa o espírito tradicional, que punha e põe na ideia de participação e igualdade política toda força do regime.

Participação significa a possibilidade aberta a todos de exercer a tarefa de governar, de contribuir com parcelas proporcionais para as decisões máxi­mas, de não submeter-se senão às regras que aju­dou a elaborar e sobre as quais deliberou. Igual­dade exige chances equitativas, obediência às de­cisões majoritárias com respeito e acatamento dos que ficam em minoria.

Em outras palavras, isso significa que, para a realização do regime democrático, há peças incon­tornáveis, como o consenso obtido em eleições li­vres, o equilíbrio dos poderes como condição de salvaguarda dos direitos do indivíduo, a soberana decisão do Judiciário como garantia contra o arbí­trio, uma imprensa sem freios políticos que sirva de tribuna não burocrática para a manifestação de interesses sem voz oficial e uma série de outros dispositivos que compõem o ideário clássico.

Não resta dúvida que o tempo decorrido desde a consagração deste ideário pelas constituições modernas e a ascensão das sociedades de massa de nossos dias se encarregou de pôr em cheque muitas das ilusões que ele contém, dando vasa a análises realistas que passaram a observar os entraves mais que as vantagens da democracia para a solu­ção de tantos problemas novos que parecem transformar-lhe os pés de barro em pântano movediço que nos traga e nos carrega para profundezas in­certas.

De fato, a sociedade de massa de nossos tempos parece extremamente distante daquelas co­munidades relativamente estáveis de século e meio atrás, com seus valores vagamente definidos e por isso mesmo capazes de servir de orientação para conflitos que raras vezes ultrapassavam os limites dos interesses individuais. Até mesmo o observador mais ingênuo pode perceber que é ou­tra a realidade em que vivemos e que a perseve­rança de ideias deslocadas no tempo só convém à mentalidade utópica e sonhadora. Realmente, como diz Huntington em sua entrevista, "não se pode recuar para um mundo mais simples".

A questão da morte da democracia, porém, não é um problema de mostrar como a realidade refutou certos valores democráticos, mas sim se aqueles valores perverteram-se em face da reali­dade transformada. A democracia não morre por­que seus princípios básicos não têm mais como se realizar, mas porque se realizam de modo perver­tido.

A perversão dos valores e princípios democráticos começa, pois, com uma sutil transformação no núcleo básico de sustentação do seu programa político. Sendo a sociedade de massas um corpo uniforme de interesses nivelados, a ideia de participação, por exemplo, passa a significar uma espécie de rendimento coletivo, integração global e assentimento irracional a um projeto de redenção co­mum. Participar é promover o desenvolvimento econômico, é assegurar o processo de industriali­zação, é comover-se com a expectativa do bem estar futuro, é realizar uma nova sociedade etc.

Como estes alvos exigem, porém, maior orga­nização, maior especialização, maior complexi­dade, a participação se esvazia, pois ela significa embotamento crítico e adesão incondicionada aos projetos preparados por uma burocracia apolítica e tecnicizada. Além disso, participação se torna um comportamento sem contrário dentro dos quadros políticos, pois a participação em forma de oposição, de desconfiança, de contra-argumentação torna-se um comportamento esdrúxulo, à margem do processo.

Com isto, a ideia de participação democrática perde dois de seus componentes básicos: a noção de pluralismo e a de controle do poder. A participação democrática é pluralista justamente na me­dida em que é diversificada e alternada, e a possibilidade de controle está ligada a salvaguarda institucional da livre discussão. De certo modo podemos até afirmar que a concepção clássica de demo­cracia, embora vise a participação como um ins­trumento de obtenção ou de manifestação de con­senso, sempre pressentiu que tão importante ou até mesmo mais importante do que ela, era a ga­rantia da manifestação do desacordo, da possibili­dade de participar ao se opor, sendo o problema do controle do poder mais uma questão de estratégia política capaz de alimentar-se até da falta de con­senso para legitimar-se.

Nesse sentido, pois, a democracia morre não quando ela se torna uma irrealizável utopia mas sim quando perverte seus próprios objetivos e massifica o sentido de seus princípios, tornando-se de um lado uma democracia popular e, de outro, um entrave a um projeto que a elimina justamente pensando que a realiza. Massificação significa, nesse caso, canalização única da adesão popular, fechamento dos canais de absorção de protestos, confundindo-se o protesto com o canal que o viabi­liza. Ou, como disse Huntington em sua entrevista publicada na semana passada pelo JT, o problema não está no fato de que os processos democráticos venham sendo substituídos por processos burocrá­ticos, mas que os burocratas venham explorando a democracia para seus próprios fins, tornando im­possível a outros grupos competirem efetivamente com eles.

Fonte: Quinta-feira, 29-4-76-O ESTADO DE S.PAULO.