A intervenção na economia

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

A rigor, não há mais como esperar: a crise econômica é intensa e o governo gradativamente vai reformulando os mecanismos decisórios, deixando ao presidente da república a responsabilidade por uma série de decisões, que, anteriormente, eram formuladas por um conselho interministerial. A conjuntura é sombria e encerra, além do mais, um problema estrutural ainda mais grave: a falta de fundamentos e limites jurídicos suficientemente claros para o Estado intervir na economia.

Pelo menos ao nível constitucional, nos dias de hoje, a intervenção estatal no domínio econômico atravessa um período de indefinição e falta de clareza que afeta tanto os responsáveis pela administração pública (até onde agir?) como os próprios agentes produtivos (quais os limites da livre iniciativa?). De fato, a complexidade do sistema jurídico brasileiro desafia o mais hábil em­presário, o experiente homem público ou o próprio jurista: afinal, apenas a título de exemplo, temos uma constituição com cerca de 17 atos Institucionais, 99 atos complementares, 6.230 leis, 76.630 decretos e 98.355 normas isoladas e não sistematizadas, sem falar em resoluções e portarias de largo alcance normativo baixadas pelo Banco Central, CACEX, BNH, Conselho Nacional de Trânsito, etc.

Como se vê, há uma crescente tensão entre o complexo normativo e a realidade social, especial­mente no âmbito do direito econômico. Ora, nossa condição de país em desenvolvimento é caracteri­zada pela emergência, rápida e pelo número de empresas nem sempre controladas pelos seus pro­prietários, mas sim pelos executivos, que assu­mem formas burocratizadas semelhantes ao próprio Estado, e com relações de poder quase idên­ticas.

O resultado tem sido a criação de certas ten­sões, que surgem ao nível das empresas, põem de lado o indivíduo como tal e ainda deslocam o sis­tema de mercado tradicional, de tal forma que a fixação dos preços acaba sendo fruto de uma atua­ção direta dos grandes empresários, capazes de manobrar amplamente, quase sempre em função de critérios pessoais de utilidade. Daí a formação de um direito econômico preocupado não apenas em garantir arbitralmente o indivíduo contra o poder econômico, como também em tutelar esse mesmo poder contra o próprio Estado.

O moderno direito constitucional, no entanto, ainda não se aparelhou para resolver problemas deste tipo. Criado na dura experiência do século XIX, ele operacionalizou conceitos de natureza política capazes de fazer frente à emergência das sociedades de classes, onde a distinção entre go­vernantes e governados se tornava flexível e não mais obedecia aos padrões familiares das elites por nascimento. O problema que hoje enfrentamos, porém, é muito mais complexo, pois exige modelos constitucionais capazes de pôr em equilobrio o pa­pel do indivíduo como agente econômico, da empresa como detentora de poder e de ação mercan­til, e do próprio Estado como regulador, provedor e até mesmo produtor.

Na verdade, o artigo 163 da atual Constituição confere à União a faculdade de intervir, limitando-a a casos expressos que a própria norma regula. Ao facultar a intervenção, a Constituição assume uma posição ideológica que em princípio exclui postu­ras tanto totalitárias como os marxistas, que exigem estatização — como não totalitárias — caso do socialismo sueco, que permitem uma interven­ção global. Desta forma, o legislador constitucio­nal propõe uma intervenção em termos de um planejamento parcial, conforme critérios de eficiência e respeito aos direitos individuais. E é aqui que começa o dilema do direito brasileiro.

De início, o artigo 163 faculta a intervenção na medida em que não a impõe juridicamente. No entanto, social, política e economicamente esta intervenção acaba transformando-se em regra, ge­rando uma quase obrigação da intervenção estatal. Por outro lado, tal intervenção deve ser feita limitadamente, apenas por motivos de segurança nacional ou de ineficiência da iniciativa privada em certos setores. Estes dois motivos configuram conceitos discricionários, sendo fácil apontar o ca­so de sua aplicação, mas demasiadamente difícil descobrir quando não cabe a intervenção.

Além disso, a atual Constituição não revela quem deve interpretar os conceitos de segurança e ineficiência, o que permite pensar que tal função caberia ao próprio interventor. Ela também não explica como isto deve ser feito, exigindo-se apenas que o seja por uma lei federal, o que não exclui a possibilidade de normas vagas (especificadas pe­las resoluções, pareceres e portarias dos diversos Órgãos públicos). Um bom exemplo é o papel do Conselho Monetário Nacional, que fixa de forma genérica certas obrigações que acabam sendo re­gulamentadas pelo Banco Central.

Ampliando desta maneira o jogo legal, a Cons­tituição acaba por conceder ao Estado limites pu­ramente formais, os quais (apesar da relevância política relativamente clara em nossa herança constitucionalista) revelam-se impotentes em ter­mos operacionais. A verdade é que esses limites foram concebidos como instrumentos capazes de regular relações até certo ponto estáveis, não es­tando preparados para transformações demasia­damente rápidas da realidade brasileira. No en­tanto, a moderna vida econômica destrói os pa­drões tradicionais e exige decisões quase imedia­tas que acabam, de fato, excluindo o papel arbitral do Poder Judiciário, com graves prejuízos para as garantias individuais.

Assim, a inadequação entre a norma e o con­texto conduz a uma curiosa situação em que os verdadeiros limites constitucionais à intervenção estatal no domínio privado são deslocados para a própria práxis política e econômica do Estado, no sentido de que somos obrigados a ver como ele age para, então, saber o que dele se pode exigir. Para o jurista, este quadro põe em questão o próprio sentido do Direito, o qual ao invés de se revelar como critério seguro e certo da ação passa a ser o mero resultado daquilo que a Constituição deveria controlar. Consequentemente, a tradicional teoria da soberania constitucional sofre uma inversão no campo econômico: soberano é o executor, pas­sando as normas a meros instrumentos justifica­dores de uma situação ditada pela mera eficiência.

Fonte: Terça-feira, 5-10-76 – O ESTADO DE S. PAULO.