Tercio Sampaio Ferraz Jr.
1. O problema não é fácil de ser circunscrito. Aliás não desejamos circunscrever nada. Estamos espantosamente dentro de um campo florido e de repente, percebemos o campo. Vamos começar com a aporia. É possível discorrer filosoficamente sobre a Filosofia? Que significa a famosa frase de Simmei, segundo a qual a Filosofia mesma é, por assim dizer, o primeiro dos seus problemas? Estamos diante da Filosofia como dentro de um campo. Haverá algum sentido em fazer perguntas deste gênero? Se o campo é o que me cerca, e a partir dele que me localizo. Como localizá-lo? Seria necessário diferenciar-me do campo e julgá-lo por mim, enquanto observador em razão do qual o campo se percebe como tal. Estaríamos a caminho de um idealismo ingenuamente pensado?
Vamos permanecer dentro do campo, sem nos distinguir dele, em principio. Fazemos parte dele, como o verde que o cobre. Deste modo, não há saída do campo. Não queremos sair, porém. Queremos caminhar. Esta decisão não é teórica. É prática. Queremos caminhar e nos decidimos a caminhar. O modo é resolutivo. Queremos falar da Filosofia, mas falando Filosofia. Esta decisão é gratuita. Obrigamo-nos a agir, sem nos importar com qualquer justificação. Começamos a filosofar como começamos a caminhar. Mas se quisermos, não caminharemos. Deixemos de lado a questão teórica de se saber se o campo é condição do meu caminhar ou se o meu caminhar é que revela o campo. Caminhemos.
2. Escolhamos um caminho ao acaso, ou seja, caminhemos ao acaso. Chamemos este caminho ou este caminhar de Mannheim(1). Por que Mannheim e não qualquer outro? Pedimos desculpas pela ousadia: porque queremos. Mannheim, nas pegadas de seu mestre Emil Lask, deseja descobrir a estrutura lógica do filosofar, a lógica da própria Filosofia. Não vamos discutir, por enquanto, se, ao fazê-lo, ele estaria saindo do campo do qual não pode sair. Mannheim propõe como centro da sua investigação o conceito de "sistematização". Ao estabelecer-lhe o primado, ele evita afirmar que o pensador individual e concreto deveria ter um sistema filosófico explícito. Apenas diz que, para construir, um conceito qualquer, o filósofo pressupõe implicitamente uma certa conexão, uma totalidade em principio não consciente. Admitamos, diz ele, que conceitos seriam puras "denominações", um "Dies Ja" (isso aí), uma indicação com o dedo. Teríamos atingido, assim, o "mínimo de um conceito". Mas se, diante de uma mesa, apontássemos a, diante da cadeira b, a partir deste instante nunca deveríamos trocar os dois signos. Esta pressuposição já seria, porém, uma sistematização. Admitamos, então, que os signos fossem postos de modo discreto, descontínuo e disparatado. Mesmo assim, a denominação, enquanto conjunto de elementos discretos, descontínuos e disparatados, pressuporia, nesta forma, uma atividade sistematizadora (discreta, descontínua e disparatada, mas sistematizadora). Mannheim quer, com isso. descobrir o princípio (lógico) do filosofar: quem pensa constrói conceitos, exerce uma sistematização, principio este que não se confunde com o “sistema”, que é o seu resultado.
Caminhemos por outros lados. A chamada "Teoria Geral dos Sistemas” nos propõe uma outra trilha. Chamemo-la de Luhmann(2). Sistema é, para ele, um conjunto de elementos delimitados segundo o principio da diferenciação. Os elementos ligados uns aos outros excluem outros elementos do seu convívio. Havendo algo (elemento) fora e algo dentro, temos um sistema. Todo sistema pressupõe, pois, um mundo circundante, com o qual se delimita. Se quisermos transcender absolutamente o conceito de sistema, estaremos procurando uma conexão que não tem limites. Esta conexão, ele chama de "mundo". Pensar o "mundo" como um "sistema" é, para Luhmann, impossível, pois o mundo não tem "um lado de fora", que o circunda. Se insistíssemos nisto, estaríamos pensando num "mundo" que abarque o seu "mundo circundante". O conceito diretor do pensamento estaria, entretanto, sendo apenas transferido de "mundo" para "mundo circundante". Husserl, lembra Luhmann, tentou captar a peculiaridade do "mundo" dos homens, que é capaz de apontar para o infinito e, apesar disso, atuar significativamente como finito, com a imagem do "horizonte".
Luhmann não quer, porém, entender o "mundo" através do seu conteúdo existente (Bestand). Se o "mundo" não tem "mundo circundante", ele não pode ser "ameaçado", isto é, não pode deixar de existir. Enquanto existir algo, existe o mundo. Toda "ameaça" à existência tem de ser concebida como possibilidade no mundo. O mundo pode. entretanto, ser "problematizado", não quanto ao seu "conteúdo existente" (ponto de vista do seu "ser" - Sein). mas quanto à sua "complexidade" (Komplexität). O conceito de complexidade não designa uma "situação de ser" (Seinszustand), mas uma "relação" entre "sistema" e "mundo". A "complexidade" do "mundo" depende dos sistemas no "mundo". Isto porque, continua Luhmann, a construção de um sistema corresponde ao projeto de possibilidades que o sistema oferece na forma de uma seleção redutora, excluindo, pois, outras possibilidades que superariam sua capacidade de assimilação e controle. Há, pois, um conjunto de possibilidades (de ação, de acontecimentos, de escolha, etc.) que o sistema absorve ("complexidade" do sistema) e outras que ficam de fora ("complexidade" do "mundo"). Todo sistema, assim, é no fundo uma conexão significativa, uma conexão de “sentido”, que ao mesmo tempo liga várias possibilidades entre si e aponta para outras possibilidades que não podem ser ligadas (complexidade do “Mundo”).
4. Admitamos agora, refletindo sobre o exposto, que todo sistema seja definido, delimitado e que, portanto, um sistema dos sistemas, que me dê a visão da "complexidade" total, seja impossível, a menos que um sistema fosse capaz de abarcar o seu próprio "horizonte" Neste caso, um sistema filosófico seria, quando muito, uma complexidade reduzida, entre sistemas (da ciência, da arte, da religião, etc.). A filosofia poderia, assim, ser concebida como "sistematização” (Mannheim), a maior, a mais complexa que se possa pensar. Isto, entretanto, não resolve a questão, pois a indagação das razões pelas quais o "mundo" é uma "complexidade" inesgotável não pode ser excluída. Aliás, a concepção do "mundo" como "altíssima complexidade" é apenas um postulado e, na verdade, pode ser referida a uma "sistematização" camuflada que, a nosso ver, está propondo um limite antropológico (sistemático, portanto) ao que é afirmado como ilimitado. Qual seja, a concepção do homem como liberdade de construir sistemas, o que nos poria num caminho idealista, à moda Fichteana, talvez.
5. Continuaremos caminhando pelo nosso campo. Oswaldo Porchat Pereira, um jovem pensador brasileiro, nos conduz agora(3). Na tese de Protágoras, diz-nos ele, - o homem como medida de todas as coisas - há uma recusa em admitir-se uma distinção entre alétheia e dóxa. Os homens sempre divergem. Para toda opinião, ainda que deseje aparecer como verdade, há sempre outra opinião contrária. Nos desfiles dos grandes sistemas filosóficos, notamos em todos eles a pretensão de serem verdadeiros, de dar a edição definitiva da realidade, de solucionar o problema do ser e do conhecer. Na História das filosofias dogmáticas (donde o lugar secundário sempre atribuído à sofística e ao ceticismo), cada filósofo sabe o que é a filosofia e exclui todas as outras possibilidades. Todos abordam os demais pensadores como rivais e concorrentes. Em cada um deles há, assim, dois movimentos: 1.º) partir do zero e construir o sistema da verdade: 2.º) destruir o já existente por uma reflexão polêmica (isto ocorre mesmo quando as soluções são ecléticas). Vai daí, a filosofia é um pensar que se alimenta da sua própria história, mas se alimenta através de cortes e reduções: o filósofo criador é, por isso, sempre um mau "historiador", pois vê tudo pelas lentes do seu próprio pensamento.
A opção filosófica do filósofo diante da filosofia se revela, pois, um terrível dilema. Ele sempre pode assumir a posição do historiador da filosofia, mas poder-se-ia duvidar, neste caso, se ele estaria sendo filósofo ou historiador. Nesta última perspectiva, ele deveria limitar-se a tentar ver um dado sistema filosófico do seu próprio interior, descobrindo-lhe a lógica inerente (não necessariamente formal). Seria uma tentativa de julgar a filosofia estudada por ela mesma. Na outra perspectiva, ele estaria realizando o trabalho do mau historiador, pois estaria, na verdade, tentando resolver o problema do conflito das filosofias. Neste caso, ou ele partiria para a escolha dogmática de uma filosofia qualquer, a partir da qual julgaria as outras, rompendo com a hipótese da equivalência dos sistemas vistos de dentro, própria do historiador: ou, então, ele tentaria a criação de sua própria filosofia, que exerceria uma função semelhante.
Nota Porchat, neste sentido, que o conflito dos sistemas filosóficos só se põe como problema para os que ainda não se tornaram sophoi, não tendo alcançado o saber, mas apenas para os philósophoi, para os espectadores que descobrem na Historia da Filosofia a história do desacordo entre os filósofos quanto a soluções, problemas e mesmo quanto ao objeto de suas especulações. Mas o philósophos, conclui ele, com uma certa melancolia, aquele que recusou o dogmatismo, sabe, de um lado, que o conflito das filosofias é perene e insolúvel; de outro que é contraditório demonstrar a validade da recusa em filosofar. Por isso, só lhe resta "o ato heróico da recusa não-filosófica e filosoficamente injustificável da filosofia" (p. 21).
6. Poderíamos perguntar se este caminho desencaminhado, se este não-caminho, não estaria, na verdade, conduzindo Porchat a uma posição injustificavelmente filosófica. Na realidade, ao assumir o conflito perene das filosofias, ele assume também que a filosofia é "um jogo em que os filósofos brincam com as palavras, o logos com os filósofos" (p. 21). Seu ato heróico é, pois, o ato de quem não quer jogar o jogo das palavras. Só ele sabe, tem consciência, que a filosofia é este jogo. Este segredo, entretanto, ele o revela, no artigo, brincando-de-não-jogar ou filosofando injustificavelmente. Jogando com as palavras, ele percebe que estava apenas jogando e, então, joga pela última vez, dizendo: não jogo mais. Assim, ele pretende ter solucionado o conflito sem fim das filosofias, não lhe dando uma solução (isto seria uma nova filosofia, um novo dogmatismo), mas proibindo-se de continuar a filosofar. isto é, jogar com o logos. Isto, porem, é possível?
Claro que sim. Para isso é preciso dizer "adeus ao Logos" (p. 21), mas no sentido de nada dizer Nem mesmo dizer adeus. Porchat, porém, em todo o seu artigo, está tentando dizer adeus e, no fim, diz: não jogo mais. Esta tentativa não seria, ela própria, uma justificação filosófica? O seu ato heróico ou o ato do seu philósophos ao proclamar-se não-filosófico. Mas foi um ato. Que ato? Ato de falar. É verdade, foi sua última “fala”; a que afirmou: não falo mais. Porchat, portanto, distinguiu, querendo ou não, duas falas: todas as outras passadas, presentes e futuras e a sua última, que se assumiu como diferente delas. Qual a diferença?
A primeira diferença está em seu caráter de última. As outras começam. A sua fala, ao contrário, é um encerramento. A segunda diferença está no seu caráter não-filosófico, isto é, um logos que não é mais um logos, uma fala que não é fala. Mas se não é fala, o que é? Metafala? Ou não-fala? Não-fala não é, porque diz adeus. É, então, metafala ou fala que tem por objeto outra fala. O seu universo se divide em falas filosóficas, as que jogam o jogo do Logos. e a sua fala não-filosófica, que diz apenas: não quero mais jogar. Mas se ele diz: não quero mais jogar, não seria a sua metafala antes uma metafilosofia? Ou seria não-filosófica? Porchat prefere a segunda fórmula. Porque, se nós o interrogarmos das suas razões, ele, provavelmente, se calará.
Ao fazê-lo, entretanto, ele estará enfrentando o dilema do esquizofrênico. De repente, parece que seguimos um novo caminho.
7. Chamemo-lo de "pragmática" da "comunicação". A pragmática é uma disciplina ao mesmo tempo antiga e nova. No passado, ela se chamou "retórica" e foi cultivada por gregos e romanos. Modernamente, ela se liga aos estudos de semiótica ou teoria dos signos. Estes são coordenações tríplices: todo signo se relaciona a algo, para o qual aponta: esta relação é chamada de semântica. Todo signo também se relaciona a outro signo, isto é, signos se relacionam entre si: esta relação se chama sintática. Por fim, signos são usados: é a relação ao interpretante ou usuário do signo. Esta última é que se chama pragmática. Do um modo geral, pode-se dizer que uma análise pragmática é um estudo dos aspectos comportamentais no uso dos signos, por exemplo, das palavras. Ver os aspectos comportamentais é situar os problemas do ângulo da comunicação humana, vista como interação de sujeitos que trocam mensagens entre si, definindo assim uma situação.
Vamos seguir este caminho. Admitimos que seja o nosso próprio caminho(4). Distinguimos, nas pegadas de Saussure, entre língua e discurso. Digamos simplesmente, sem entrar em maiores detalhes, que a língua e o sistema dos signos e o discurso é o ato que põe em uso o sistema. Todo discurso, neste sentido, é uma ação, uma ação dirigida a alguém. Todo discurso é uma discussão.
Consideramos discurso ou ato de falar apenas aquele que pode ser entendido, isto é, ensinado e repetido. Ao falar, portanto, não nos dirigimos somente a alguém., mas apelamos ao seu entendimento. Este encontro, através do apelo, entre o que fala (orador) e o que ouve (ouvinte) ocorre uma situação, que denominaremos situação comunicativa.
O modelo básico desta situação é o da pergunta-resposta. Perguntar significa estar incerto, inseguro de sua ação lingüística, portanto um ato de intelecção de algo já acontecido ou o planejamento de algo a acontecer, o que traz consigo a incerteza dos fundamentos de agir. A pergunta permite, assim, a distinção entre discurso com fundamento e sem fundamento. Perguntar, entretanto, não é comportamento infundado, mas baseado num mundo circundante e a ele ligado. Este mundo é um mundo de fundamentações, que tem pretensão de autoridade, isto é, capacidade e prontidão para oferecer fundamentos e exigir confiança. O comportamento através do qual a consistência de sua própria ação lingüística é confirmada, chamamos de resposta.
O discurso enquanto discussão tem, pois, os seguintes elementos: o orador, isto é, o proponente de uma ação lingüística; o ouvinte, aquele para o qual a ação proposta se dirige; e o objeto da discussão, isto é, aquilo que é falado e que. dado o modelo pergunta-resposta, pode ser denominado questão.
Os elementos do discurso ligam-se entre si através de uma regra básica, a regra do dever de prova e que assim se formula: quem fala deve provar o que diz ou quem assevera tem o ônus da prova. Esta regra determina o discurso como discurso fundamentante.
Através dela, todo discurso se revela como reflexivo. Isto é, através da regra, torna-se possível aplicar ou fazer voltar o modelo pergunta-resposta sobre si mesmo: não apenas, em todo discurso, é possível pôr em questão o ato de falar de alguém, mas também os fundamentos do seu ato e os fundamentos dos fundamentos, etc. Daí a possibilidade de uma crescente complexidade do discurso, não só no sentido quantitativo como qualitativo.
A reflexividade depende não apenas de como o discurso é fundamentado, mas também, sobretudo, de como ele é criticamente avaliado pelo endereçado. Ou seja, o modo, a espécie de reação do ouvinte determina o grau de complexidade do discurso.
Estas primeiras observações já nos permitem algumas conjecturas. Elas se ligam ao dilema do esquizofrênico antes referido. O philósophos de Porchat, depois de discutir filosoficamente o discurso filosófico, percebendo-o como jogo com o Logos, decide não mais jogar, dizendo um adeus ao Logos, não justificável filosoficamente. Assim, se o interrogarmos porque de não mais quer jogar, ele se calará, isto é, sua recusa em filosofar obriga-o ao silêncio ou a uma fala não-filosófica. Isto é possível?
Vimos que toda fala. todo discurso, é sempre uma discussão. Todo ato discursivo tem um endereçado, mesmo quando o endereçado se confunde com o orador, caso em que alguém reflete ou pensa, isto é, fala consigo mesmo. Ora, há uma propriedade do comportamento humano muitas vezes menosprezada: o comportamento não tem oposto, que tem de ser invocada neste caso. Assim, assumindo-se que, numa situação comunicativa, qualquer comportamento dos que falam e ouvem tem valor de mensagem, é impossível para alguém, na situação, não se comunicar. Num sentido amplo, mesmo que alguém se recuse a falar, a sua recusa não deixa de ser uma mensagem que é percebida pelo interlocutor, ou por signos de base fonética: "não quero falar", ou por signos de base, digamos, fisionômica, por exemplo, fechando os olhos, a boca e tapando os ouvidos, etc. Ora o comportamento do esquizofrênico pode ser descrito, nestes termos, pondo de lado considerações etiológicas, como o de alguém que tenta não-comunicar e, ao fazê-lo, comunica de algum modo, pois negar-se a comunicar é sempre comunicar(5).
Ao nível pragmático, o artigo de Porchat sobre a filosofia constitui, por isso, um "paradoxo pragmático". Porchat percebe e tem consciência do paradoxo ao nível semântico, quando lembra o famoso fragmento de Aristóteles, no Protréptico, sobre a impossibilidade de nao-filosofar. Ele diz também, além disso, textualmente, que "se constitui um empreendimento contraditório a demonstração da validade da recusa da filosofia" (p. 20). Tenta sair e sai do paradoxo semântico, pronunciando uma metafala que ele chamaria de não-filosófica: não quero mais jogar. Escapando do paradoxo semântico pela possibilidade de distinguir entre metafala e fala-objeto, ele não considerou, porém, o paradoxo pragmático.
Ao escrever o seu artigo, ele se colocou numa situação comunicativa, sendo orador que fala a si mesmo e a todo interessado. Como seu artigo é sobre a filosofia, ele argumenta, inicialmente, de modo filosófico e, ao final, vendo-se preso, sai-se com "um ato heróico filosoficamente injustificável". Ora. do ponto de vista sintático e semântico, ele o percebe, sua atitude é desprovida de significado, não se justifica ou não quer justificar-se. Para não ser uma contradição, ela tem de ser encarada como metafilosófica. Mas do ponto de vista pragmático, ele não pode deixar de estar comunicando-se com outros filósofos ou interessados em filosofia. Ainda que seu ouvinte, nós, por exemplo, também assuma a posição do philósophos, a possibilidade da indagação (pergunta) não se exclui. E a sua eventual resposta, calar-se, não deixa de ser uma comunicação. Assim, se no plano sintático e semântico, o filosofar foi interrompido por um único ato de falar - não jogo mais -, no plano pragmático ele não se interrompeu nem se pode interromper, a não ser “que o Homem histórico renuncie a filosofar", hipótese que o próprio Porchat concorda ser inviável (p. 21). Se todo ato de falar ocorre numa situação comunicativa, ele não tem como impedir uma resposta. Portanto, o seu ato heróico põe em movimento a comunicação, ele não é, por assim dizer, dono de si próprio, ele tem que dirigir-se a alguém. Nestes termos, ou o seu ato é equiparável ao esquizofrênico, - este seria o sentido do seu "filosoficamente injustificável" - ou então é ainda ato "racional" e será injustificavelmente filosófico. Que quer dizer isso?
8. Distinguimos três funções pragmáticas do discurso. A primeira denomina-se função sintomática, isto é, todo discurso expressa sentimentos, sensações, ódio, amor, interesse, desinteresse, idéias, recusas, etc. A segunda é a função de sinal, isto é, o discurso do orador provoca no ouvinte um comportamento, todo discursar é também um cometimento, produz uma reação em quem ouve (querida ou não querida), que o leva a modificar ou manter seu modo de sentir, pensar, falar, etc. A terceira chama-se função estimativa, isto é, através do discurso o objeto do discurso, aquilo que se diz, a questão, é qualificado, o grau de complexidade reflexiva se revela. Ora estas funções nos permitem classificar modos pragmáticos de discurso.
O primeiro deles pode ser chamado de monológico. O monólogo é um modo de falar em que a função sintomática do discurso, por parte do orador, não parece como expressão dele próprio. O orador procura mesmo afastar sua subjetividade individual. Ele é um simples proponente, pode ser substituído por qualquer um, num certo limite. Segue-se uma função de sinal peculiar. O ouvinte reage de modo passivo, assumindo o papel do "theorós", ele contempla. Sua passividade "theoretica" visa apenas a "formalidade" do discurso. Ele não é convidado a participar, a discutir o que se diz. mas apenas como se diz. Sua reação se resume a permanecer na situação e aceitar ou a "sair da situação", caso em que teremos outro tipo de discurso (diálogo). Por isso, dada a função estimativa, o objeto do discurso (questão) aparece como um certum. Certum é uma questão, cuja reflexividade foi quebrada. Como toda questão, há aqui também um conjunto de possibilidades estruturadas em alternativas, mas que acabam por reduzir-se a duas apenas, entre si contraditórias: sim ou não, verdadeiro ou falso, etc. Não sendo reflexivo, o monólogo se desenvolve apenas numa direção: para frente, a partir da quaestio certa.
A estrutura do monólogo, além da regra do dever da prova, tem as seguintes regras básicas: 1.º) nem toda ação lingüística do orador pode ser posta em questão; 2.º) segue-se que toda ação lingüística ou é refutável ou é irrefutável; 3.º) se for irrefutável, o ouvinte não pode pô-la em dúvida e, se for refutável, o orador não pode afirmá-la. O monólogo pressupõe, deste modo, o principio do terceiro excluído (as ações se dividem em refutáveis e irrefutáveis, excluída uma terceira hipótese). Um discurso monológico, tendo um ponto de partida certo, admite axiomatizacão e compõe, em geral, sistemas dedutivos, axiomatizados.
O outro tipo de discurso denominamos diálogo. Dada a função sintomática, pode-se dizer que o discurso, da parte do orador (aquele que está com o ônus da prova), é expressão dele próprio. O orador participa da discussão, sendo impossível isolá-lo daquilo que ele diz, sob pena de o discurso tornar-se incompreensível. Ele é imediatamente responsável pelo que fala. Esta responsabilidade nos leva a uma função de sinal peculiar. O ouvinte torna-se também participante pessoalmente responsável e sua reação é ativa. A reação ativa, no sentido da função estimativa, qualifica a questão, o objeto de discurso, como um dubium.
Um dubium é, inicialmente, um conjunto de alternativas. Trata-se, entretanto, de uma questão eminentemente reflexiva, onde é, pois, sempre possível pôr-se em dúvida a própria questão, formular-se uma questão sobre a questão.
A estrutura do diálogo é, assim, peculiar. Além da regra do dever de prova, destacamos as seguintes: l.º) qualquer ação lingüística pode (embora não tenha que) ser posta em dúvida: de acordo com esta regra, podemos ver todo discurso dialógico como uma série de diálogos parciais e provisórios, que nos permitem conquistar ações lingüísticas primárias, pontos de mútuo entendimento provisório que não se referem diretamente à questão mas possibilitam a sua discussão; 2.°) uma ação lingüística primária do orador permite-lhe asserções que não poderão ser postas em dúvida pelo ouvinte, pois elas poderão ser defendidas pelo orador; .3.º) o orador, em compensação, não pode mais modificar suas próprias asserções. A estrutura dialógica, como se vê, não pressupõe o principio do terceiro excluído, pois a primeira regra impede uma divisão das ações lingüísticas em refutáveis e irrefutáveis. Embora isto ocorra pela segunda regra, a primeira, por assim dizer, garante a instabilidade da discussão que sempre poderá ser retomada, reflexivamente, do seu princípio e, regressivamente, para além dele, o que dependerá sempre da situação comunicativa.
O diálogo se revela, por isso, como uma estrutura aberta para todos os lados, na qual é impossível uma eliminação cabal do dubium. Trata-se de um jogo sem-fim de estratégias que se apoiam, não sobre axiomas, mas sobre tópoi ou lugares comuns. Tópoi são fórmulas de procura, operações estrururantes que nos permitem manipular o dubium de modo argumentativo. Como os tópoi são fórmulas presas à situação comunicativa, o discurso dialógico experimenta uma certa historicidade. Mas, propriamente, não o diálogo e sim as suas estratégias é que são históricas.
Distinguimos, além disso, dois tipos de diálogos: a discussão-com e a discussão-contra. Na discussão-com os parceiros, orador e ouvinte, são homólogos, no sentido socrático do termo. Esta homologia se dá no interesse da busca da verdade. Os parceiros discutem um com o outro "racionalmente", no sentido de que o seu discurso não se deixa determinar por meras tradições, costumes, emoções, que são filtradas pelo mútuo entendimento. O objetivo do diálogo homológico é a busca da verdade que, encontrada, é capaz de produzir consenso entre as partes, embora, dada a primeira regra, este consenso seja sempre instável. A pesquisa científica é, em geral, um exemplo de discussão-com.
Na discussão-contra, orador e ouvinte são heterólogos. Ambos se engajam na situação de modo partidário e defendem as suas opiniões. Eles não querem convencer, mas persuadir o adversário. Neste caso, o dubium recebe o nome especial de conflito. O conflito consiste numa incompatibilidade que exige um decisão. A discussão-contra é, assim, um discurso decisório, um modo racional de discutir que visa a tornar questões indecidíveis em questões decidíveis. Exemplo dele é o discurso político.
Perguntemos agora, que tipo de discurso é o filosófico?
9. Quem olha, como o philósophos de Porchat, os sistemas filosóficos históricos como universo autônomos, irremediavelmente votados a permanecer estranhos um ao outro (p. 18), poderia descobrir neste dado todos os tipos de discurso. Mas isto não resolveria a questão proposta: é possível recusar-se a filosofar sem justificação filosófica?
A atitude do philósophos de Porchat é eminentemente questionadora e reflexiva, que chega mesmo a uma aporia. O seu discurso é dialógico, de uma dialogicidade aporética que o leva inclusivo de uma discussão-com-o-logos-filosófico a uma discussão-contra-o-Logos: se a filosofia é impossível, decido-me a não filosofar e de modo radical, sem justificar a decisão, pois reconheço que, se o tentasse, teria de apelar de novo para a filosofia.
Esta decisão que se recusa justificar-se dada a situação comunicativa em que se insere, não é racional nem esquizofrênica. Ela se justifica, ainda que não no modo da discussão-com filosófica que ela quer abandonar. A metafala do philósophos reconhece e percebe a heterologia em que se encontra perante os seus ouvintes. Há um desnível entre ambos. Ao philósophos falta, por isso, a coragem de agir como os outros ou sobra-lhe o heroísmo para não fazê-lo. Ele sabe que qualquer "argumentação" que se pretendesse propedêutica e fundamento de uma opção qualquer já constituiria uma forma de "opção primeira" (p. 18), por isso ele não argumenta filosoficamente. Sua decisão, portanto, não é primária, mas final. Ela não começa nada, mas quer terminar tudo. Ela não inaugura nenhum sistema, nem fixa axiomas, para poder monologar, nem pretende conseguir ações lingüísticas primarias, para poder dialogar. Não quer dialogar e, não o querendo, dialoga. E, diante do paradoxo pragmático, descobre que sua decisão não é uma opção primeira, pois não pode nem quer sistematizar; nunca se tornará sophos, permanecerá sempre philósophos. Como, entretanto, decidindo não dialogar ele pragmaticamente dialoga, a sua fala continua agregada aos filósofos, mas na forma de um parasita dos sistemas ou da sistematização que ele recusa. Isto, se olhamos a situação comunicativa do ângulo dos filósofos que se sentem capazes de sistematizar. Se olhamos, porém, a mesma situação do lado do philósophos que decidiu, depois de um longo diálogo, a não mais dialogar, a sua metafala aparece, por assim dizer, como a penitência que todo filósofo tem de pagar pela ousadia de instaurar um sistema, de sistematizar.
10. Chegamos assim a um ponto na nossa caminhada. A investigação pragmática nos permite identificar, no discurso filosófico, uma espécie de situação comunicativa heterológica, pois as partes que discutem não são homólogas, isto é, buscando a verdade, elas procuram ser de tal modo abarcantes, que acabam por interpretar e interpretar mal os seus parceiros. Sua conduta tem, pois, o partidarismo próprio da discussão-contra. A relação discursiva entre os filósofos é polêmica. O discurso filosófico é do tipo dubium e, além disso, conflitivo, exigindo, sempre, uma opção fundante. O conflito que anima a discussão não é, pois, solucionado, mas decidido. A decisão é capaz de reduzir o conflito, embora não seja capaz de acabar com ele.
Esta é, aliás, também a perspectiva do philósophos que, num ato de desespero, não quer mais discutir. O paradoxo pragmático em que se mete, entretanto, faz-nos ver que o seu discurso negativo é um metadiscurso puramente aporético. Ele está em plena aporia e não quer sair dela. Assume-a para ignorá-la. Com isso, porém, ela mostra que a discussão filosófica é o oposto da sistematização, é um problema puro, se assim o quisermos. Só o philósophor, diz Porchat, percebe o conflito das filosofias. E ao percebê-lo, ele não apenas está consciente de que a sua tomada de decisão não pode ser justificada filosoficamente (é o filosoficamente injustificável), mas mostra, existencialmente, que a sua fala não pode ser invalidada filosoficamente. Isto é, o seu philosophar revela que a filosofia culmina não numa opção inicial, mas numa aporia perene, a qual é injusficavelmente filosófica: nem se inválida nem se demonstra filosoficamente.
Poder-se-ia perguntar, entretanto, se a nossa análise, pragmática. foi philosóphica ou filosófica, isto é, aporia pura ou sistematização. Nós diríamos que ela é aporética e, pois, philosóphica na medida em que paga a sua penitência, mas é filosófica, na medida me que se serve de uma opção inicial - análise pragmática do discurso - para tentar uma sistematização. Neste momento ela é uma atitude dramática, mas que busca um equilíbrio. Ao abrir-se para a aporia, porém, ela beira a esquizofrenia, a patologia, e se revela como uma atitude trágica: se fala, se contradiz; se cala, também se contradiz e sofre a enorme tentação de dizer: o discurso filosófico é eminentemente aporético.
Notas:
* Este artigo é dedicado ao Prof. Oswaldo Porchat Pereira, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de São Paulo, meu mestre, meu amigo. Publicado pela Revista Latinoamericana de Filosofia. Vol. I, Nº 1, março, 1975.
1 “Die Strukturanalgse der Erkenntsthorie”, in Wissenssoziologie.
2 “Soziologische Aufklarung
3 Cf. “O conflito das filosofias”, p. 9 e segs.
4 Cf. Ferraz Jr., Tércio Sampaio. Direito Retórica e Comunicação. São Paulo: Saraiva, 1997.
5 Cf. Watzlawtch, J. Beavin, D. Jackson. Pragmática da Comunicação Humana. Trad. A. Cabral. Cultrix. São Paulo, 1973, p. 14 e segs.
Fonte: A Filosofia e a visão comum do mundo, Brasiliense, São Paulo: 1981, pp. 23-35.