A dimensão social da democracia

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

O tema em questão pode ser colocado, a meu ver, sob dois ângulos. O primeiro tem um sentido mais doutrinário e visa a indagar como os ideais democráticos transcendem os limites políticos e se aplicam ou devem ser estendidos aos fenômenos sociais stricto sensu. Assim poder-se-ia falar, por exemplo, na democratização da família, da empresa, do sindicato, da vida urbana, da vida rural, etc. O segundo tem um sentido mais ana­lítico e procura discutir a questão, do eventual condicionamento social da democracia. O que se pergunta, neste caso, é, por exemplo, se os ideais da democracia política exigem certos requisitos de desen­volvimento social para que possam atualizar-se plenamente.


Nossa opção é pela segunda colocação. Propomos, pois, uma discussão analítica sobre a dimensão social como uma eventual condicionante da democracia.

É bom, contudo, antes de explorarmos o tema definir operacionalmente os termos que o compõem. O primeiro e mais complicado deles é Democracia. Talvez não seja conveniente, para lograr um entendimento com o auditório, determinar-lhe concretamente o sentido, mantendo um nível de abstração suficiente para maior margem de reflexão.

A palavra Democracia é um dos lugares comuns mais importantes da retórica política de nossos dias. Poucos são os regimes que têm a audácia de se proclamarem antidemocráticos. Mesmo os países comunistas que, por princípio, se reconhecem como ditaduras do proletariado, suavizam suas posições, apresentando-se como democracias populares. Outros revitalizam-nas, falando em democracia liberal, social, cristã, o que contrapõem pejo­rativamente, democracia, plutocracia, formalista, etc.

Historicamente, o ideal democrático configurado pelos pensadores iluministas do século XVIII significou uma forma de legiti­mação das relações entre governantes e governados. Este ideal sustenla-se sobre dois pilares: a idéia de representação dos governados pelos governantes e a ideia de identificação ou comunhão entre ambos. Representação significou, no correr dos anos, participação mediatizada e institucionalizada através dos instrumentos políticos tradicionais, como eleições, mandatos populares, pluralismo partidário, liberdade de expressão, etc. Identificação ou comunhão quis dizer participação consciente, identidade autêntica de ideias, politização tanto de governantes quanto de governados.

Embora os dois pilares possam ser entendidos como constituindo um conjunto solidário no sentido de que, idealmente, a participação democrática do governado no Governo deveria excluir a representatividade manipulada quanto a identificação forjada, na prática, ambos impõem um jogo difícil, muitas vezes ambíguo e que trouxe para o debate político muitas incertezas.

Assim, por exemplo, na Eurona de após guerra (II Guerra), assistimos a um continuo debate em torno da redemocratização que nos conduziu de um lado, à institucio­nalização da representatividade na Alemanha, na Itália, na França, mas, de outro, forçou também as discussões em torno da autenticidade da representação, o aparecimento da chamada "oposição extraparlamentar", responsável por encami­nhamentos que, no limite, produziram as crises estudantis de 1968. Nos países em vias de desenvolvimento, o mesmo debate em torno da Democracia tem mostrado e aflorado o complicado problema dos pré-requisitos básicos da Democracia.

A idéia dos pré-requisitos significa para muitos o pressuposto de que os ideais democráticos só serão viáveis se se consegue reproduzir, nos países em transição, o curso dos países desenvolvidos que realizaram historicamente a modernização da sua sociedade e a industrialização da sua economia. Esta ideia, paradoxalmente, está bastante influenciada por Marx, para quem "o país industrialmente mais avançado representa, para os menos desenvolvidos, um panorama do seu futuro". Quando supomos, pois, que a democratização só é possível caso seja possível repelir uma experiência histórica comprovada estamos afirmando por exemplo que o pilar da representatividade só se consolida quando a identificação consciente é alcançada. Ora, se a identificação consciente não se dá, se, socialmente, o povo não atingiu certo estágio de desenvolvimento, se a alfabetização não foi difundida razoavelmente, se certos padrões econômicos não foram obtidos, etc., então a Democracia política sem eles seria pura utopia. Um dos grandes problemas dos países subdesenvolvidos, que aspiram um regime democrático como uma forma de aperfeiçoamento político parece ser, justamente, conseguir um razoável equilíbrio na politização dos seus conflitos. Sendo em geral, as sociedades em desenvolvimento, verdadeiros corpos informes de interesses nivelados, torna-se difícil fazer prevalecer in­teresses transcendentes dos indivíduos com a sua anuência, bem como submetê-los a regras objetivas do jogo social. Por isso alguns países procuram encaminhar-se para a estratégia de primeiro conquistar as bases sociais e econômicas, isto é modernizar, para depois instaurar a Democracia. Esta tese tem três premissas: primeira, a Democracia se caracteriza pela sua enorme flexibilidade de absorver contestações; segunda, é ingenuidade pensar que a simples descompressão política restaure pronta­mente a lealdade ao sistema; terceiro, uma certa dose de autoritarismo é inevitável numa fase final de modernização. Segue-se daí que o regime democrático representativo tradicional passa a ser acusado de ser incapaz de manter uma elevada taxa de industrialização sem excessiva inflação, desordem social e desequilíbrios internos (Roberto Campos: A Nova Economia Brasileira, em colaboração com Mário Henrique Simonsen). Temos para nós, entretanto, que por de trás desta tese está a possibilidade utópica de realizar integralmente as altas taxas de desenvolvimento econômico, aproveitando inclusive a poupança externa — o que coloca para os subdesenvolvidos- o problema da autonomia nacional — B) a eficiência governamental — C) o bem-estar social a curto prazo, e, D) a elevação na taxa de incerteza que a participação politica extensa normalmen­te acarreta.

Ora, esta tese pressupõe, na verdade, uma espécie de naturalis­mo politico, a possibilidade de se afastar os obstinados políticos e uma boa parte dos agentes descon­tentes, do que resultaria, no futuro, o bom funcionamento da sociedade política, onde, ao final, todas as di­vergências estariam acomodadas. No fundo, os que defendem a tese da necessidade do autoritarismo para obter-se a modernização, entendem, assim, por Democracia (a ser instaurada posteriormente) um regime bem próximo daquilo que proclamam ser impossível no mo­mento: a Democracia Liberal do século XIX.

De fato, porém, o que se obser­va é que a exigência de pré-requisitos é que torna a Democracia utó­pica e não o contrário. Isto é, ela não é utópica porque só se realiza com os pré-requisitos, mas porque os pré-requisitos são ilusórios. No fundo, esta ideia de pré-requisitos envolve uma concepção fatalista da história, como se a efetivação de uma possibilidade já estivesse, des­de sempre, pré-determinada, o que exclui a visão de que o homem, dentro de certos limites, é livre e de que o curso histórico depende de suas decisões.

No plano-empírico, Samuel Huntington nos mostra assim que os avanços em modernização, sobretu­do, como mobilização social e parti­cipação politica, não implicam, ne­cessariamente, em desenvolvimento político, podendo ocorrer, inclusive, o movimento oposto, isto é, a deca­dência política. Admitindo-se que o ideal democrático constitua um objetivo de desenvolvimento político, seria preciso verificar, pois, se real­mente ele pressupõe a modernização social.

A principal questão que esta­mos discutindo se localiza no modo como um regime que se pretende democrático consegue conciliar re­presentatividade com identificação consciente de ideias. Se entende­mos que a representatividade au­tentica só é possível quando, é alto o coeficiente de identificação cons­ciente, a Democracia se torna uma utopia. Por quê?

Não apenas porque a identifi­cação consciente pressupõe pré-requisitos que nem sempre são possí­veis, mas porque, sobretudo, uma identificação consciente total des­trói a própria Democracia.

Identificação consciente total significa a politização de todos os conflitos sociais. Ou seja, configu­ra a hipótese de que o consenso po­litico só é autentico quando os ci­dadãos, em todos os seus atos, agem com a consciência do significado político deles. A politização de to­dos os conflitos, porém, ao invés de gerar consenso, gera um dissenso de proporções incontroláveis. Isto pode ser observado, por exemplo, em regimes totalitários, onde a chamada conscientização política acaba redundando na imposição de critérios exteriores à própria vida, de fórmulas artificiais que unifor­mizam as opiniões ficticiamente ou até de falo através de manipulação dos meios de comunicação dc massa. Em outras palavras, a poli­tização de todos os conflitos não conduz à Democracia, mas ao to­talitarismo, porque vicia a repre­sentatividade.

Neste sentido, a Democracia, na sua dimensão social, não deve pressupor de nenhuma forma, a conscien­tização politica de to­dos os conflitos sociais. A sua ins­tauração não depende portanto, do aumento da conscientização através de modernização sócio-econômico-cultural, mas do modo como se tra­balha a escassez de conscientização. Em outros termos, o grau de democratização de um Regime não se mede pelo alto grau de consci­ência politica dos cidadãos, mas pe­lo modo como um sistema politico se legitima apesar da baixa politização, ou seja, a representativida­de como um dos pilares da Demo­cracia não pressupõe politização total, mas uma politização relati­va. Que significa isto?

O mundo moderno é o resultado de sociedades complexas, caracterizadas pela multiplicidade e especialização crescente das funções.

Esta complexidade gera a escassez de consenso. Neste sentido, governar uma sociedade complexa significa enfrentar a escassez de consenso, descobrindo mecanismos capazes de estabelecer uma coexistência entre as necessidades de tomar às vezes rapidamente uma decisão com as inevitáveis decepções que ela provoca. Por exemplo, a decisão de conceder aumentos tarifários para serviços de transportes, frustrar a expectativa de poupança do usuário e, vice-versa, a não concessão decepciona as empresas concessionárias. As decepções, portanto, são impossíveis de ser eliminadas. E' preciso saber conviver com elas.

A utopia da conscientização to­tal repousa, como vimos, na possi­bilidade de racionalizarmos todos os nossos conflitos e nos conduz a uma ficção totalitária. Num siste­ma democrático, a fórmula legitimadora não está, curiosamente, na obtenção do consenso, mas na ge­neralização do dissenso. Se a possibilidade de decepção é tão grande; maior que a possibilidade de eli­mina-la, o recurso democrático é abrir válvulas de escape, criar con­dições para a manifestação e captação controlada de protestos.

Isto é conseguido, por exemplo, por uma atitude perante o consen­so, não no sentido de que ele seja conscientemente dado, mas no sentido de que toda participação, consciente ou não, é reconhecida como importante no processo político. Num regime democrático, nenhuma opinião deve ser, a priori, descartada. Assim, a representati­vidade se torna autêntica não pelo consenso concreto, mas pela garan­tia institucionalizada da manifes­tação do dissenso.

A fórmula da generalização do dissenso parte, sem dúvida, da hi­pótese de que na sociedade civil há, de um lado, expectativas perma­nentes que estabelecem um mínimo de consenso (tradição, usos, costu­mes e, do outro, decepções igual­mente permanentes e desigualdades nas oportunidades, nos níveis de consumo, de salário, nos acessos à educação) que não podem ser eli­minadas, sob pena de cairmos numa utopia ou num totalitarismo. Neste sentido, a instauração da De­mocracia passa a depender da pre­sença de certos procedimentos ins­titucionalizados cmo a eleição. O Parlamento, a imprensa livre, a Universidade autônoma, mas en­tendidos como instrumentos capa­zes de tornar decepções inevitáveis em decepções difusas, na forma do ressentimentos generalizados, para os quais não há canais de manifes­tação.

Assim, o decepcionado que tei­ma em manter suas expectativas desiludidas não enfrenta muitas al­ternativas: ou tem a oportunidade de voltar a manifestar o seu pro­testo ou é estabilizado socialmente no papel de marginalizado políti­co, situações que tem de suportar com grandes riscos e custos sociais.

Nos sistemas políticos democráticos, os seus membros são con­vidados a manifestar continuamen­te as suas insatisfações e através de inúmeros canais. Isto porque os conflitos sociais só podem ser absorvidos e legitimados no sistema quando a complexidade de exigências e interesses podem ser canali­zadas para decisões vinculantes. Para que isto ocorra é preciso, primeiro, incerteza autêntica sobre, qual vai ser a decisão, isto é, a de­mocracia se fortalece justamente na medida em que exige uma certa dose de insegurança como condição de motivação política. Segundo, ela tem de desenvolver, em consequên­cia, certa tolerância para com si­tuações de risco e indeterminação. Por último, deve ser capaz de absorver variações estruturais, isto é, deve evitar a tentação de reduzir suas decisões a medidas sim­ples, centralizando-as e monopolizando-as.

O que se propõe, nesta linha de raciocínio, é, assim, que à complexidade social deve-se responder com um aumento da complexidade do sistema político. Ou seja, a solução não está em simplificar a complexi­dade social, modernizando-a no sentido de uniformizá-la, mas, ao contrário, complicando o sistema político internamente. Mesmo por­que, como observa Huntington, "não se pode recuar para um mun­do mais simples". O passo inicial para a democratização é, portanto, político e não econômico-social. Mesmo porque, à inversa do que se pensa, a própria determinação do que seja modernização não é fru­to de uma decisão econômico-social, mas de uma decisão política.

Com isto, o debate reflui para o endereço político. Neste debate é importante mostrar não que a rea­lidade atual é incompatível com certos valores democráticos, conce­bidos utopicamente, mas que estes valores tendem a ser pervertidos no confronto com a realidade. A democracia não é utópica porque seus princípios não têm como realizar-se, mas porque tendem a aplicar-se de modo pervertido.

A perversão dos valores democráticos começa, assim, com uma sutil transformação no núcleo básico do seu programa político. Se a sociedade subdesenvolvida é con­cebida como um corpo amorfo, a ideia de identificação, por exemplo, passa a significar uma espécie de rendição coletiva. Integração global e assentimento irracional a um projeto de redenção comum. Identificar-se e, então, assegurar o pro­cesso de industrialização, é como ver-se com a possibilidade do bem-estar futuro, é realizar a nova e autêntica sociedade civil, etc.

Como estes alvos demandam, quer se queira ou não, maior com­plexidade interna, ou seja, maior especialização, maior organização, a identificação de ideias se esvazia, quando aliada à utopia da socieda­de sem conflitos, passando a signi­ficar embotamento crítico provoca­do pela exigência de adesão incon­dicionada aos projetos preparados por uma burocracia apolítica e tecnicidade. A identificação que foge destes parâmetros passa a ser con­siderada, como oposição, como des­confiança, tornando-se um compor­tamento esdrúxulo, a ser margina­lizado do processo.

Com isto, a participação democrática perde seu elo com o pilar de representatividade: o pluralismo e o controle do Poder pelo povo. A participação democrática é pluralista justamente quando é, desde o iní­cio, diversificada e alternada e quando a possibilidade de controle está ligada ã salvaguarda institu­cional e canalizada da livre discussão. De certo modo, podemos até afirmar que a concepção clássi­ca de Democracia, embora veja a identificação de ideias como um instrumento de obtenção de consenso, sempre pressentiu que tão importante ou até mesmo mais im­portante do que ela, era a garantia da manifestação do desacordo ao se opor, sendo o problema do con­trole do Poder mais uma questão de estratégia política capaz de alimentar-se até da falta de consenso, para legitimar-se.

Neste sentido, pois, a Democra­cia perverte seus valores ao massificar seus próprios princípios, tor­nando-se, de um lado, democracia popular, de outro, um entrave a um projeto que a elimina justamente ao pensar que a realiza. Massificação significa, neste caso, canali­zação única da adesão popular e fe­chamento dos canais de absorção de protestos, confundindo-se o pro­testo com o canal que o viabiliza, isto é, confundindo, por exemplo, o voto, a autonomia universitária, a imprensa, com o protesto que pos­sam eventualmente veicular.

Ou, como disse Huntington nu­ma entrevista publicada há algum tempo, o problema não está no fato de que os processos democráticos venham a ser substituídos por pro­cessos burocráticos, mas que os bu­rocratas venham a explorar a De­mocracia para seus próprios fins, tornando, na tomada de decisão política, impossível a outros grupos competirem efetivamente com eles.

Fonte: JORNAL DO BRASIL (ESPECIAL), Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1977.