A “democracia” relativa

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

 

As dificuldades do regime político brasileiro em buscar critérios de autolegitimação têm levado nossas autoridades a formular argumentos nem sempre muito claros a respeito de sua qualificação democrática. Não faz muito, por exemplo, o presidente Geisel falava numa espécie de democracia relativa, no sentido de que há diversas democracias, variando conforme as situações econômicas e sociais de cada país. O que, numa fórmula mais simples, não significa mais do que isto: cada povo tem a democracia que merece.

De qualquer modo, esta fórmula não deixa de ser uma variante mais sutil de uma outra que andou pesando na consciência política do governo, especialmente no período Médici, segundo a qual o povo brasileiro não teria condições para aspirar a um regime democrático. No fundo, porém, ambas as fórmulas dizem coisas parecidas. A primeira relativiza o termo democracia em relação a povo. A segunda relativiza os povos em relação à democracia. Nos dois casos, o resultado é praticamente o mesmo: a proclamação de uma certa incompatibilidade entre ambos.

A verdade é que a democracia tem sido um dos lugares-comuns mais importantes da retórica política dos nossos dias. Poucos são os regimes que têm a audácia de se proclamar antidemocráticos. Alguns suavizam seus princípios substituindo certas fórmulas como ditadura do proletariado por outras, de legitimidade mais aceitável, como democracia popular. Outros adjetivam o termo de forma variada, falando em democracia liberal, cristã e social, retirando-lhe a força e relativizando suas características.

A democracia, como se vê, se transforma numa questão de opinião. E, como em matéria de opinião nenhum pensamento é verdadeiro, tudo passa a ser permitido. Não resta dúvida de que – como mostra Hannah Arendt – o domínio político é o da causa-pública, ou seja, da opinião. Agir politicamente é, assim, pensar sua própria opinião em confronto com a dos outros. Mas isto não significa a permissividade total a respeito de tudo.

E é justamente esta uma das peças-chaves que distingue a democracia de qualquer forma, declarada ou camuflada, de totalitarismo. A existência de opiniões e do conflito público é um fato que não pode ser negado. Mas pode ser encoberto. Não me refiro ao erro, possível e comum entre os homens. Afinal, errar é humano. Se, porém, o erro pode ser admitido, o mesmo já não se pode dizer da mentira – a falsidade deliberada.

O homem pode errar, mas não deve mentir. E os totalitarismos, inclusive os que se disfarçam de democráticos, primam por encobrir este fato, reduzindo o espaço da opinião e, conseqüentemente, da própria vida política. Que isso é possível, não resta dúvida, pois a capacidade de mentir é um dos poucos dados óbvios que confirmam a liberdade humana. Mas superestimar esta liberdade, tolerando a negação ou a distorção mentirosa dos fatos, é pervertê-la.

Assim, por exemplo, é possível ter opiniões diferentes a respeito das melhores fórmulas para o desenvolvimento do País, bem como julgar que o auxílio governamental na manutenção do mercado financeiro é meta razoável. Mas quando um grupo político adere à falsidade organizada, escondendo fatos importantes, proclamando um milagre que já se sabia impossível (como no final do governo Médici) ou mesmo fazendo segredo sobre a injeção de capital do mercado financeiro que pervertia a meta do seu incremento, então a linha divisória da liberdade e da sua perversão estará sendo transposta.

Esta linha divisória não é fácil de ser traçada. Mas onde ela é ultrapassada, a verdade – que não é um instrumento político – passa a gozar de extraordinária força. Assim, o totalitarismo é sempre avesso à verdade, pois teme a competição de uma forma coercitiva que ele não pode monopolizar. É por isso que os dissidentes soviéticos são expulsos de sua comunidade tachados de subversivos, porque proclamam fatos que não se coadunam com a verdade oficial.

Ao encobrir, silenciar e violentar a verdade doa fatos, o totalitarismo acaba por suprimir as condições que tornam possível o livre exercício da opinião, falseando os acordos e viciando os consentimentos. Por isso, ao contrário dos regimes democráticos, os totalitários sempre tendem a tentar um controle político sobre aquelas instituições que, por mais ligações que tenham com o poder estabelecido, primam por ter a verdade e a veracidade como critério soberano de sua atividade. Entre elas, se distinguem o Poder Judiciário, a universidade e a própria imprensa, todos capazes de dizer verdades indesejáveis. Mas que, numa democracia, conservam-se como centros de informação exterior ao domínio político e, simultaneamente, em condições de orientar um mundo em contínua mu-dança.

Nestes termos, é fácil entender que um regime que procure exercer um controle político sobre o Judiciário, retirando-lhe a independência e a imparcialidade, está minando suas condições de democratização. Ao interferir na autonomia universitária e na liberdade de pesquisa, está castrando-lhe a responsabilidade de descobrir e interpretar a verdade dos fatos. E, ao censurar a imprensa, está retirando de cada um de nós aquela possibilidade de orientação.

Nem o Judiciário, nem a universidade, nem a imprensa são poderes políticos. No entanto, quando sua responsabilidade perante a verdade é transformada em mera questão de opinião, paradoxalmente estamos contribuindo para sua politização. Nesse sentido, os regimes democráticos re-conhecem a importância política dessas instituições, sem, entretanto, politizá-las. O totalitarismo, ao contrário, tende a julgá-las conforme seus padrões, tornando-se incapaz de distinguir entre a mera opinião e a verdade. E, ao fazê-lo, suprime a própria liberdade de opinião que, sem qualquer relação com a verdade, se torna puro arbítrio.

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo, 03.06.77.