A concepção geral do mundo e a revolução científica

Tercio Sampaio Ferraz Jr. 

O professor Topitsch nos apresenta uma tese bastante expressiva a respeito do papel da ciência e da tecnologia modernas nas condições essenciais da vida cotidiana. A principal delas ou, pelo menos, a que gostaria de ressaltar de sua exposição, é o fato de que a revolução científico-industrial foi capaz de pôr em xeque as explicações compreensivistas da tradição, que pela sua vacuidade impuseram à sociedade uma série de pseudoproblemas — bem como uma série de satisfações emocionais fictícias que se revelam, graças ao iluminismo científico, meras ilusões e, além disso, perigosas ilusões pelas suas consequências políticas e sociais.

Por isso mesmo, diz Topitsch, pela decomposição dos sistemas compreensivos como o direito natural, a concepção dialética da história etc., a ciência, instaurando uma esfera de conhecimento objetivo, se estabelece como um domínio relativamente autônomo capaz de pôr limites ao poder político.

A propósito deste tema desejo, pois, fazer as seguintes observações:

1) Em 1º lugar, referir-se à função social da ciência implica reconhecer não só um fato mas também uma crítica que merece reflexão: acusar-se-á a ciência de um desvio que prima facie soa paradoxal: o cientificismo. Diz-se que a ciência moderna, justamente quando realiza um grande esforço em nível de rigor maior, perde contato com a realidade ou então dissimula os problemas considerados importantes no momento, cumprindo assim função parecida com a dos sistemas compreensivos que desarticulam, contudo igualmente mitos que justificam a manutenção de estruturas sociais. É conhecida, neste sentido, a afirmação de Marcuse e Habermas de que a ciência moderna serviria também e mais ainda para legitimar formas de estruturação do poder social.

Sobre esta tese é preciso esclarecer vários pontos. Não deixa de surpreender, de início, que uma atividade pretendidamente neutra e objetiva como a científica possa provocar tais reações explosivamente emocionais. Pois uma das características da ciência pós-renascentista é sua neutralidade afetiva. O ethos da imparcialidade metódica, que parece subjacer à exposição do professor Topitsch é o ideal diretor do desempenho científico deste meados do século XIX. E, não resta dúvida, nós somos herdeiros desta tradição.

Parece claro, pois, que o ethos da objetividade e da neutralidade constituem pautas culturais que regularam e regulam o comportamento da própria comunidade científica, mas as consequências disto para a própria comunidade permanecem obscuras. Veja-se, por exemplo, toda a disputa a propósito da Wertfreiheit, nas ciências sociais, proclamada por Weber como característica da racionalidade da ciência ocidental.

Esta questão da objetividade e neutralidade tem nuances a serem esclarecidas. Para tanto nos valemos, no que segue, de um trabalho de Roberto José Vernengo, introduzido como apêndice à segunda edição de sua Teoria General dei Derecho. Até a 1º guerra mundial, Husserl prescrevia um modelo de ciência ideal encontrável em disciplinas como as matemáticas e as lógicas, mas, a partir da década de 30, o mesmo filósofo se digna advertir que o edifício perfeito da ciência racional universal — a mathesis universalis — não só não havia sido erigido, mas também era impossível. Esta crítica, porém, tem um lado ainda mais importante: ela mostra a ciência como um modo de poder e como uma forma de violência. Pois a pretensão de objetividade e neutralidade valorativa revela seu verdadeiro rosto como uma exigência de rigor e, em consequência, de imposição totalitária.

Esta mistificação de pretensão da neutralidade e objetividade se baseia em uma concepção de ciência como um saber puro, um conjunto de enunciados sistematicamente ordenados com pretensão de verdade estrutural e cuja relação com a realidade pode dar-se contingentemente. Ora, este modelo prescinde pelo menos de duas coisas: primeiro, esquece-se que a linguagem em que a ciência verte as suas proposições é sempre o veículo de comunicação entre um grupo emissor e um receptor.

Neste modelo em que a ciência poderia então exercer uma função iluminista, de desarticular mitos, os grupos que se comunicam através da linguagem científica compõem a humanidade inteira. Mas isto não passa de um modo de falar: a humanidade é uma abstração e, na realidade, toda comunicação, inclusive a científica, se estabelece entre sujeitos bem definidos no que respeita às suas relações sociais recíprocas, isto é, situados em posição caracterizada por seus níveis de estratificação, os papéis disponíveis, as pautas vigentes. Afirmar que a física nuclear é património da humanidade é, assim, ocultar que o uso efetivo de tais conhecimentos é património exclusivo de grupos muito reduzidos de poder, em número ainda mais reduzido de potências. Afirmar que, por sua natureza, as proposições da ciência são passíveis de aquisição por qualquer homem, é dissimular o fato de que nem todos os homens têm a seu alcance todas as possibilidades, ou seja, que a ciência acaba sendo a linguagem secreta de certos grupos.

A segunda coisa a observar é a questão da relação da ciência como realidade. É verdade, em 1° lugar, que a ciência, como um conjunto de enunciados verdadeiros e relativamente sistematizados, não tem uma relação direta e imediata com a realidade que tematiza. Diz-se, assim, que a realidade funciona antes como uma instância de verificação e falsificação de enunciados deduzidos de leis mais gerais. Ora, os enunciados gerais, a rigor, não admitem uma verificação empírea absoluta e, portanto, o contato com a realidade não é o ponto de partida, mas sim uma possibilidade a que se recorre a fim de pôr à prova uma teoria. Ora, embora esta teoria possa ser vista como um sistema ideal, ela não é apenas isto, pois é também aquilo que determinados grupos sociais fazem. E como toda atividade social, a ciência passa a ser, assim, o modo de atuar — de pôr à prova, de tentar, de testar, de modificar — de um grupo especializado, constituindo, pois, um sistema de comunicação pautado entre os membros do grupo, entre este grupo e os grupos de interação.

Deste aspecto comunicacional e pragmático, a ciência tem uma relação ambígua com a realidade. Pode constituir uma comunicação não-alienante ou pode constituir uma imagem dissimulada das relações sociais efetivas.

Neste quadro, parece-me importante observar o seguinte a respeito da função iluminista da ciência:

1) Num mundo de mudanças e desvanecimento na percepção da função da própria ciência, a sua função social básica — a de constituir o sistema institucionalizado de comunicação dos conteúdos cognoscitivos de uma cultura — não se cumpre. Ocorre, antes, um communication gap: os homens de ciência, que dependem dos grupos não científicos para a manutenção e subsistência dos grupos especializados, não podem informar os leigos do que se trata realmente. Os leigos, por sua vez, encaram a linguagem cifrada da ciência como algo que lhes é vedado, ainda que de alto prestígio. Segue daí, para o cientista, o seu isolamento como condição de sua liberdade e o seu estigma como nebuloso, acadêmico etc.

Ora, isto tem provocado, sobretudo nos últimos anos, e tende a se acentuar nos próximos, uma desfiguração da ciência como conhecimento universal acessível a todos e benéfica a todos. Sucede que os povos efetuam sacrifícios para manter as atividades de investigação de certos grupos, mas cujas orientações passam a ser impostas por setores alheios à atividade científica mesma: uma investigação farmacológica pode ser determinada pelo interesse econômico de um poderoso acionista, até uma investigação lógica pode ser determinada por interesses de uma estratégia militar.

Em conclusão, se a ciência configura hoje, como um sistema social, uma ilha de racionalidade, dentro de contextos sociais que a envolvem, mas onde a racionalidade não é o único critério de orientação, segue-se que em épocas de crise, sobretudo, a ciência passa a guardar, contra seu próprio ethos, um prestígio ideológico que impede que ela apareça como o que deve ser; modalidade de orientação racional de certas ações em que se produz e se recolhe a cultura do povo.

Diante disto, creio que permaneça, ontem como hoje, a interrogação crucial: devemos abandonar efetivamente a crença social na ciência como instância de racionalização das relações sociais? Em uma sociedade dessacralização como a nossa, esta pergunta nos deixa perplexos, pois nos abandona em um enorme vazio que nos angustia terrivelmente!

Fonte: FERRAZ JR., Tércio Sampaio. “A Concepção Geral do Mundo e a Revolução Científica e Industrial”. In: Universidade de Brasília. Alternativas Políticas Econômicas e Sociais até o Final do Século. Série “Encontros Internacionais da UNB”. 1ª ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 399-402.

Texto organizado e corregido por: Victor Alexandre El Khoury M. Pereira.