O imperativo da legalidade

Tercio Sampaio Ferraz Jr

 

A Carta aos Brasileiros, escrita pelo professor Goffredo Telles Jr. e lida no pátio da tradicional escola do Largo São Francisco, acabou sendo — entre todos os documentos a favor da normalização constitucional do País — aquele que mais peculiarmente expressou a consciência jurídica nacional. A consciência de uma classe que, na sua tradição de 150 anos, participou ativamente da formação cultural brasileira.

Um dos aspectos mais importantes da Carta, sem dúvida alguma, é o proclamado respeito pelo Estado de Direito, configurado pela soberania da Constituição, ou seja, pela crença inabalável de que tanto os governos quanto os governantes a ela devem total obediência. Afinal, e aí está a verdadeira dimensão de um texto constitucional, ela define os direitos fundamentais, distribui responsabilidades, limita as competências das autoridades, e traça o projeto político da Nação. A Constituição, desse modo, é o mais alto critério jurídico-político do País e nada deveria sobrepor-se a ela.

Em princípio, não há novidade nestas afirmações. Mesmo porque esta concepção encontra suas origens no liberalismo do século XIX, nas democracias inglesa, francesa e americana. Foi ela que inspirou a fundação dos cursos jurídicos no Brasil e ela que, ao longo de 150 anos, tem inspirado os grandes juristas nacionais. Tal concepção, igualmente, é responsável pela crença continuada nas soluções legais para todos os problemas políticos que, no decorrer desse período, temos atravessado. Mesmo no interregno do Estado Novo sempre houve uma consciência uniformemente aceita da importância deste respeito à lei, o qual — comparado com certos abusos ocorridos na prática — jamais chegou a desaparecer. Tanto que, a partir de 1945, ela ressurgia plenamente, podendo o País convocar em pouco tempo uma Assembleia Constituinte e institucionalizar imediatamente os ideais de liberdade.

No entanto, sobretudo nos últimos anos, o jurista de um modo geral tem sido visto como um homem conservador, cujo apego à lei e ao seu império atrapalha mais do que ajuda. Isso porque a rapidez dos fenômenos sociais e econômicos parece subtrair-se às duras exigências de leis que impõem certos procedimentos e impedem certas tomadas de decisão, não permitindo a ação governamental empenhada em desenvolver o País a curto prazo. Ora, isso é que acentuou o caráter pejorativo do bacharel e do bacharelismo, vistos como elementos desligados da realidade nacional. Há até mesmo quem diga que a legalidade é um princípio que, no Estado Moderno, em todo o mundo, por força do desenvolvimento, está sendo gradativamente ultrapassado.

A legalidade, o princípio que resguarda o governado contra o abuso de poder do governante e que dirige e limita a atuação deste último, nasceu de um imperativo da era moderna. O direito de nosso tempo é marcado, profundamente, pelo chamado fenômeno da positivação. Esse fenômeno, em suma, caracteriza-se pela importância crescente dos textos escritos em relação ao direito costumeiro, pelo aparecimento das grandes codificações, pela ideia de que as normas jurídicas têm validade quando postas por decisão de autoridade competente.

Essa ideia representou uma transformação importante no direito universal. Antes, até o século XVIII, o direito era sobretudo ditado por princípios que a tradição consagrava. O que sempre fora direito era visto como a pedra angular do que devia continuar sendo direito. Se alguém queria propor uma mudança, tinha de se justificar, pois a própria mudança era considerada inferior à permanência. Vivia-se, portanto, numa sociedade relativamente estável, com valores estáveis.

No entanto, as crises que culminaram na Revolução Francesa acabaram invertendo esta posição. O direito positivo, aquele que era posto pela autoridade, quebrou a antiga estabilidade: afinal, o direito positivo, por excelência, é um direito mutável. As penadas do legislador permitiram, desse modo, modificar radicalmente certas condutas anteriormente obrigatórias, restabelecendo-as em seguida sob os mais diversos pretextos. O direito positivado é, pois, um direito flexível, que institui a mudança como sua característica básica.

Com isso, os povos do Ocidente — e, pouco a pouco, do mundo inteiro — passaram a utilizar-se dessa concepção, produzindo enormes corpos legislativos que se modificavam com rapidez, ao sabor das necessidades e das mudanças nos valores sociais. Essa importância, atribuída à mudança em detrimento da permanência e da estabilidade, acabou gerando, entretanto, uma série de problemas.

Afinal, se o direito é um critério básico para a solução dos conflitos de convivência, sua mudança constante acaba sendo sustentada em critérios fluídos. Ora, como não se pode construir nenhum sistema sem um alicerce, surgiu a necessidade de se dar aos sistemas jurídicos uma determinada base que, sem ferir as exigências das mudanças formais, fosse capaz de dar-lhe certos parâmetros.

Tais parâmetros não podiam mais estar no antigo Direito Natural, o direito eterno e de sem­pre, já desgastado na consciência dos povos, pelo aparecimento e desaparecimento contínuo de no­vos valores. Assim, a proclamação universal do princípio da legalidade acabou revelando-se uma espécie de substituto das bases perdidas. A legali­dade — o respeito incondicional à lei vigente — tornou-se, assim, a grande pedra angular que dá ao direito, em nosso tempo, aquele mínimo de segu­rança e de certeza num processo em que tudo muda — rápida e continuamente.

Por isso mesmo, hoje, entre todos os grupos profissionais, pode-se entender por que o jurista é o que mais consciência tem da importância do Estado de Direito. Afinal, retirada a legalidade ou o respeito à soberania da Constituição, pouco resta para manter a justiça como o mais alto valor de convivência. É claro que a justiça não se reduz, exclusivamente, à legalidade A Carta aos Brasilei­ros soube enfatizar esse aspecto. Mas seu maior mérito foi ter manifestado um imperativo de nosso tempo — a legalidade - sem a qual estaríamos preparando a ruína do próprio desenvolvimento.

Se o desenvolvimento, como disse o papa Pau­lo VI, é o novo nome da paz, sem legalidade quando muito ele seria a institucionalização do arbítrio, da incerteza, da insegurança e da guerra. A Carta aos Brasileiros não afirma coisas novas, mas nos re­corda a importância de alguns princípios que nunca poderiam ter sido esquecidos.

Fonte: Quinta-feira, 31-3-77, O ESTADO DE S. PAULO.